TIRANA

Quando ela nasceu, nada anormal aconteceu para dar sinal de que seria uma rainha. Somente o grito da mãe ecoando pela casa, anunciou a sua chegada. A seriema cantou e o calango arregalou os olhos de espanto.

A menina caiu nas mãos da parteira que lhe deu um tapa nas nádegas.─ Chora que a vida não é fácil!

Logo em seguida foi abençoada pelas águas. A mãe queria que se chamasse Maria, o pai, o nome da avó, Deolinda. Discussão vai, discussão vem, para contentar as partes o escrivão juntou os dois nomes e escreveu Marlinda no livro de registros de nascimento. Com o tempo, passaram a chamar a menina de Linda, que linda era.

Assim foi, assim ficou.

Linda cresceu de pés descalços, pisando no pó da terra ocre.─ No pó nasceste, no pó viverás. Corria como onça. Estudou o bê-á-bá, fez vacina contra varíola. Cresceu, floriu. Quando passava pela rua, os rapazes a seguiam com os olhos ávidos e depois iam descascar banana. Ela parecia prometer o céu e mais alguma coisa na conjunção da carne, na obrigação de seguir a lei de Deus; amai-vos, sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a Terra.

Os pais morreram de repente, num dia de forte temporal. Caíram com carroça e tudo num despenhadeiro. Um acidente, disseram na investigação. Sem condições de cuidar das terras que o pai deixou, ela vendeu para o coronel Tibúrcio Miranda. Ficou sozinha, mas não por muito tempo. Namorou João Sereno, funcionário da prefeitura e decidiu se casar com ele, pois já era adulta e dona de si.

Uma cerimônia simples, porque ainda estava de luto. Parecia que seriam um casal feliz. Parecia. João não cumpriu as promessas que fez diante do altar. Não levou dois anos, tornou-se distante, ignorando os anseios da esposa.─ A cama não foi feita só para dormir.

De vez em quando João chegava tarde do trabalho. Dizia que estava fazendo serão na prefeitura. Linda começou a desconfiar que os serões eram uma outra mulher. Decidiu vigiar o marido. Foi a um brechó, comprou uma calça, camisa e chapéu. Assim, disfarçada de homem, ficou escondida perto da prefeitura. Ao entardecer, quando João deixou o trabalho, ela o seguiu e o viu entrar na casa da viúva Josefina. A viúva, desprezando o luto e o recato, mal o marido morreu já estava com outro homem na cama! Que bruaca!

Bufando de raiva, Marlinda foi à sua casa, pegou a espingarda do falecido pai e voltou. Entrou por uma janela dos fundos e chegando ao quarto, encontrou os amantes na cama. ─ No bem bom. Dois disparos e a honra estava lavada. Fria e mecânica, deixou o local. Chegando em casa, pegou uma trouxa de roupas e se embrenhou sertão adentro.

Era uma mulher decidida, forte e selvagem, porém, não era de ferro. Dias depois, seguia pela caatinga com as alpercatas dilaceradas pelas pedras do caminho, os pés sangrando. Com sede e fome. Acima, os urubus planavam no ar quente seguindo o vulto moribundo, esperando a vida esvair-se para atirar-se ao banquete. Esgotada, sem mais esperança, sem mais ilusão, Linda/Marlinda, deixou-se cair no pó do ermo. ─ Ao pó voltarás.

****

Jesuíno nasceu de mãe solteira. Nunca soube quem era seu pai. A mãe sofreu desilusões de menina-moça. Enganada por um Dom Juan, ficou sozinha, embuchada. Tornou-se fria e turrona. Enterrou o passado. Fugia do assunto como quem foge de um fantasma.

Jesuíno tinha 23 anos quando conheceu Vitalina, mais conhecida como Vitinha. Ela era mais velha que ele e era casada com um guarda-livros chamado, Gumercindo dos Reis. Bonita, sensual. ─ Femme fatale. Ela lhe prometeu mundos e fundos se ele a levasse embora daquela cidade. Casara-se por conveniência com Gumercindo. Agora, arrependida, achava que estava perdendo tempo e a juventude naquele lugar insípido. Ansiava por uma vida nova, longe dali. Antes que eu me torne velha e ainda mais infeliz.

Fez o rapaz se apaixonar por ela e o convenceu a roubar as economias da mãe dele, que era doceira. Numa madrugada mormacenta, fugiram, pegando carona na estrada. Os primeiros dias na cidade grande foram difíceis. Mas logo arranjaram emprego, se estabilizaram. Parecia que tudo seria um mar de rosas para Jesuíno. Oito meses depois, ao chegar em casa, encontrou um bilhete de Vitinha sobre a mesa. Foi bom esses meses com você. Te gosto, mas não posso mais ficar contigo. Sem mais explicações, Vitinha sumiu de casa e da vida dele.

Desiludido, Jesuíno continuou com seu emprego modesto na padaria. Envolveu-se com uma prostituta e tornou-se gigolô. Viveu algum tempo na zona do meretrício. Um dia envolveu-se numa briga e acabou baleado na barriga. Quase morreu. Quando ganhou alta do hospital, decidiu mudar de vida. O tempo em que ficou no leito do hospital, pensou na mãe, na cidade onde nasceu e tentou imaginar como seria sua vida se tivesse ficado lá. Resolveu visitar a terra natal. Será que a mãe vai me perdoar?

Ao chegar na cidade, viu que pouca coisa havia mudado. Andando pelas ruas, não percebeu que estava sendo seguido por um velho barbudo, de olhar macilento. Ao dobrar a esquina o homem agarrou-o por trás. Era Gumercindo dos Reis, empunhando uma faca. O ex -marido de Vitinha o reconheceu e queria se vingar, matar o ladrão que roubou sua mulher. Mas Jesuíno foi mais rápido, puxou do punhal e deu três estocadas. O homem desabou. A rua estava deserta e ninguém viu o ocorrido. Jesuíno puxou o velho para um beco e escondeu o corpo num monte de lixo. Decidiu sair logo da cidade. Se arrependeu de ter vindo. Antes de ir, foi visitar a mãe, saber como estava. Queria pedir perdão por ter ido embora.

Escurecia quando ele chegou na casa. Estava a mesma coisa. Pintada de branco, com um jardim na frente. A mãe gostava de flores. Ela o recebeu com frieza e nem o convidou a entrar. Como a senhora está? Rosa não respondeu e começou a fechar a porta. Mas parou, voltou a olhar para ele. O nome dele é Gumercindo Reis.

Ele não entendeu, mas levou um choque ao ouvir o nome. Teu pai se chama Gumercindo Reis. Não era isso que querias saber?

Ele saiu da cidade tonto, aperreado. Penetrou no ermo, como cão sarnento fugindo de tudo e de todos. Mas quis o Destino que encontrasse alguém. Uma mulher desfalecida, caída na orla da caatinga. Uma sombra. Talvez um espírito errante. Porém muito bonita, tão bela quanto a flor do mandacaru.

Encontrando aquela mulher desfalecida, apressou-se a ajudá-la dando-lhe água do seu cantil e comida do seu embornal, rapadura com farinha de mandioca.

Recuperando-se, Marlinda agradeceu ao seu salvador e os dois conversaram por longo tempo, à sombra de um umbuzeiro. Ela contou a sua triste história. E ele a dele. Disse que em suas andanças nos meios marginais, soube que o coronel Tibúrcio Miranda mandou atirar um casal de velhos num grotão. Quando tu falaste que teus pais caíram numa ribanceira, achei que seriam os tais velhos.

Marlinda ficou agoniada. Sentiu a dor parada no peito, quase esquecida, como brasa sob cinzas, se reacendendo num fogaréu. Com anseios de vingança. Nunca havia pensado que a morte dos pais poderia não ter sido acidente. O coronel Tibúrcio sempre quis comprar as terras, mas seu pai se negava a vender. O coronel mandou matar os velhos para poder comprar a propriedade por um preço baixo, já que ela não tinha condições de cuidar. Com tanta magoa, decidiu se vingar. Jesuíno prontificou-se ajudá-la, logo que ela se recuperasse, que ganhasse forças. ─ Saco vazio não pára em pé.

****

Certo dia, a noite chegou mais cedo em Brejo Grande. Nuvens negras cobriram o céu e uma ventania repentina assobiou nas cumeeiras das casas. Um trovão abalou os ares e foi sumindo, ecoando pelas escarpas dos montes.

A porta do Bar do Chico Cambota abriu-se de repente e uma silhueta de chapéu e capa esvoaçante, destacou-se ante os relâmpagos lá fora. Os quatro homens no estabelecimento se arrepiaram, imaginando ser um mau espírito transportado pela tempestade. O dono do bar atrás do balcão e os três homens que jogavam cartas numa mesa, respiraram aliviados ao ver o rosto da criatura quando se adiantou para a luz dos lampiões. Era apenas um homem, um rapaz aprumado, de sorriso cativante. Engano deles, era a Morte chegando.

Logo após o forasteiro, entrou uma mulher usando roupas de vaqueiro e um chapéu largo na cabeça. Uma mulher de beleza selvagem e aspecto ameaçador. Seus olhos negros perscrutaram o ambiente e localizando seu alvo na mesa do carteado, sacou dois revolveres Colt 45.

O coronel Tibúrcio Miranda reconheceu Marlinda e ao vê-la armada, pressentiu que ia morrer. Ainda tentou puxar a pistola Luger do bolso interno do jaquetão, mas foi lento demais. Levou um balaço na testa e outros três no peito. O homem rodopiou, desabou sobre a mesa e rolou para o soalho. Quando caiu já estava morto, bem mortinho. ─ Que a terra lhe seja leve! Feito o serviço, a dupla arribou, sumindo na poeira da estrada.

****

Marlinda e Jesuíno se afeiçoaram um pelo outro, tanto pela simpatia quanto pela necessidade de preencher o vazio de suas vidas. Roubar em dois era melhor do que em um e os dois roubaram um banco, pois precisavam de dinheiro para se manter. Se tornaram cangaceiros. Outros desajustados na vida se uniram ao casal e foi assim que o bando liderado por uma mulher ganhou fama.

Marlinda passou a ser chamada de Tirana. Tal nome passou a ser temido, era sinônimo de desgraça no sertão.

Algumas pessoas julgavam que Marlinda e Jesuíno eram amancebados, mas estavam enganados. Entre os cangaceiros havia romance sim, casais apaixonados, amores não correspondidos. Felício gostava de Belinha, por sua vez Belinha gostava de Tião, que amava Marlinda, que não amava ninguém.

Tanta ilusão perdida, tanto amor em vão, um dia estoura como um trovão! Pois, Felício, azougado de ciúme, matou Belinha causando rebuliço. Por ordem de Marlinda, Tião matou Felício e depois matou outro colega, o mulato Carrapato, que o chamou de cachorrinho da patroa. A morte de Carrapato desagradou a Marlinda e ela expulsou Tião do grupo. Desiludido com a vida e desgarrado do bando, Tião desprezou a cautela. Bêbado, foi pego pela polícia e covarde que era, entregou o paradeiro dos ex -companheiros.

Assim, numa tarde, quando a rolinha cantava, cantaram os fuzis dos soldados ensandecidos, alucinados com a ideia de ganhar fama por matarem a rainha dos cangaceiros. Pegos de surpresa, o bando sucumbiu ao tiroteio. Marlinda, ainda tentou fugir, mas foi varada pelas balas de uma submetralhadora Bergmann.

Esta é a história de Marlinda, que foi Linda, que foi Tirana. ─ O resto é lenda.

FIM

Antônio Stegues
Enviado por Antônio Stegues em 24/03/2024
Código do texto: T8026688
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.