10/01

As fotos estavam sobre a cama. A mãe estava no telefone com alguém que ela diz ser um parente distante, falando que não iam poder se ver naquele dia. Mateus tem dez anos, e estava sentado no chão. Olhou-as, uma a uma. Até então, só havia visto fotos suas, ou suas com sua mãe, ou suas com sua avó. Aquelas não. Eram bebês. Às vezes, um só, às vezes, dois. A que ele olhou durante mais tempo, e que chamou mais sua atenção, mostrava um homem em pé, um pouco calvo, ombros muito largos, um belo sorriso branco. Sentada, a sua frente, a mãe de Mateus, mais jovem, feliz. Em seu colo, dois bebês, um em cada braço, envoltos em mantilhas brancas. Havia algo escrito no verso. “Frederico, Suzana, Mateus e José. 23 de Junho de 19...”.

Uma vez por semana — e posteriormente, uma vez a cada quinze dias; e no ano corrente, uma vez por mês — Mateus ia ao consultório da Doutora Márcia, psicóloga. Mateus já não era mais gordo. Na sessão daquela tarde, uma sexta-feira, resolve comentar com a terapeuta sobre a falta que sentia de ter um pai, e a pequena inveja do pai do amigo Zeca. — Ele é um homem importante, é engenheiro. Aquela obra do shopping-center lá perto de casa é coisa dele. E o Zeca vem junto com ele, uma vez por ano.

— Shopping?

— É, tem um shopping em construção lá, faz uns cinco anos. Nunca vi coisa mais demorada...

— Tem certeza, Mateus?

— Só falta a senhora dizer que o shopping é invenção da minha cabeça!

— Ok. Mateus.Já são quatro horas. Eu quero que você pense nesse assunto, do que você diz ser inveja do seu amigo ter um pai. Vou marcar para você vir aqui semana que vem, no dia 10.

— Dia 10 eu tenho um compromisso, Doutora.

— É só por uma hora. Só tenho essa data em janeiro. Qualquer mudança, você pode ligar. A sessão encerrou por hoje.

Mateus saiu do consultório pensativo. “Ela quis dizer alguma coisa sobre o shopping não existir.” Bem, ele não tinha muito tempo para pensar nas paranóias de sua terapeuta — que já estava começando a cansá-lo. Só ia para não chatear a mãe, e ela não começar a ter chiliques outra vez achando que ele era um psicopata em potencial. “A mãe é que precisava vir, pra deixar de ser neurótica”.

Chegou em casa, e a mãe deixou um recado grudado na geladeira. “Se o ‘parente’ ligar, diga que vou viajar e só volto no fim de semana”. O rapaz já sabia que “parente” era um namorado antigo de sua mãe. Ele nunca conheceu o indivíduo, talvez por que ela fosse muito reservada em relação ao filho e não querer substituir a figura paterna enquanto ainda era pequeno. Agora, o “parente” era motivo de piada.

Como de costume, vai até o porão. Há dois anos, convencera a mãe da necessidade de comprar um aparador de grama, que, na verdade, era pouco usado em casa. O objetivo, sim, era o campinho de futebol que mantinha bem cuidado o ano todo, e que só ele usava. Melhor dizendo, apenas ele e seu amigo Zeca, uma única vez por ano. Mateus já nem prestava mais atenção à obra que ladeava o campo.

Chegado o dia dez de janeiro. Logo de manhã, Mateus despede-se da mãe, que saiu cedo. Ela não viria almoçar em casa, provavelmente porque o “parente” a levaria para algum restaurante, redimir-se da discussão que tiveram por telefone. Assim que ela sai, Mateus veste o calção, as meias e calça o par de chuteiras novo em folha. Chegando no campinho, lá estava Zeca, prendendo firme no pulso a luva esquerda, ainda sem uso.

Chute e defesa. Chute e gol. Chute e gol e breve discussão sobre “Foi fora! Não, não foi!”, e os rapazes simulam uma briga. Depois de alguns lances, Mateus cobra uma falta da intermediária visando o ângulo direito, procurando dar um efeito na bola. Zeca voa com agilidade e espalma a bola por cima da trave, fazendo-a cair além do tapume da construção.

— Putz! E agora? Quem busca?

— Ah, vai você, pé-torto!

— Vai você, que não consegue agarrar uma bolinha dessas!

— Vamos os dois, então.

Sem demora, encontraram um lugar onde havia uma falha entre as madeiras do biombo comprido. Devia estar na hora do lanche dos pedreiros, porque não havia nenhum por ali, apesar de haver o som constante de uma betoneira. A bola estava perto de um monte de areia.

— Seu pai não devia estar por aqui?

— Eu acredito que sim.

— Sabe que eu nunca o vi?

— É? Não perde nada! Ele é terrível!

— Não deve ser tanto assim.

— Você que pensa. Por ele, eu só ia pra escola e voltava pra casa. Depois que minha mãe...

— O que foi?

— Nada. É que a minha mãe, sei lá, teve um lance no cérebro, e agora mora numa clínica.

— Que chato. Sinto muito mesmo.

— Ó, é o elevador. Acho que é o meu pai. Tem certeza que quer conhecer ele?

— Claro!

O elevador da obra trazia três homens. Entre eles, um se destacava pela altura. Usava um capacete de cor diferente, e tinha um guarda-mapa pendurado no ombro. Ainda estava bastante alto, quando Zeca grita

— Ô pai! Aqui embaixo!

O homem vira-se e acena sorrindo. Comenta algo com os companheiros, e olha novamente para o rapaz, sorrindo. Zeca não percebe que Mateus acabara de levar a mão à boca. O elevador estava algo distante, mas não o suficiente para confundir sua visão. Estavam na claridade do meio dia, e mesmo a penumbra não ocultaria o que ele acabara de perceber. O homem que acenou e, orgulhoso, gabava-se do filho para os colegas tinha algumas rugas, provavelmente menos cabelo, mas mesmo assim, Mateus o reconheceria. Aquele homem era o mesmo que estava em pé ao lado de sua mãe na fotografia que por tantos anos contemplou, na esperança de que estivesse vivo, como o irmão gêmeo. O engenheiro que Zeca chamou “ Ô pai!” era, sem qualquer dúvida, o SEU pai.

Mateus desata a correr para o buraco por onde entraram, desesperado. Zeca, surpreso, corre atrás, chamando-o. Salta por sobre o tapume, arranhando-se. Toca o gramado do outro lado, correndo sem ver para onde. Zeca berrava “espera” em seu encalço. Mateus acelerava, atravessando o campinho, adentrando no mato além. O amigo não parou um segundo, e estava chegando cada vez mais perto. A gramínea era alta, chegando à altura do peito dos garotos. O que se dizia centro-avante corria, ouvindo o som da grama alta abrindo-se diante de suas pernas, até que um barranco surge inesperadamente diante de si. Ele tenta parar, mas Zeca está logo atrás, e com o impacto, ambos caem rolando.

Esfolados, os dois percebem um ao outro, deitados sobre o cascalho de uma pedreira antiga e desconhecida. Um deles, o goleiro, arrasta-se na direção do outro, que parece estar tonto. Mateus caiu sobre algo mais denso que a pedra brita, que machucou suas costelas, talvez com gravidade. Tinha uma única imagem na mente: o pai, sorridente, e o amigo, feliz por ser reconhecido.

— O que aconteceu, Mateus? Puta merda! A gente quase morreu!

— E que diferença ia fazer? O meu pai nunca soube que eu existi! O meu pai é o SEU pai, cara!

— Mateus, calma. Não é o que você ta pensando.

— Como assim? Como assim não é o que eu to pensando?

— Não fica nervoso, por favor... cara... eu sou...

— É o quê? É filho do meu pai? É isso?

Mateus se levanta. Sob seu peito esfolado e a camisa esfarrapada, nas pedras, estava o cabo pesado de uma marreta esquecida pelo tempo.

— Eu queria contar... mas não é assim tão simples.

— Quer dizer que você sabia? Sabia dessa mentira toda? E dizia que era meu amigo?

— Eu sou mais que seu amigo, Mateus. Meu nome é José! José! Cara, você nunca percebeu o quanto nós somos parecidos?

Era verdade. Ele nunca tinha notado a semelhança. Não eram idênticos, mas não havia dúvida de que tinham o mesmo tipo de cabelo, a mesma cor de pele, os mesmos traços do rosto, e agora que Mateus não era mais “o gordinho da turma”, pareciam-se ainda mais. Porém, ao invés de sentir alegria pelo reencontro improvável com o irmão gêmeo que julgava morto, seu sangue ferveu em ira. Sentiu-se traído, e o amor que tinha pelo amigo, por quem esperava ver uma vez por ano consumiu seu entendimento em um instante, fazendo-o transbordar de ódio, revolta e mágoa! Tantos anos tendo uma inveja infantil pela figura misteriosa do pai do outro, acabando por revelar-se o seu próprio! José percebeu a revolta nos olhos do outro. Tenta em vão pôr-se em pé, mas a canhota de Mateus atinge-o em cheio no peito. As costas de José enterram-se no cascalho. Mateus tem tempo de juntar a madeira roliça, e tomado de brutalidade avança contra o que está caído. “Não” implora José. A arma sobe inclemente, e com um urro desesperado, Mateus desfere um único golpe contra o rosto indefeso do irmão.

— Ele está dormindo assim desde ontem, Dra. Márcia.

— Bem, o quadro dele é estável. Vai dormir bastante por causa de medicação, não se preocupe.

— A polícia encontrou ele caído na pedreira velha, todo machucado. Por Deus, Doutora. Será que ele tentou se matar?

— Não, Suzana. Não mesmo. Ele só está passando por uma fase difícil.

— Todo ano nessa época é a mesma coisa... ele é obcecado pelo tal “amigo”. Eu já o espiei, enquanto arruma o campinho. E no dia 10, ele joga sozinho, o dia inteiro, conversando com esse Zeca que só ele vê. Por quê esse ano tive de fazer plantão? Tinha até me esquecido que dia era.

Mateus inspira pesadamente.

— Será que algum dia ele vai se recuperar, doutora?

— Sabe, uma hora ou outra, nós temos que deixar nossos mortos descansar, Suzana. Ele vai sobreviver.