Um gato na campina

Corria livre pelo prado alegre um pequeno felino desacostumado à vida em cativeiro. Vê-lo assim, solto e selvagem em meio ao gramado aparado e às pequenas colinas sem fim era como apreciar um quadro cujo artista é conhecido pela sua ousadia natural de pôr os objetos em fuga e em contemplação. Sem perder o ritmo, as vezes o gato parava, sentava-se com a postura de um nobre leão ao pôr do sol e exibia o seu olhar mais sábio.

Percebia-se enorme, única figura viva na estância eterna, escondia-se quando se deparava com um capim alto e revelava-se em sua energia felídea. Não era um gato manso, era um animal feroz pronto para servir-se da mais perigosa filosofia e das mais claras ideias. Quem o via sem conhecer, passaria a tarde acalentado pela meiguice de um pequeno gato cinzento, sem sequer conjecturar sobre tudo o que um campo despretensioso guardava ao raiar de uma tarde escaldada pelo sol.

O gato sentiu-se ameaçado pela figura humana que invadiu seu mais sagrado recinto, não era preciso enxergar o sujeito que adentrara no verde éden, porque o sentir aguçado bastava para que toda a mágica felina se esvaísse, juntamente com sua solitude tão cara. O gato tudo sabia e pressentia, era capaz de estar a par das desarmonias desde as mais antigas terras de relevo recurvado, e logo soube em um instante febril a verdade sobre aquele vil representante da humanidade em decadência.

O humano tentou em vão criar um elo com o bicho, mas não há o que se fazer em matéria de convicção felina, puro instinto que vaga solto por todos os rastros. Após tanto correr e desgastar-se sem êxito diante do gato que ignorava todos os seus esforços, deixou-se descansar em uma relva rala naquele fim de mundo. Meditou longamente até sentir-se encoberto por um sopro de alma agreste naquele recanto imensurável e ouviu com atenção sinfônica uma frase de tamanha beleza que lhe ficaria gravada nos ecos de seu coração:

- Amas o vazio, mas não tens o dom de testemunhar a seriedade do inexplorado. É preciso que retornes de onde vieste e devolva a paz que de mim tiraste.

O humano tentou responder com as palavras mais delicadas que foi capaz de pronunciar depois de surpreendente declaração, mas somente pôde balbuciar incertezas a nível de um miado que o constrangeu-lhe a ponto de desistir da empreitada por aquela campina inóspita. Cansado, pôs se a deitar e caiu no sono.

Sem perder tempo, o gato interveio enquanto o humano se enveredava pelas distrações do mundo onírico e sussurrou em seu ouvido:

- Não pedi que tu desistas, não deixe de ser quem és, mas esteja no lugar em que te cabe estar.

O humano acordou abruptamente, sem entender por um breve instante onde se encontrava deitado e absorto. O tempo passava mais lento naquele ambiente desconhecido e após rememorar seu destino, concluiu que ainda estava sonhando enquanto se deparava com o gato a sua frente, que sem se delongar, exclamou:

- Cá estou, conte-me tudo o que sempre desejaste uma única vez.

- Quero apenas te domesticar e te tornar meu.

-Não posso pertencer a ninguém, estou no âmago do mundo, sou a essência da vida e minha substância não pode ser aprisionada, porque assim como sou o clarão dos dias, sou a imprecisão das noites. Assim como sou o passar das horas, sou o caminhar da vida e ainda que minhas andanças sejam tentadoras, o prazer de minha solidão jamais pode ser arrancado por quem me queira como posse.

E assim, o gato pôs-se novamente em marcha vibrante rumo a sua sina soberana, na desimpedida lida de liberdade vultuosa.

Flora Fernweh
Enviado por Flora Fernweh em 26/02/2024
Reeditado em 26/02/2024
Código do texto: T8007916
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