FOI O VENTO

 

POR: Sônia Machado

 

Capítulo 16

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LÍVIA CAMINHOU DEVAGAR PELA RUA RUMO À padaria Laika. Naquele dia não esperou por Arthur. Quis ir sozinha e pensar em como a dor e o sofrimento são coisas difíceis de aceitar, embora a mãe aceitasse com dignidade. 

—De qualquer forma, que opções temos senão aceitar, quando já se está dentro da dor e do sofrimento?—Lívia havia dito para si mesma enquanto caminhava. Ela pensava que ambos exigem coragem.  Era isso que ela percebia em sua mãe. 

—Talvez, por isso, a dor e o sofrimento, quando aceitos, segundo mamãe, são coisas que moldam a gente. — Lívia havia percebido essa mudança na mãe nos últimos dois anos.

—E Eu? Será que quando tudo isso acabar, serei uma pessoa melhor? —falou em voz alta e o vento agitou seus cabelos. Era como uma resposta. Mas era uma resposta vaga demais para tantos questionamentos.

 

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Quando Lívia retornou da padaria para casa, Arthur já a esperava em frente ao portãozinho, pois a avistara ao longe. Subiram juntos a escada. As mãos entrelaçadas.

—Não quis me esperar?— Ele perguntou sentindo que Lívia não estava bem. Ele percebera os olhos vermelhos.

—Desculpe... Queria pensar enquanto caminhava. —aconchegou-se em seu braço sentindo a maciez da lã batida do casaco de Arthur.

—Aconteceu alguma coisa? Como está sua mãe? Vi que andou chorando—Arthur curvou-se um pouco e beijou os cabelos de Lívia.

—Sim... Aconteceu... Mas não com minha mãe. Prometo lhe contar depois do café. — Lívia soltou-se das mãos de Arthur e abriu a porta

Para Lívia, Arthur era o bálsamo de seus dias difíceis. Simples, gentil, protetor, companheiro... Não se importava de comer pão de milho e nem preparar ele mesmo, bananas assadas com mel e canela e também panquecas que às vezes passavam do ponto. E ambos riam enchendo D. Esmeralda de felicidade.

 

 

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Quando Lívia e Arthur entraram na saleta, D. Esmeralda não se encontrava na poltrona lendo. Lívia foi até o quarto, preocupada que a mãe não estivesse bem, mas ela não estava lá descansando. Com o coração aos saltos, Lívia passou por Arthur na saleta e foi até a cozinha. Às vezes sua mãe inventava de fazer o café enquanto ela ia à padaria. Mas a mãe também não estava lá. Foi então que se lembrou do envelope da Imobiliária que deixara na gaveta do armário em seu quarto e correu para lá temendo que a mãe o tivesse descoberto.

Sim, sua mãe estava lá em seu quarto, mas a cena que ela viu foi pior do que a que tinha imaginado.  A mãe estava caída no chão, a pele arroxeada e, o envelope bem ao seu lado. Gritou com as mãos na cabeça.

Arthur ouvindo o grito de Lívia largou a sacola de compras na mesa da cozinha e correu para o quarto já imaginando o pior. Então ele viu D. Esmeralda caída no chão e Lívia ajoelhada ao seu lado aos prantos. Arthur tomou logo o controle da situação. Levantando Lívia do chão, segurou suas mãos e ordenou:

—Seja forte. Chame logo a ambulância... — E abaixou-se rapidamente ao lado de D. Esmeralda para verificar seus sinais vitais e constatou que ela havia sofrido uma parada cardiorrespiratória, especificamente pela presença de uma coloração azul-arroxeada em sua pele e mucosas.  Além disso, percebeu a ausência de movimentos respiratórios, o que o fez imediatamente iniciar uma manobra de reanimação ou ressuscitação cardiovascular que consiste na realização de compressões torácicas.

Diante da situação, Lívia tentou ser forte e afastar a crise de desespero que tomava conta de si. Ligou imediatamente para o SAMU que não demorou a chegar, encontrando Arthur trabalhando a reanimação de D. Esmeralda, sem perder tempo e controle.

Os paramédicos tomaram enfim, as rédeas da situação e constataram que a respiração começava a voltar. Os primeiros socorros de Arthur foram essenciais e eficazes. Assim quando chegou ao hospital, D. Esmeralda já respirava, embora ainda estivesse inconsciente.

Arthur e Lívia foram também na ambulância. Em dado momento Lívia deixou-se extravasar pelas lágrimas. O medo de perder a mãe tomara conta de si.  Arthur a abraçou em silêncio, deixando que sua dor fosse jogada para fora. E essa dor tinha a força de uma torrente em dias de chuva. No entanto, teve que enxugar as lágrimas porque um dos paramédicos precisou colher informações. Era hora de se controlar e ser objetiva.  

Vinte minutos depois, aproximadamente, mas que pareceram eternos para Lívia, a ambulância que percorreu cerca de doze quilômetros pela Rua Heitor Penteado, cujo trânsito fluía mais que o normal, chegou finalmente ao hospital A.C. Camargo Câncer Center, onde D. Esmeralda fazia seu tratamento.

O tratamento oncológico de D. Esmeralda havia sido encaminhado pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, que regula as vagas por região. O SUS havia determinado que D. Esmeralda podia ser atendida no A.C.Camargo Câncer Center.

 Lívia suspirou aliviada quando avistou diante de si o enorme prédio branco do hospital e passaram pela portaria e D. Esmeralda foi atendida por outra equipe médica que já aguardava

 

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Arthur e Lívia ficaram aguardando numa sala de espera onde tudo era na cor neutra bege. Paredes, tetos, poltronas, sofás, mesas. Exceto uma enorme parede de vidro de onde se avistava o céu e os prédios altos de São Paulo. Pessoas entravam e saiam sem parar.

Fazia mais frio naquela tarde e Lívia estava com as mãos geladas assim como a alma. Mas Arthur aqueceu suas mãos e tentou aquecer sua alma com seu jeito doce e protetor. Obrigou-a tomar um café quente que Lívia aceitou resignada. A ansiedade tomando conta de seu ser. Ela não estava preparada para perder a mãe. E essa hipótese era como uma espada cravando em seu peito.

Depois de mais de uma hora, que pareceu um século para Lívia, o médico apareceu no final do corredor e dirigindo- se a Lívia encolhida com Arthur em um imenso sofá, explicou que D. Esmeralda já estava acordada e respirando bem.

— Sua mãe está com arritmia cardíaca e uma forte infecção. Está muito debilitada, mas fora de perigo. Ela vai ficar bem. — tranquilizou Lívia e Arthur.

Lívia assentiu com a cabeça. Contudo, tinha algo que a estava deixando inquieta: o fato de sua mãe ter se sentido mal em seu quarto e, ao que tudo indicava, depois de ler o conteúdo do envelope. Sentia-se muito culpada por não ter tido mais cuidado e por isso perguntou ao médico:

—Essa parada cardiorrespiratória não pode ter sido proveniente de alguma contrariedade?  — Lívia não conseguia se livrar da culpa. O médico olhou-a interrogativo:

— E sua mãe teve alguma? — perguntou perscrutando o olhar de Lívia que, sem jeito, enfiou a mão no bolso do casaco, retirando de lá o envelope e estendendo-o ao médico que o abriu e leu. Depois a olhando como se adivinhasse seu estado de culpa o médico disse:

—Olhe, tudo que sua mãe sofreu foi porque está muito debilitada.  Os exames que fizemos com urgência comprovam seu estado de baixa imunidade, plaquetas, glóbulos vermelhos. Essas coisas...   Inclusive, o estado febril dela era muito alto, comprovando uma infecção grave. Além disso, tem essa questão da arritmia... Portanto, menina... — E o médico que sempre atendia D. Esmeralda colocou a mão no ombro de Lívia num gesto paternal— tire essa culpa da cabeça. Foi só uma coincidência. Não fique procurando motivos.

—Quanto ao conteúdo desse envelope... — O médico o sacudiu no ar. — Não se preocupe. Tudo se ajeita. — falou sorrindo. E já ia se retirando, mas parou virando-se.

— Ah!... Podem ir ver D. Esmeralda por alguns minutos. Acompanhem-me... —E fazendo um gesto com a mão seguiu com pressa à frente de Arthur e Lívia  por um longo corredor frio e de paredes brancas que parecia não ter fim. Depois de virar a esquerda e depois a direita e mais uma vez à esquerda, o médico se deteve em frente à área das UTI’ s, onde, através de um vidro, Arthur e Lívia puderam ver D. Esmeralda em meio a um emaranhado de fios e equipamentos. Um monitor realizava o acompanhamento de seus sinais vitais, como a frequência cardíaca, a pressão arterial, a saturação do oxigênio etc.

— Ela está dormindo agora, devido aos medicamentos, mas lhes garanto que está bem. —explicou o médico batendo nos ombros de Lívia— Por isso pode ir para casa tranquila menina e descansar. Deixe sua mãe por nossa conta.

— Mas... Eu quero ficar... Posso... — Lívia tentou argumentar.

—Não, não pode ficar mais aqui. Para o seu bem. Não seja teimosa. —falou sorrindo e, virando-se, apertou a mão de Arthur.

— Cuide dessa menina. Não tem sido fácil para ela. Ah! Parabéns rapaz. — cumprimentou-o. — Com certeza você salvou a vida de D. Esmeralda. Não é qualquer pessoa que consegue realizar primeiros socorros com precisão nesses casos. Estou realmente muito admirado. — E afastou-se apressado deixando-os ali, pois uma enfermeira viera chamá-lo.

 

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Quando ficaram a sós, Arthur olhou para Lívia que ainda trazia nas mãos aquele envelope, cujo teor ele parecia adivinhar e pediu:

—Posso?— perguntou estendendo a mão e, Lívia assentiu entregando-lhe o envelope.

— Eu tentei esconder dela— justificou. —Pretendia dar um jeito antes que ela soubesse,  mas penso que de alguma forma descobriu— A voz de Lívia estava cheia de culpa.

— Eu devia ter sido mais cuidadosa — Uma lágrima rolou pelas faces alvas.

Arthur se aproximou e tocou o rosto de Lívia enxugando- lhe a lágrima.

— Olhe você não teve culpa de nada Lívia. Foi tudo mera coincidência. Não ouviu o que o médico disse?— falou enquanto abria o envelope e à medida que o lia, seu rosto ia se contraindo de tal forma que o maxilar parecia que ia se quebrar tamanha era a raiva que ia tomando conta de si.

—Maldito... Eu sabia—Arthur disse quase sem pensar.  E se arrependeu em seguida.

—Você sabia? Como?— perguntou sem compreender.

— Na verdade imaginei por se tratar de um documento de uma Imobiliária—Arthur tentou se justificar. Tudo que ele menos queria naquele momento era causar mais contrariedades a Lívia. Então ele tomou a mão de Lívia.

— Olhe, vá para casa descansar — ordenou. — preciso tentar resolver esse assunto do envelope e te encontro mais tarde.

— Mas, e mamãe? Não posso deixar ela aqui sozinha. —Lívia parecia atônita olhando de Arthur para a mãe que dormia entre fios conectados em seu peito e em suas mãos. Era como se a vida dela estivesse presa apenas naqueles fios. Se eles se soltassem, ela partiria. Ela não queria estar longe quando sua mãe partisse. Lívia chorou e sua lágrima embaçou o vidro de onde ela via a mãe.

 —“A vida é sofrimento, e sobreviver é encontrar significado na dor...” — Lívia falou entre lágrimas— Viktor Frankl estava certo quando escreveu o livro” Em busca de sentido”. Ele estava certo. Agora percebo. Mas, e eu? Sobreviverei sem minha mãe Arthur? —virou-se para ele. Os cabelos grudados no rosto molhado de lágrimas.

Arthur abraçou-a e tomando o rosto de Lívia entre as mãos disse:

— Vai sobreviver sim. Você é guerreira como sua mãe. E sua mãe vai ficar bem.  Você precisa ir para casa descansar agora. Não se torture mais. O dia não foi fácil para você. — afastou uma mecha de cabelo grudada na face de Lívia e beijou-a, depois a tomou pela mão— Vem...  Vou te deixar em casa e resolver esse assunto da Imobiliária. Mas prometo não demorar.

—Você pretende mesmo ir à Imobiliária? — Lívia perguntou enxugando o rosto com a manga do casaco. —Você acredita mesmo que eles poderiam voltar atrás?  É melhor esquecer esse assunto. Encontrarei outra casa. Em um mês e com mamãe doente será mais difícil, mas quero acreditar que tudo vai dar certo.

— Claro. Tudo vai dar certo sim. — garantiu Arthur enquanto a ajudava a entrar no táxi e depositava um leve beijo em seu rosto. —Acredite... Mas preciso tentar algo. Mais tarde conversamos. Promete ficar bem até eu voltar?

Lívia concordou com a cabeça. E enquanto o táxi seguia pelas ruas o vento entrava pelos vidros abertos e era como se trouxesse esperanças e levasse embora a dor. Lívia suspirou e encostando a cabeça no ombro de Arthur, fechou os olhos e quando os abriu já estavam diante do portãozinho. Arthur deixou Lívia no alto da escada.

— Volto logo... — beijou-a e descendo as escadas entrou novamente no táxi.

 

 

CONTINUA...

 


 

 

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