Não existia nada

Não existia nada

Não existia nada e, súbito, o nada pensou: Tem que existir alguma coisa, não pode não existir nada. Imediatamente o nada deixou de ser nada para ser alguma coisa só pelo fato de pensar. E o nada, que era macho, se fez alguma coisa que se postou fêmea.

E alguma coisa gostou de ter pensado a primeira vez, porém viu que estava só ela e seu pensamento pairando no nada e na não existência de qualquer coisa. E pensou que pudesse existir mais alguma outra coisa.

O nada era muito feio com tudo escuro e, então, alguma coisa criou a beleza. A beleza era demasiada bela, no entanto, nem alguma coisa podia vê-la completamente, só a divisava um pouco pelo fato de ter sido sua criadora, como um vulto imerso na escuridão. Contudo, mais não podia ver por estar envolta no breu do ser noite profunda e alguma coisa pensou que a beleza é para ser contemplada.

Dessa forma, alguma coisa se pôs a pensar em como fazer com que beleza pudesse ser contemplada. Eram as duas na imensidão do que antes era nada, alguma coisa e beleza. Alguma coisa não precisava ver a si mesmo, ela mesma para si já atestava sua própria existência, porém, havia acabado de criar beleza que veio do seu pensamento, porém, mesmo assim só podia vê-la um pouco, pelo fato de ser sua criadora.

Não estava conformada, beleza deveria ser admirada e elogiada, não fosse assim não seria beleza. Faltava uma coisa importante que permitisse olhar beleza até cansar. Só pensar, deixar de ser nada e ser alguma coisa por ter pensado a primeira vez e depois meditar que outra coisa deveria existir e criar beleza não era suficiente. Mesmo tendo criado beleza era preciso criar alguma coisa para servir a si e à beleza, pois essa coisa deveria permitir contemplá-la. Porém, não conseguia resolver esse problema só pensando.

Foi a partir dessa dificuldade de ver a beleza que descobriu existirem somente pensamento e dois seres, mais nada, quase seres imóveis, só movimentados pelo pensar e por uma nesga de visão. Ficou pensando no que seria necessário para intensificar a potência dos seres existentes: alguma coisa, pensamento e beleza.

Então, no pensamento veio a consideração de que poderia haver algo que perpassasse os próprios seres e fizesse a interrelação entre eles e disse, falando pela primeira vez, houvesse iluminação. A luz apareceu no universo e dissipando a escuridão e beleza. Essa luz irradiou esplendidamente seu encanto. Extasiada por ela, alguma coisa restou a contemplá-la não sabe por quanto tempo, pois essa categoria ainda não existia, talvez por uma eternidade sem fim e sem conta. Poderia ter sido só um milésimo de segundo, suficiente para ver e sentir o radiante fulgor, e poderia ter sido de tempos em tempos na não existência do que pode ser contado e calculado. Beleza foi contemplada como deveria ser graças à luz que emanava no etéreo.

Surgiu sem ser criado, dentro de alguma coisa e beleza, amor. Amor apareceu da contemplação dupla entre beleza e alguma coisa. Ele transitava nos raios de luz entre uma e outra, rápido como os raios, vivos e penetrantes às suas semelhanças. E amor fez algo inusitado, foi até alguma coisa, beleza e a iluminação, pegou elementos de todos e fez aparecer muitas coisas que antes não existiam. O mundo espiritual e físico se povoou de coisas pequenas demais, grandes demais e de tamanho mediano. As coisas minúsculas pariram coisas maiores que foram se agigantando e se apequenando, apareceu o movimento que unia e afastava as coisas, as forças que atraíam, atritavam, se embrenhavam umas nas outras e corriam para longe.

Amor, muito irrequieto, inventou muitas coisas. E uma invenção que desnorteou tudo foi o vinho. A água apareceu porque o vinho precisava de um elemento que o deixasse maleável, que pudesse ser armazenado, uma vez o vinho feito. As uvas também foram inventadas por causa do vinho. Amor viu que, de igual forma, era necessária uma fruta para ser a substância principal do vinho.

Era necessário, dessa forma, existir quem pudesse cultivar o vinho e amor fez almas para cultivar as uvas. Porém, as almas pediram corpos a amor e pediram também que houvesse terra para cultivarem as uvas e fazer o vinho. Amor considerou, pensou e decidiu fazer a terra, lodar os corpos do barro e pôr neles as almas sabedoras de fazer vinho. Daí, viemos nós mulheres, homens e andróginos.

Rodison Roberto Santos

São Paulo, 13 de julho de 2022

Rodison Roberto Santos
Enviado por Rodison Roberto Santos em 26/03/2024
Código do texto: T8027914
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