FOI O VENTO

 

POR: Sônia Machado

 

Capítulo 14

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QUANDO LÍVIA DESCEU AS ESCADAS, PROTEGIDA EM seu casaco de tricô tecido com o fio grosso Melrose na cor ozônio, uma cor que ficava entre o cinza e azul, ainda havia uma camada branca de geada cobrindo a grama baixa do pequeno jardim.

Naquela semana, mais que em todas as outras, a temperatura havia baixado bastante em razão de uma leve garoa. Houve dias em que o sol ficara praticamente escondido. Mas naquela manhã, os primeiros raios já tentavam romper a neblina que cobria a rua. De repente, eles abriram uma brecha na cortina translúcida e iluminou o rosto de Lívia que admirava as pétalas aveludadas e róseas que acabara de colher ainda com pingos de sereno.

—Bom dia sol. Se prometer não se esconder hoje, talvez eu o pinte mais tarde. O que acha?  — E sorriu subindo as escadas com as rosas nas mãos.

Parou no alto da escada e olhou a rua com seus primeiros movimentos do dia. O vento soprou gelado, apesar do sol, e Lívia levantou a gola do casaco entrando em casa. Já na cozinha colocou a chaleira para ferver a água do café e aparou com uma tesoura os galhos das rosas ajeitando-as no vaso.

Enquanto Lívia colocava o arranjo de rosas na mesinha de centro da saleta, relembrou de um tempo, quando ainda tinha seu pai. Eles moravam em outra casa, que além das rosas, tinha também hortênsias e margaridas brancas.  A vida tomara outros rumos, ela pensou, sentindo saudades do pai.

—Tudo seria mais fácil se você estivesse aqui papai. —Falou em voz alta.

Desde que se lembrava, era seu pai, que todas as manhãs, antes de trabalhar, colhia flores e as oferecia com um beijo à sua mãe e ela as colocava no vaso. Era como se fosse um ritual. Eles se amavam tanto!

Lívia se lembrou ainda que o pai, um dia lhe dissera que ela se parecia com sua avó Leonor. 

—Você é a cópia de sua avó Leonor. — Seu pai havia dito quando ela completara dezesseis anos.

—Papai... Não tem alguma foto dela?— Lívia havia perguntado.

—Não tenho... —O pai de Lívia desconversou dizendo que estava atrasado para o trabalho.

Lívia não entendia porque seu pai nunca falava dos avós e ela tinha a impressão que ele sempre desviava do assunto quando ela perguntava.

—Seus avós estão mortos...  E não quero relembrar. —Ele sempre dizia e Lívia se calava respeitando a vontade do pai. Falar dos pais certamente trazia dolorosas lembranças.

Foi então que, por uma fração de segundos, se lembrou do senhor idoso que outro dia, em frente à sua casa, a tinha chamado de Leonor.

— Não, não pode ser meu avô. Ele está morto. — disse em voz alta e balançando a cabeça voltou à cozinha.—Deve ser apenas coincidência. Sempre há muitas pessoas com esse nome.

—Se pelo menos eu o visse de novo...

 

 

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D. Esmeralda amanhecera bem naquele dia para alegria de Lívia que estava às voltas com o café na cozinha e até se assustou com a voz da mãe atrás de si.

— Bom dia minha filha— A sua voz fraca, mas inebriante ecoou na cozinha e Lívia foi logo beijá-la.

— Mamãe, não devia estar esperando o café na cama?— beijou-a preocupada.

—Não se preocupe, estou um pouco fraca, mas estou bem. — tentou tranquilizar Lívia que a olhou desconfiada.

— Vai me tirar o prazer de tomar o café na cozinha?— sorriu. Um sorriso fraco num rosto onde era visível a proeminência dos ossos.

— Está certo então mamãe— E beijou-a de novo. — Olhe, hoje fiz panquecas de banana. — E apontou para a bandeja cheia enquanto desligava o fogão e pegava o bule de café quente.

— Espero que a senhora coma bastante. Só não exagere no café— disse sorrindo, acomodando a mãe na cadeira e ajeitando o xale de lã cor de palha que ela trazia nos ombros. Depois despejou café na xícara apenas até a metade e colocou diante da mãe a travessa de panquecas.

D. Esmeralda olhou aflita das panquecas para a filha e sorriu. Lívia de esforçava muito para que ela ficasse bem e por isso se forçou a comer.

—Huumm... As panquecas estão muito boas. — falou depois de morder um pedaço, mastigar com esforço e engolir. Ela estava apenas sendo gentil com a filha porque, na verdade, ela nem sentia o gosto dos alimentos. Mas Lívia ficou feliz. Havia uma esperança em seu olhar.

— Viu o buquê lindo que fiz hoje mamãe? — Lívia perguntou depois de mordiscar um pedaço de panqueca. — Agora que o outono se foi, as rosas não vão durar muito com esse frio.  Logo será preciso fazer a poda também.

D. Esmeralda balançou a cabeça concordando.

—Gostei do buquê de hoje sim—admitiu com um leve sorriso se lembrando de que, ao passar pela sala, visualizara no vaso da mesinha de centro, ao invés das duas rosas que formava o simples e pequeno arranjo diário, tinham três.

— Há um motivo especial para o buquê especial? — perguntou levantando os olhos para a filha que sentiu um calor envolver seu rosto.

Lívia teve certeza que suas faces alvas estavam vermelhas porque sua mãe abriu ainda mais o sorriso fraco.

— Não... Não.  — gaguejou, traindo-se ainda mais. — Que motivos eu poderia ter mamãe? — disse baixando o olhar e entretendo-se com um pedaço de panqueca.

— Pelo que notei você aumentou o número de rosas. Já não somos só nós duas? Existe mais alguém que eu não saiba? — D. Esmeralda se lembrou também de que quando o esposo era vivo, ele sempre colhia três flores, que segundo ele, representava a família. Quando ele partiu, D. Esmeralda passou a colher apenas duas e Lívia seguia o mesmo ritual. Contudo, naquela manhã esse ritual havia mudado.

— Olhe não se acanhe Lívia. — tentou tranquilizar a filha. —Sei que ele esteve aqui ontem. — confessou .

— Ele... Quem?— Lívia estava cada vez mais sem jeito diante da mãe.

— Quem? Não sou eu quem devia fazer essa pergunta? —D. Esmeralda levantou uma sobrancelha.

— Não estava dormindo mamãe? 

— Não está pretendendo que eu durma o dia inteiro está? Não sou um bebê...

— Desculpe mamãe. Mas é que me parecia tão fraca ontem.

—Isso não me impede de ficar a par das coisas que acontecem a minha volta.

—Então ficou me vigiando?— Finalmente Lívia conseguiu sorrir um sorriso meio tolo.

—Talvez... Mas não fiquei atrás da porta se é isso que está insinuando. —respondeu D. esmeralda levantando novamente uma sobrancelha. E ambas riram juntas, um riso que tinha o gosto de tempos atrás.

— Ele vai voltar? — D. Esmeralda questionou a filha com a voz já um pouco cansada. Falara mais do que suas forças exigiam o que preocupou Lívia.

— Talvez... — Lívia imitou sua mãe.— O nome dele é Arthur. Ele faz caminhadas nessa rua. Conhecemos-nos há uma semana.

—Está mais que na hora de você arrumar amigos e quem sabe algum namorado. —D. Esmeralda disse olhando para Lívia com olhar questionador.

—Somos apenas amigos. — Lívia adivinhou o pensamento da mãe e não pode deixar de se lembrar do beijo que Arthur lhe dera uns dias antes.

—Amigos? Mas e a rosa a mais no vaso?—D. Esmeralda não pode deixar de questionar com um sorriso brincalhão. — Ela não significa um laço mais forte?

— Mamãe... Agora chega de interrogatórios. Precisa descansar. — Sua voz soou imperativa e D. Esmeralda obedeceu levantando da cadeira com a ajuda da filha e dirigindo-se ao quarto, não sem antes pegar o livro na poltrona da saleta e o levar consigo de forma possessiva. Lívia revirou os olhos, mas não disse nada. Apenas sorriu. A mãe era extremamente romântica, um romantismo que o realismo havia pincelado de dores.

—Ah! Hoje quero que faça um bolo de chocolate para o lanche da tarde. —A mãe de Lívia pediu já deitada em sua cama. —Estou cansada de pão de milho.

—Tem certeza mamãe? Pelo que me lembro bolos estavam lhe fazendo mal.

—Não me questione. Faça o bolo menina. Não subestime o desejo de uma moribunda.

—Mamãe não fale assim. — Lívia se entristeceu.

— Desculpe-me minha filha. Estava só brincando. Mas não abro mão do bolo. — E atirou um beijo para Lívia depois de se ajeitar nos travesseiros e abrir o livro.

 

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Quando Arthur voltou na tarde seguinte, D. Esmeralda estava sentada na saleta. Parecia que o esperava e ambos conversaram e riram como se fossem velhos conhecidos.

Lívia sentindo-se esquecida anunciou que ia preparar um café.

—Não esqueça o bolo Lívia— Lembrou-lhe a mãe com um sorriso cúmplice.

—Não esquecerei mamãe... — E saiu rumo à cozinha.

 O pedido da mãe surpreendera Lívia, pois não queria saber de bolos. Reclamava que lhe pesava o estômago. Naquele dia, no entanto, ela pedira para fazer o bolo de chocolate e Lívia chegou a pensar que fosse um esforço da mãe para superar o mal estar. No entanto, agora que Arthur conversava animadamente com a mãe, Lívia teve certeza que o bolo era especialmente para Arthur.  Por isso parou no meio do caminho e buscou o olhar da mãe que, sentindo-se descoberta nas suas intenções, apenas sorriu e voltou sua atenção para Arthur.

Lívia voltou alguns minutos depois com a bandeja do café e retornou à cozinha para pegar o bolo.

D. Esmeralda fez questão de servir Arthur, mas ela mesma não comeu , alegando que estava um pouco enjoada, o que só confirmou as suspeitas de Lívia com relação à exigência da mãe em fazer o tal bolo.

Após o lanche, D. esmeralda se levantou, dizendo-se cansada e ia se deitar um pouco, deixando Lívia e Arthur sozinhos na pequena saleta. Já no corredor que dava para o quarto, parou, e, virando-se para Arthur, pediu em tom quase imperativo:

— Cuide de minha menina.

E Arthur lhe fez uma reverência, como se fosse, não um cumprimento, mas uma promessa.

 

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Durante toda a semana seguinte os três passaram a tarde juntos.  Às vezes Arthur ia com Lívia de mãos dadas à padaria buscar o pão. Outras vezes os dois preparavam, eles mesmos, bolinhos de chuva cobertos com canela. Às vezes panquecas simples e, até mesmo mais incrementadas, como por exemplo, recheadas de doce de leite ou pedacinhos de queijo.

D. Esmeralda chegava na porta da cozinha de mansinho e via os dois brincando de jogar farinha um no outro. Ela se afastava sorrindo discretamente e se sentava na sala.

—Esse lanche sai ou não sai? — E tomando o livro voltava a ler com um sorriso no rosto abatido. Ela nunca se sentira tão bem naquela semana. Estava feliz pela filha que, finalmente havia encontrado alguém especial. Quando partisse, Lívia não estaria sozinha no mundo.

 

 


 

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https://www.youtube.com/watch?v=TcI4wRnpNp8