A Morte do Diabo

 

O significado do nome Lúcifer[1] é aquele que traz a luz. E, assim cantavam os anjos menores, até que lhes fora proibido este canto. Desde então, o referido apelado corrói os temos anunciado aquele que arma ciladas. Satanás sabe perder-se por si mesmo.

 

Satanás do latim satanases : hebraico 'o que arma ciladas'.

 

O diabo em diferentes religiões que lidam como sendo o oposto da luz e metáfora para o Mal, que faz parte do imaginário de muitas culturas ao redor do mudo, sob umas interpretações diferentes. O diabo é uma figura universal e se apresenta de variadas formas, quer no judaísmo, no islamismo, no hinduísmo, no budismo e no taoísmo. Como uma oposição a Deus, a definição do mal, uma criatura terrível que corrompe o homem e transforma tudo em chamas.

 

Nas religiões ocidentais, Deus e o Diabo figuram em oposição quase absoluta, não obstante os mitos de muitas sociedades os coloquem em íntima conjunção, sendo que a existência do Bem pressupõe diretamente a existência do Mal”.

 

No judaísmo, diferentemente do cristianismo, não há uma figura do Diabo. Satan significa literalmente inibidor, alguém que impede algo de acontecer. O judaísmo ortodoxo vê Satanás como uma metáfora para o ato de inclinar-se para o mal. Isso está de acordo com os ensinamentos talmúdicos da religião.

Em Gênesis 6: 5 e 8:21, é dito que "a imaginação do coração do homem [é] o mal", e desta frase extrai-se o conceito de yetzer hará, que representa essa noção de disposição congênita para fazer o mal, o que viola a vontade de Deus.

 

No judaísmo, Satã não é exatamente o Coisa-Ruim. A ele cabe pegar no pé da humanidade, apontando nossas falhas. No livro de Jó, ele age como promotor da divina corte, angariando provas de que o homem não merece o amor do Criador. Ele também dá uma mão na construção do bezerro de ouro que os israelitas adoram enquanto Moisés está no Monte Sinai. De qualquer forma, a Torá afirma várias vezes que foi Deus quem criou o bem e o mal.

 

No Alcorão, o Diabo é Iblis. Ele não seria o inimigo de Alá porque é apenas uma de suas criações, não tendo a capacidade de opor à superioridade do deus. Também chamado de Shaitan, o Satanás consideraria os humanos como seus maiores inimigos.

 

Ele, no entanto, não tem poderes. Sua influência na humanidade está no fato de que este tenta, de toda forma, fazer com que as pessoas não obedeçam a Alá, usando de tentações.

 

O inimigo singular de Shaitan é a humanidade. Ele pretende desencorajar os humanos de obedecer a Deus. Assim, a humanidade é advertida para lutar contra as perversidades de Shaitan e as tentações que o demônio coloca nelas. Colaborando apenas com ideias, tudo que acontece depois é por escolha humana.

No Budismo, há Mara. Sendo o contrário de Buda, que significa iluminação, essa figura representa a ilusão. Segundo o monge Nyanaponika Thera, ele é a "personificação das forças antagônicas à iluminação".

 

No budismo não existe Diabo, mas há um sujeito diabólico: Mara. Ele tentou Gautama Buddha, oferecendo-lhe lindas mulheres (em algumas versões, suas próprias filhas). Ele tira a atenção dos homens da vida espiritual, fazendo as coisas mundanas atraentes e procurando transformar o negativo em positivo. Outra interpretação é de que Mara representa os desejos em nossa mente que nos impedem de ver a verdade, uma parte ruim nossa que deve ser derrotada.

 

Para o Budismo, Mara é o oposto de Buda, ou seja, uma vez que Buda representa a iluminação, Mara é a ilusão. Isto é personificado como o demônio Mara que teria tentado impedir Siddhartha Gautama de alcançar a iluminação e também vive no interior de cada pessoa tentando mantê-la adormecida na ilusão Maya do mundo.

 

Mara tentou o Buda na noite antes dele se tornar iluminado. Mara disse ao Buda que ele poderia se tornar um homem de grande poder – um político, um rei, um presidente, um ministro ou um bem-sucedido homem de negócios com dinheiro e lindas mulheres – se ele desistisse de sua prática de plena consciência. Mara tentou duramente convencer o Buda, mas não funcionou.

 

Mara não foi desencorajado pelas palavras do Venerável Ananda. Ele apenas riu enquanto ouvia ao jovem. Quando Ananda terminou, Mara riu e perguntou: “Realmente seu professor diz que tem inimigos?”

Isto fez Ananda ficar muito desconfortável. Não parecia correto dizer que o Buda tinha inimigos, mas ele disse! O Buda nunca disse que tinha inimigos. Se você não está concentrando muito profundamente ou plenamente consciente, pode dizer coisas que são contrárias ao que você sabe e pratica. Ananda estava confuso. Ele entrou na caverna e anunciou Mara, esperando que seu professor dissesse, “Diga a ele que não estou em casa!” ou “Diga a ele que estou em uma conferência.”

 

Para surpresa de Ananda, o Buda sorriu e disse: “Mara! Peça a ele para entrar!”

Ananda estava perplexo pela resposta do Buda. Mas ele fez o que o Buda disse e convidou Mara para entrar. E você sabe o que o Buda fez? Ele abraçou Mara! Ananda não podia entender isso. Então o Buda convidou Mara para sentar no melhor lugar da caverna e virando-se para seu amado discípulo disse: “Ananda, você poderia ir e nos preparar um chá de ervas?”

 

Como você deve ter adivinhado, Ananda não estava muito feliz com isso. Fazer chá para o Buda era uma coisa – ele poderia fazer milhares de vezes ao dia – mas fazer chá para Mara não era algo que ele queria fazer. Mas como foi o Buda que pediu, ele não poderia recusar.

 

Embora Ananda tenha se sentido desconfortável ao ver Mara, Mara já o tinha visto, portanto não poderia se esconder. Eles se cumprimentaram.

 

Mara disse: “Eu quero ver o Buda.”

Quando o líder de uma corporação não quer ver alguém, ele pede para sua secretária dizer: “Desculpe, ele agora está em uma conferência.” Embora Ananda quisesse dizer algo assim, sabia que estaria mentindo e ele queria praticar o Quarto Treinamento - não mentir. Portanto ele decidiu dizer o que estava em seu coração para Mara.

 

Foi responsável por tentar o príncipe Sidarta, Gautama Buddha, ao “oferecer-lhe lindas mulheres” que, nas lendas, normalmente são suas filhas. Ele também é conhecido por tirar os homens do caminho espiritual, estimulando a valorização das coisas mundanas.

 

Não existe nenhuma representação direta do Diabo. Em contraste ao cristianismo, o hinduísmo apenas reconhece que pessoas podem fazer coisas ruins. Isso aconteceria quando elas estivessem submetidas a entidades chamadas de asuras.

 

Mais próximo do Satanás seria Rahu que, na mitologia indiana, foi derrotado por Vishnu, um dos deuses principais do hinduísmo. Além disso, é um planeta maléfico natural responsável pelos eclipses.

Em contraste com as tradições judaico-cristã e islâmica, o hinduísmo não especifica nenhuma força maléfica central, mas reconhece que as pessoas podem realizar atos de maldade quando dominadas temporariamente por entidades conhecidas como asuras. Rahu teria uma característica mais próxima do Diabo dos cristãos, se bem que Vishnu encarna para destruir o mal quando ele se torna muito forte.

 

 Na religião iorubá original, Olodumaré é a fonte suprema de tudo, inclusive do bem e do mal. O Diabo, portanto, como força contrária a esse equivalente do Deus monoteísta, não tem lugar. Exu, mesmo identificado com atitudes classificadas de "más" pela moral cristã, é um orixá, ou seja, foi criado por Olodumaré, então nunca atuaria contra os seus princípios.

 

Para a Quimbanda, Lúcifer e Belzebu não representam um submundo de trevas, nem são divindades essencialmente más. “Não os consideramos demônios que regem o inferno e muito menos que atormentam a vida de pecadores ou induzem os seres humanos ao vício, à pobreza ou qualquer outra coisa que seja comum à visão cristã fundamentalista”, afirma Herler.

 

O filósofo Michel Foucault foi o primeiro a teorizar sobre a divisão social entre "loucos e sãos" (ou "possessos e limpos"). Com o fim da lepra na Europa, os leprosários estavam condenados à extinção. Para manter instalações e empregos, nada mais prático do que arrumar novos inquilinos. Nasce a casta dos loucos, volta e meia ampliada com as "vítimas de possessão demoníaca".

 

Essa interpretação chegou aos tribunais brasileiros. Guido Arturo Palomba, mais famoso psiquiatra forense do Brasil, afirma que epilepsias psicóticas "sempre entravam nos processos como possessões". Basta examinar a origem da palavra: epilepsia é "ep" (acima) mais "lepsis" (abater). "Os antigos acreditavam que era alguma força que vinha por cima e abatia o indivíduo", diz Palomba.

 

O psiquiatra relata um caso exemplar. Uma mulher foi com uma amiga a uma loja de umbanda. Conheceu um homem. As duas, mas ele, vão para uma casa. Fazem um ritual de macumba. Uma das mulheres entra em transe e incorpora a entidade Pomba-gira.

 

Pega uma faca e desfere um golpe contra o homem. Sai do transe e tenta acudi-lo. Ele morre. A assassina diz que nada lembra e não tem culpa: quem matou foi a Pomba-gira. Apesar de todas as alegações de possessão demoníaca, a prova final foi dada com eletroencefalograma. A assassina era epilética, dona de disritmia em estado crepuscular, em que padecia de atos semiautomáticos, sempre com amnésia. A ciência também exorciza.

 

No   século   XX, vemos   uma   retomada   lenta   do   interesse   no   estudo   do sobrenatural e em particular no Diabo[2].  Em seu livro clássico O Declínio da Idade Média, editado pela primeira vez em 1919, o celebrado autor Johan Juizinha dedica algumas palavras e referências, à presença marcante do Demônio ou Diabo no cotidiano medieval. 

 

O autor em diversos aspectos seria um dos “ancestrais” do gênero histórico denominado como “História das Mentalidades ou dos Comportamentos”, que floresceu na segunda metade do século passado.  Juizinha percebeu que o Demônio estava muito “vivo” no cotidiano das pessoas que viveram e descrevem os séculos XIV e XV.

 

Como as religiões monoteístas se colocavam diante da temática do Diabo?  A posição da Igreja é contraditória, mas, apesar de criticar certos exageros, é uma instituição que aceitou e utilizou-se de conceitos ligados ao Diabo. Desde a Antiguidade Tardia, os autores da Patrística, que definiram e conceituaram a teologia clássica cristã, debateram e advertiram sobre o Diabo.  S.  Jerônimo é uma das mais fortes referências. João Crisóstomo em Antióquia advertia seus paroquianos sobre os riscos do Diabo. Isidoro de Sevilha falava intensamente e extensamente sobre o Diabo.

 

 Agostinho não tem dúvidas, na sua ótica neoplatônica e cristã, de que o Diabo transita no mundo inferior, na Cidade dos homens. Cria-se o conceito de que se travava uma batalha entre as forças do Bem e do mal.

Nas palavras de Nogueira: “[...] os cristãos concordavam em que  a  queda  do  homem  não  foi  mais  que  um  episódio  na  história  de  um  prodigioso combate  cósmico,  iniciado  antes  da  Criação  [...]”.5  A  queda  do  homem  teria  sido precedida  por  uma  revolta  de  algumas  das  falanges  celestiais  contra  Deus  e  estes haviam sido precipitados do céu por Deus.

 

Portanto, transitavam na terra e seduziam os humanos para obter adeptos a seu partido. Até mesmo gente culta como os teólogos e pensadores S.  Tomás de Aquino, fundamentado   e   autorizado   por   Santo   Agostinho, determina   que: “Omnes   quase visibilize font in hoc mundo possuinte fieri per da emones”. Muitos dos autores e pensadores medievais demonstram certa dose de crítica a esta postura da Igreja, mas nunca negam a existência e a presença do Diabo.  Os opositores mais ferrenhos da Igreja, no medievo, foram os heréticos dualistas também denominados manques. 

 

Foram sendo reprimidos através do tempo e do espaço: maniqueísmo, mas deísmo, os palacianos, os gorgomilos e os albigenses.  Acreditavam na existência de dois poderes antagônicos e contradiziam o monoteísmo trinitário. Isso era a negação de dogmas fundamentais da Cristandade e sugeria a necessidade de repressão.   Eram, portanto, mais   adeptos   de   presença   do   mal, como entidade independente, do que a própria Igreja que criticavam. (Cf. NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão. Bauru: Edusp, 2000. 4    FELDMAN, Sergio Alberto.  Exegese  e  alegoria:  a  concepção  de  mundo  isidoriana  através  do  texto bíblico. Dimensões:   Revista   de   História,   Vitória,   UFES,   v.   17,   p.   133-149,   2005.   Inúmeras comunicações em eventos abordam a visão de mundo isidoriana e descrevem a presença do Diabo no mundo.  Inclusive  sua  associação  com  os  judeus. 

(Veja:  ______.  Isidoro  de  Sevilha  e  a  desmontagem do  Judaísmo.  In:  ANDRADE  FILHO,  Ruy  de  Oliveira.  (Org.).  Relações  de  poder,  Educação  e Cultura na Antiguidade Idade Média. Santana do Parnaíba: Solis, 2005. p. 341-352. v. 1. 5    NOGUEIRA, 2000, op. cit., p. 29. 6    “Tudo o que acontece visivelmente neste mundo pode ser obra dos demônios”. AGOSTINHO, Santo apud HUIZINGA, J. O Declínio da idade média. São Paulo: Verbo: Edusp, 1978, p. 219).

 

O Judaísmo “oficial’ era erudito e se fundamentava em estudos metódicos e constantes que exigiam um elevado nível material, para se dedicar de maneira intensa aos profundos e demorados estudos talmúdicos”.

Em locais e períodos nos quais havia estabilidade e plena tolerância aos judeus por parte da Igreja e das autoridades seculares, os judeus podiam fundar suas academias talmúdicas (ieshivot).  Assim se deu na Espanha muçulmana na Idade de Ouro (séc.  IX a XI); na Espanha cristã na Idade de Prata (séc.  XII e XIII); em Ashkenaz (séc.  X e XI) e na Polônia moderna (séc.  XVI e XVII) em certos períodos isolados.

 

No geral havia períodos de crise e perseguição, nos quais   a   religiosidade   popular   predominava   no   seio   da   população   judaica:   uma intersecção de religiosidade erudita na superfície e na liderança religiosa, lado a lado com crendices e religiosidade popular no seio da massa judaica, que se via diante de perseguições e preconceito. Certa “circularidade das ideias e da cultura” do topo à base e desta ao topo;

No   âmbito   externo, os   judeus   que   vivem   isolados   e discriminados, no seio da sociedade cristã (por exemplo) e são acusados de serem aliados do demônio, também acreditam no seu poder maligno. Os “aliados do demônio” (judeus) também o temem e se protegem dele com amuletos, exorcismos, rezas e proteções.

 

É bastante conhecida dos estudiosos da Idade Média a dança macabra (França) ou a dança dos mortos (Inglaterra).  O tema foi vastamente descrito através de textos, pinturas e músicas, em especial nos séculos que seguiram a Peste Negra (1348).  Em todas as formas de expressão artística a ênfase era na luta do homem para viver diante das doenças, espíritos malignos, o demônio e a morte.

A relação entre Diabo-Judeu é um tema de muita reflexão.  Por seu lado, o judaísmo era rigidamente monoteísta e não poderia permitir em seu seio a presença de entidades satânicas que existissem à revelia da vontade divina.

 

Trata-se de uma contradição que acreditamos seja fruto do meio circundante: tanto a Cristandade, quanto o Islã aceitavam e apontavam para existência de hostes do mal e dos riscos de ser seduzido pelos seus representantes. 

 

O Judaísmo não era imune a estas ideias e foi fortemente influenciado por elas ainda no período do segundo Templo (entre 530 a.C. e 70 d.C.), quando se escreveram alguns dos livros canônicos, que tratam da existência do Mal. O mais marcante é o livro de Jó, no qual Satã é um servo da corte de Deus. Uma espécie de promotor do reino celeste, que fustiga a humanidade com acusações e reprimendas

A glória do Ocidente se divide entre Deus e o diabo. Não se trata de partir de olhar antiteticamente teológico. Questionam alguns se o Diabo existe e quantos nomes ele utiliza. Ciosamente traz o Antigo Testamento que não existe a menção ao diabo. Enfim, a entidade nasceu, fecundou e até procriou junto ao cristianismo.

 

Mesmo no episódio da tentação e da serpente que provocou a queda de Adão e Eva, relatado em Gênesis 3, depois do ritual envolvendo a expiação e o bode expiatório em Levítico 16, e mais adiante, o surpreendente Livro de Jó[3], no qual apareceu pela primeira vez Satanás.

 

Já o episódio da serpente, influenciada pelas mitologias ou lendas de outras culturas do oriente Médio, com as quais os judeus tiveram contato, já que a serpente, nessas culturas era símbolo de sabedoria, astúcia e poderes maléficos e, por isso, fora tardiamente associado ao Diabo.

 

A representação do bode expiatório é tão vasta como controvertida e há muitas teses que indicam ora que o bode seria Jesus, porque carrega as culpas do mundo e, é morto no deserto; já outros defendem que o bode expiatório é o Diabo, sendo o responsável por todas as culpas dos humanos, pois fez os primeiros pais pecar, e primeiro foi Adão a falhar. E, depois veio a ser associado somente ao Diabo.

 

Na Bíblia, a figura do bode resta relacionada segundo o cristianismo ao Messias. O bode bem como o cordeiro é um dos animais considerados pelos sacerdotes de Israel como próprios para serem oferendas em sacrifício. Seriam figuras do supremo sarifício que o Messias faria ao dar sua vida pela humanidade.

 

Em Levítico, no qual há um bode que não é sacrificado. No capítulo 16: 10 lê-se: “mas o bode sobre o qual caiu a sorte para Azazel será apresentado vivo ao Senhor para se fazer propiciação e será enviado para Azazel no deserto”. A questão de este bode representar Jesus ou Satanás tem gerado inúmeros debates, porém o fator de nosso interesse é notar que o nome Azazel passou a ser utilizado para designar o Diabo ou um de seus demônios e a figura do bode passou a ser associada a Satanás.

 

O bode foi ainda escolhido para representar o Diabo pela ligação de sua imagem à luxúria. Discorrendo a este respeito Angélica Varandas (2006, p.96) cita o De Animalibus – Livro XII das Etymologiarum, de Isidoro de Sevilha, que aponta o caprino como um animal lascivo, impudico e ansioso sempre de copular. Ainda na citada obra, curiosamente Isidoro afirma que o membro fálico do animal é tão ardente que o seu sangue é capaz de dissolver o diamante. 

 

Por encarnar características de uma libido desenfreada, o bode na antiguidade era utilizado como símbolo de fertilidade e procriação estando ligado aos festivais de Dionísio (Grécia) ou Baco (Roma).

Igualmente vale salientar a imagem do deus Pã e dos sátiros, que, por suas características físicas, também estão associados ao bode. Sobre os sátiros, são muitas as referências antigas de que, assim como os bodes, possuíam a libido constantemente aflorada, não sendo poucas às vezes em que são retratados com os membros eretos. As representações do Diabo como possuindo chifres e/ou cascos, também estão ligadas a esta sua associação com o bode.

 

Assim como o bode, na linguagem popular o cão também conserva este laço com o aspecto negativo. São comuns as expressões “mundo cão, vida de cão”, etc. Não podemos, ainda, esquecer que a palavra “Cão” é um dos muitos nomes que Riobaldo se utiliza para denominar o Diabo em Grande Sertão: Veredas.

Sir Arthur Conan Doyle, em “O Cão dos Bakersville”, foi outro autor que soube explorar com talento a ligação que popularmente é feita entre o cão e o Diabo. Na literatura é emblemático o encontro narrado por Goethe entre o doutor Fausto e Mefistófeles, no qual o demônio se manifesta na forma de um cão preto antes de assumir sua forma real. Mais uma vez, teologia e literatura são concordes na utilização também do cão como símbolo do mal, e, a segunda o utiliza também para retratar fisicamente o Diabo.

 

Um dos livros filosóficos de todo Antigo Testamento é o livro de Jó que instituiu um certo big brother celestial. E, Deus provoca Satanás, que nesse livro é identificado como um dos filhos de deus e que frequentava o céu com bastante intimidade e liberdade.

 

Para uma disputa, onde os dois observariam tudo do camarote. Jung, em Resposta a Jó, afirma que «Satanás talvez seja um dos olhos de Deus que perambula sem rumo certo pela terra» (Jung, 2001: 16). Jó vai duas vezes para o paredão sem clemência alguma.

 

Na primeira, Deus permite que Satanás tire tudo que ele tem: fazendas, filhos, servos, bens, e ele vence. Não satisfeito. Deus pela segunda vez o envia para a beira do abismo e permite que Satanás toque em sua carne, mas Jó não renega a Deus e triunfa novamente.

 

A alma de Jó é oferecida numa bandeja para Satanás, há um pacto entre Deus e Satanás, e não seria exagero dizer que o mito de Fausto, muito antes de Marlowe, Shakespeare, Goethe, Thomas Mann, Paul Valéry, Guimarães Rosa, nasceu aqui, com uma diferença: Jó não sabia de pacto algum.

 

O Livro de Jó consiste em uma teologia do sofrimento, pois nele, pela primeira vez, o caráter e a justiça de Deus são questionados por um pobre mortal que sofre muito além de suas forças. Em verdade o confronto não se dá entre Satanás e Jó, mas sim entre Deus e Jó, uma vez que Satanás é apenas um instrumento para realizar a vontade de Deus. Aqui se acentua o caráter destrutivo de Javé.

 

Jó questiona a justiça divina e Deus não responde ao que ele pergunta, considera isso uma ousadia, sente-se embaraçado e o esmaga, mostrando não sua justiça, mas seu poder, com discurso arrasador.

Se Deus era onisciente, por que provocou Satanás? Afinal, nem ele pode ser tentado além do que pode resistir... O autor desse livro «[...] imagina Jó sofrendo em um mundo governado por um deus que faz apostas com o demónio, manipulado e controlado por um demónio» (Miles, 1997: 347).

 

Retomamos nossa ideia, anteriormente já exposta: essa aposta funda o pacto e o mito de Fausto, enfim, revela-nos um mundo regido por dois demónios orgulhosos, e a partir daí o caráter demoníaco do Senhor Deus.

O imenso discurso de Deus de nada serve. O silêncio de Jó é o silêncio dos vencedores e o silêncio de Deus é o silêncio dos perdedores. A partir de então Deus não fala mais no restante do Antigo Testamento.

 

No Antigo Testamento não existe a figura do Diabo e, assim, tanto o bem quanto o mal procedem de Deus. E, citamos alguns exemplos a destruição de Sodoma e Gomorra, a Torre de Babel, as dez pragas do Egito, e corrobora nosso pensamento Messadié que, em sua História geral do Diabo.

 

O Novo Testamento já inicia com o episódio envolvendo o Diabo: a famosa tentação de Jesus, relatada em Mateus IV. Ele é descrito como o tentador, mas Jesus não se assusta com sua presença, parece que são conhecidos de longa data. Se pensarmos na inteligência de Lúcifer e sua magnífica revolta, que levou consigo a terça parte dos anjos, as perguntas do Diabo são simplesmente ridículas. Como todos sabem, Jesus resiste à tentação.

 

Em todo o Novo Testamento são muitos os casos de possessão demoníaca como, por exemplo, o endemoninhado de Gadara. Jesus curou diversos endemoninhados, e a palavra demónio passou a ser associada ao Diabo.

 

Aqui temos um problema com a etimologia da palavra. No Velho Testamento, «Satan» é uma palavra em hebraico que significa «adversário». Em Jó, Satanás é um  Membro do Conselho de Deus. Até aqui, Satan não é o Diabo, só se tornará o Diabo pelos comentaristas cristãos. O problema ocorre quando o Diabo passa a ser designado pela palavra dáimon ou demónio. Luther Link esclarece que «um dáimon era um espírito mediador entre deuses e homens» (Link, 1998: 25).

 

Esse dáimon poderia ser um espírito bom ou perverso, porém na tradução do Novo Testamento para o grego a palavra dáimon manteve somente a acepção de espírito do  Mal. Aqui está, portanto, a origem do termo endemoninhado: aqueles que estavam possuídos pelo Diabo. Na realidade, Quevedo, em sua obra Antes que os Demónios voltem, esclarece que todos os casos de possessão demoníaca do Novo Testamento tratavam-se de pessoas com sérios distúrbios psíquicos.

 

O Novo Testamento se desenrola e o Diabo progride junto com ele. O evangelista Lucas informa que Satanás entrou em Judas e por isso Judas traiu Jesus. Deduzimos então que Judas era inocente.

O próprio Jesus foi acusado pelos fariseus de estar endemoninhado já que, segundo eles, expulsava demónios pelo poder de Belzebu. Lucas faz com que os demónios sejam os primeiros a reconhecerem a divindade de Jesus ao afirmarem: «Ah! Que temos nós contigo, Jesus Nazareno?... Bem sei que és o santo de Deus!» {Lucas 4.34).

 

É no Apocalipse, entretanto, escrito em torno do ano 100 d.C., que finalmente é  estabelecida a conexão entre a revolta de Lúcifer, a queda dele e da terça parte dos  anjos, a queda de Adão e Eva e o episódio da serpente no paraíso, a tentação de Jesus  e o grande Armagedon - a batalha final do bem contra o mal. Citando trecho do Apocalipse 12.7-9:

Robert Muchembled, em seu livro Uma história do Diabo, resume as conexões da trajetória de Lúcifer/Serpente/Satanás/Diabo:  “Precisaram, assim, casar a história da serpente com a do rebelde, do tirano, do tentador, do sedutor concupiscente e do dragão todo-poderoso”.

 

Um autor declarou recentemente que a vitória do cristianismo neste domínio consistiu em tomar emprestado um dos mais importantes modelos narrativos do Oriente Próximo: o mito cósmico do combate primordial entre os deuses, que tem na condição humana seu desafio fundamental.

 

Esta versão pode, segundo ele, ser assim resumida: um diabo rebelde ao poder de Jeová faz da terra uma extensão de seu império para nela reinar pelo poder do pecado e da morte. «Deus deste mundo», como o denomina São Paulo, ele é combatido pelo filho do Criador, o Cristo, por ocasião do mais misterioso episódio da história cristã, a Crucificação, que combina uma derrota e uma vitória simultâneas.

 

A função de Cristo no decurso dessa luta, que só terminará no fim dos tempos, é ser o libertador potencial da humanidade, em confronto com Satã, seu adversário por excelência. (Muchembled, 2001: 19).

Nunca tantos escreveram tanto sobre o Diabo como na atualidade. O herói recriado por Milton, retratado por Blake, adotado pelos românticos, está na moda, agora sem a barba, os chifres e o rabo que o caracterizavam na Idade Média.

 

Luther Link em O diabo - A máscara sem rosto defende a ideia que no Antigo Testamento Satanás não era adversário de Deus, mas o seu cúmplice. Para ele o Diabo não ê uma pessoa e pode ter muitas máscaras, porém, sua essência é uma máscara sem rosto. Link relembra que para Espinosa Deus entregou ao Diabo os pecadores.

 

Deduz então que o Diabo é usado por Deus, trabalha para Deus, e nesse sentido não está em conflito com ele. Termina a introdução de sua obra e a apresentação deste personagem espinhoso afirmando:  O Diabo não é meramente uma criação literária. Ele é real, faz parte da realidade da civilização ocidental.

Talvez o motivo de o Diabo despertar nosso interesse resida no fato do Diabo definir Deus tão seguramente quanto Deus o define. Graças a Deus pelo Diabo. (Link, 1998: 22).

 

A tese geral de Custe é que, o que leva o Diabo a viver ruminando, desconsolado, impotente, tecendo armadilhas, é sua nostalgia do céu. Já para Northrop Frye em sua obra Códigos dos Códigos - «a base do papel que Satã representa na Bíblia é o papel de promotoria» (Frye, 2004: 76).

 

Para Messadié em sua História geral do Diabo o mito do Diabo é um mito espinhoso. Génesis é original por apresentar a serpente como prefiguração de Satanás, o Diabo não existe no Antigo Testamento sendo que o Bem e o Malsão oriundo exclusivamente da vontade de Deus.

 

Para este crítico, no Novo Testamento Satanás perde o estatuto de membro do conselho celestial que tinha no livro de Jó e passa a ser o adversário de Jesus, portanto, é a partir do Novo Testamento que Satanás se divorcia de Deus.

 

Ainda defende a ideia de que no Antigo Testamento Deus e o Diabo tinham relações extremamente secretas e que foi a partir da grande crise do Judaísmo, com o nascimento de Jesus, e a fundação da religião cristã, na charneira das duas eras que o Diabo se define como inimigo confesso e eterno de Deus. Messadié formula a pergunta que não quer calar: «Existe um ou muitos Satanás?» (Messadié, 2001: 309).

 

 Respondemos à pergunta: muitos. E é por isso que Lúcifer, Satanás, o Diabo se apresenta como magnífico personagem para a Literatura, Pintura e Música, além de ser, é obvio, muito importante para a Teologia, quase tanto quanto Deus. Ninguém pode ter o monopólio dos personagens bíblicos, muito menos do Diabo.

Basta ver como ele transitou da Bíblia para magníficas páginas da literatura. A literatura se abriu como palco privilegiado e propício para contar a antiodisséia de Lúcifer e em várias literaturas de várias línguas, o Anjo de Luz foi retratado ou teve a oportunidade de narrar em primeira pessoa, por meio do espelho das palavras, a sua versão dos fatos.

 

Seria uma tentativa insana relacionar todas as obras nas quais ele figura, ou como protagonista ou como coadjuvante. Citamos relances das obras de nossa preferência e também as mais conhecidas.

 

Na “Divina Comédia”, terminada em 1321, Dante Alighieri descreve o Inferno[4] com  riquezas de detalhes sensoriais e pictóricos e o Diabo é retratado da seguinte forma:  seu corpo é gigantesco, é horroroso (tanto quanto foi belo antes da queda), tem três  caras em sua cabeça: a da frente era vermelha, a da direita de uma cor entre o branco  e o amarelo, a da esquerda é negra, possui seis enormes asas de morcego, que produziam o vento que congelava o grande lago do Cocito, chorava com seus seis olhos,  e pelos três queixos escorria uma baba sanguinolenta, em suas bocas, mastigava três traidores - na boca da frente. Judas, com a cabeça para dentro e as pernas para fora; nas outras duas bocas, Brutus e Cássio, presos pelas pernas, com a parte de cima do corpo pendurada para fora.

 

Nesta obra não há um resgate do Diabo, ele está no mais profundo do Inferno com a missão de torturar os que traíram o seu próprio sangue (ou a confiança). O Inferno é assombrosamente maior que Lúcifer, que não passa de um detalhe daquele.

 

A antiodisséia de Lúcifer começa a ser retratada na obra O Paraíso Perdido, de John Milton, publicada emir_ 1667 e acrescida de dois novos cantos em 1674. Aqui o Satanás é o protagonista que luta contra os arcanjos, engana Uriel e acaba derrotado por Gabriel, Miguel e Rafael.

Fausto, o sábio alemão que vende sua alma ao demónio Mefistófeles em troca de conhecimento e poder, não foi criação de Christopher Marlowe^". É uma lenda popular cuja autoria se perde no tempo.

 

No século XVI, a história se tornou conhecida por meio do Faustbuch (O Livro de Fausto), obra anónima alemã que foi traduzida na Inglaterra.

Era um texto moralista, provavelmente escrito por algum luterano furioso. Marlowe deu lustro estético à obra e resgatou a dignidade do personagem! que, no entanto, ainda desce ao inferno na cena final, de muito impacto junto ao público da época".

 

Caberia a outro alemão, Wolfgang von Goethe[5], salvar o atormentado Fausto que em seu poema dramático é resgatado pelos anjos no ato final. O Fausto, de Goethe, é a versão mais conhecida do mito, o que torna o pacto com o Diabo uma temática universal.

Impressiona-nos as semelhanças existentes entre Fausto e o Livro de Jó: o Senhor dialogando com Mefistófeles, permitindo que ele tente Fausto. Já no famoso «Prólogo no Céu», Mefistófeles informa que o que ele pretende é atormentar e seduzir os homens e que tem pena da humanidade que está sempre a sofrer.

 

É irónico e debochado ao afirmar que ver de perto o Eterno é motivo de orgulho para um simples Diabo.

 O ente iniciado se auto define como: «Eu sou aquele génio que nega e que destrói! [...] Sou parcela do caos, onde nasceu a luz» (Goethe, 2002: 59). Mefistófeles percorreu toda a alta literatura, do século XVI em diante.

 

Charles Baudelaire (1821-1867), o precursor do simbolismo francês e a partir de quem surgem na França os chamados poetas malditos quem em “As Litanias de Satanás”, invoca a piedade do Tinhoso:  Ó tu, o Anjo mais belo e também o mais culto.  Deus que a sorte traiu e privou do seu culto.  Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!  [...] Ocuparam-se dele outros escritores como Shakespeare, Thomas Mann e Paul Valéry.

 

Na peça teatral “O Auto da Barca do Inferno”, Gil Vicente coloca o Diabo e Anjo no ancoradouro onde estão duas barcas: uma que conduz os salvos ao Céu e outra que conduz os pecadores ao Inferno. O Anjo é chato e enfadonho e o Diabo é galhofeiro, alegre, insulta a todos, tem um discurso irónico e sarcástico, canta e dança e até discute em latim com o Juiz e o Bacharel.

 

No final da peça só os cavaleiros cruzados entram na barca que vai para o Céu, mas a barca que vai para o Inferno está lotada e parece muito mais divertida e animada.

 

No conto “O Senhor Diabo”, de Eça de Queirós, o escritor português enfatiza que a trajetória do Diabo é uma legenda trágica, luminosa, celeste, grotesca e suave! Para Eça, o Diabo é a figura mais dramática da História da Alma. A sua vida é a grande aventura do Mal [...] o Diabo é o representante imenso do Direito Humano. [...] Tem talvez nostalgia do céu! [...] O Diabo amou muito. (Queirós, 2008: 4, negrito nosso)

No conto A Hora do Diabo, de Fernando Pessoa o Diabo afirma, entre outras coisas, que tentou Jesus por incumbência de Deus e que ao negar Deus, ele o sustenta.

 

Em primeira pessoa o Diabo se define:  Eu sou aquilo a que tudo se opõe [...] sou negativo absoluto, a encarnação do nada. O que se deseja e se não pode obter, o que se sonha porque não pode existir - nisso está meu reino nulo e aí está assente o trono que me não foi dado. (Pessoa, 1997: 18-24)

Neste conto o Diabo diz que toda a estória os envolvendo (ele e Deus) não passa de questões de família.

 

N'0 Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, o Diabo é o protagonista, o grande herói destes dez evangelhos, entra na barca para salvar o salvador e toda raça humana. Perde perdão. Deus não aceita e o condena a ser eternamente o mal, o heterônimo, a outra face da medalha.

O Diabo aqui é transformado na terceira pessoa da Trindade, ou melhor, na segunda pessoa da Trindade, uma vez que Jesus como humano não faz parte da tríade. Trata-se de uma Trindade que se resume em duplos siameses.

 

No Brasil muitas são as obras que tratam da Estrela da Manhã. Citamos apenas duas: Macário, de Álvares de Azevedo, e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, ambas retomando o mito de Fausto.

Em Macário, o escritor romântico nos informa que o Diabo é a treva do não-ser. Macário não se assusta quando encontra o Diabo, esperava por ele há dez anos e afirmar: «A maior desgraça deste mundo é ser Fausto sem Mefistófeles. Olá Satã!» (Azevedo, 1855: 6).

 

E, Robaldo, o nosso Fausto sertanejo que filosoficamente debate com um interlocutor invisível a existência do Diabo e a possibilidade de pactuar com ele e vender a alma. Observemos como Robaldo coloca esta questão e os adjetivos que usa:

 

Principalmente a confirmação, que me deu, de que o Tal não existe; pois é não?  O Arrenegado, o Cão, o Dramalhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-pato, o Sujo,  o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Tema, o Acarape, o Coisa-Ruim, o Amarro, o Pé preto, o Cenho, o Duba-dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, 0-que nunca-se-ri, o Sem Gracejo... Pois, não existe!

 

E, se não existe, como é que se pode contratar pacto com ele? E a ideia me retorna. Dum mau imaginado, o senhor me dê  o lícito: que, ou então - Será que pode também ser que tudo é mais passado revolvido remoto, no profundo, mais crónico: que, quando um tem noção de resolver a vender  a alma sua, que é porque ela já estava dada vendida, sem se saber; e a pessoa sujeita  está só é certificando o regular dalgum velho trato - que já se vendeu aos poucos, faz  tempo? (Guimarães Rosa, 1988: 29, negrito nosso)

Charles Darwin com a publicação de A Origem das Espécies, em 1859, dispensou Deus para explicar a origem da vida no planeta terra e nos legou como ancestral um macaco.

 

Nietzsche matou Deus em sua obra A Gaia Ciência, publicada em 1888, quando na página 147, declara - Deus está morto, Deus continua morto! E nós o matamos! E que teria acontecido com Lúcifer? Parece que a partir de Nietzsche houve o que poderíamos chamar de desteificação do mundo, um mundo sem Deus. Esqueceram de matar o heterônimo indissociável de Deus e o mundo ficou desteificadol O que Machado de Assis tem a ver com a morte do Diabo?

0 Diabo em Machado de Assis[6]

Em duas obras relevantes de Machado de Assis, o Diabo figura no título, de forma significativa, no conto intitulado "A Igreja do Diabo" e uma parodia bíblica intitulada "O Sermão do Diabo". O Diabo que surge na produção machadiana organiza igreja e profere sermões.

 

E, o conto "Adão e Eva" tematiza a disputa entre Deus e o Diabo na obra da criação propósito da possibilidade de as coisas terem acontecido de forma diferente do que está registrado no Pentateuco, a narração é feita por um juiz de fora, com a aprovação de um padre carmelita.

Também em Dom Casmurro, no nono capítulo, essencial para a compreensão do enredo do romance, o Diabo propõe parceria a Deus, para a composição de uma ópera, o que acaba não dando certo.

Também em crônicas, o tema Deus-Diabo apareceu seja na forma de disputa pela supremacia, seja para a indicação dos dois lados que as coisas e as pessoas têm, nas contradições que são tão peculiares de  nossa humanidade.

 

O Diabo machadiano é, de certa forma, o irmão-gêmeo de deus, pois sempre aparecem juntos, em relação de necessidade e de complementaridade, há pistas para a atestada contradição e para a compreensão do grande mistério que é o ser humano.

 

Muito já foi escrito sobre Machado[7], citamos em seguida seus principais críticos:  Silvio Romero, José Veríssimo, Astrogildo Pereira, Lúcia Miguel Pereira, Augusto Meyer, Roberto Schwarz, Alfredo Bosi, John Gledson, Harold Bloom.

 

No entanto, a obra de Machado continua sendo uma arca que ainda oferece tesouros a serem explorados. Se muito se escreveu sobre Machado, parece que há uma certa relutância em explorar toda a variedade da obra do escritor e isto resulta numa falta de renovação dos estudos machadianos, criando um paradigma de reprodução de novos trabalhos que ainda giram em torno de Schwarz e Bosi, como tão bem apontou Gledson.

 

Também a chamada primeira fase do escritor, o Machado que existiu antes de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, publicado em 1881, é deixada de lado, e quando se explora esta fase, é na esperança de encontrar algo que ilumina o Machado maior.

 

Mas a obra de Machado é muito maior que os olhos oblíquos e dissimulados de Capitu pudessem prever, e, da sua ode ao verme: Ao verme que primeiro roer as frias carnes do meu cadáver...

Muito já se escreveu sobre adultério ou não de Capitu e talvez isto era tudo que Machado não quisesse. Talvez esta abordagem o tivesse deixado realmente com os olhos de ressaca, aliás, o escritor de ressaca.

Um dos eixos preferidos na obra de Machado é o constante intertexto com a Bíblia. Isto pode ser constatado em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro,  Esaú e Jacó e em vários contos. Alguns trabalhos já foram escritos explorando este eixo da obra de Machado, mas talvez fosse o caso de se retomar esta linha de análise, agora com o instrumental teórico correto sobre os estudos comparados entre Teologia e Literatura".

 

O Diabo, como já afirmamos, se oferece como magnífico personagem para a literatura e Machado não deixou de explorá-lo, já que para ele o diabo não é tão feio como se penta''...

Sempre que se menciona a questão do Diabo na obra de Machado de Assis, nos vem à lembrança imediatamente o conto A Igreja do Diabo (1884). Mas existem outros dois contos em que ele aparece: Adão e Eva (1896), e O Anjo Rafael, publicado no Jornal das Famílias (1869).

 

No conto Adão e Eva o juiz-de-fora Veloso, insigne em teologia, para assombro da carmelita Frei Beto, afirma que as coisas no Paraíso não aconteceram com o relato do Génesis:

Em primeiro lugar, não foi Deus que criou o mundo, foi o Diabo... [...] - Seja o Tinhoso. Foi o Tinhoso que criou o mundo; mas Deus, que lhe leu no pensamento, deixou-lhe as mãos livres, cuidando somente de corrigir ou atenuar a obra, a fim de que ao próprio mal não ficasse a desesperança da salvação ou do benefício. E, a ação divina mostrou-se logo porque, tendo o Tinhoso criado as trevas. Deus criou a luz, e assim se fez o primeiro dia. (Machado de Assis, 2008: 1, negrito nosso)

 

Observemos que o conto inverte toda a criação. O Diabo é o criador e Deus vai consertando o que não deu certo. Segue-se a narrativa da criação do primeiro casal.

 

O Tinhoso cria Adão e Eva, somente com ruins instintos, porque não podia infundir-lhes a alma. Diabo transforma a serpente em sua embaixatriz, concedendo a ela o dom da fala: o Diabo a descreve como serpe, fel rasteiro, peçonha das peçonhas e a instrui a tentar o casal a comer da árvore da ciência do Bem e do Mal, pois assim conheceriam o próprio segredo da vida:

 

Sim, o próprio segredo da vida. Vai, serpe das minhas entranhas, flor do mal, e se te saíres bem, juro que terás a melhor parte na criação, que é a parte humana, porque terás muito calcanhar de Eva que morder, muito sangue de Adão em que deitar o vírus do mal... Vai, vai, não te esqueças... (Machado de Assis, 2008: 2, negrito nosso)

 

Neste conto, o escritor dissocia a serpente do Diabo. São absolutamente dois seres distintos. A serpente invejosa e peçonhenta tenta o casal, Eva resiste e lhe chama de pérfida. A inteligência que caracterizava Lúcifer ê transferida para a serpente que responde num discurso poético:

- Néscia! Para que recusas o resplendor dos tempos? Escuta-me, faze o que te digo, e serás legião, fundarás cidades, e chamar-te-ás Cleópatra, Dedo, Semíramis; darás heróis do teu ventre, e serás Cornélio; ouvirás a voz do céu, e serás Débora; cantarás e serás Safo. E um dia, se Deus quiser descer à terra, escolherá as tuas entranhas, e chamar-te-ás Maria de Nazaré. Que mais queres tu? Realeza, poesia, divindade, tudo trocas por uma estulta obediência. Nem será só isso. Toda a natureza te fará bela e mais bela. (Machado de Assis, 2008: 3.)

 

Destacamos o lirismo do discurso da serpente. Ela é sedutora, diz a Eva que ela poderá voltar a terra como mãe do filho de Deus. A serpente prova que merece ser embaixatriz do Diabo, mas mesmo assim Eva resiste. Deus manda que Gabriel desça ao paraíso terrestre e busque o casal para viver no Paraíso celestial e o Tinhoso e a serpente são amaldiçoados a viver na terra.

Já o conto “A Igreja do Diabo” é bastante conhecido. O início lembra o Livro de Jó e o Prólogo de “Fausto”, de Goethe. Só que desta vez o Diabo se apresenta no céu, não para receber uma aposta de Deus, mas sim para informá-lo que vai fundar sua própria igreja.

 

No conto "A Igreja do Diabo", o próprio Deus diz que a contradição dos seres humanos é eterna, para consolar o Diabo das decepções que os humanos lhe tinham causado. O Diabo exerce considerável protagonismo nos escritos de Machado de Assis, autor mundialmente celebrado pela acuidade literária com que sonda as regiões impenetráveis da vida humana, nas quais ele encontra o Diabo ou seus emissários.

Qual é, então, o papel que o Diabo exerce nas obras do autor? É isso que este livro pretende analisar, a partir de excertos diversos, escritos em gêneros diferentes, representativos da coerência com que a obra machadiana retrata as contradições humanas, inspiradas ora em Deus, ora no Diabo, que sempre andam juntos.

 

O Diabo sempre nos incomoda e dele temos muito medo, associando-o ao Mal. Além disso, tendemos a enxergá-lo no Outro, no diferente diante do qual nos sentimos ameaçados e que, por isso mesmo, deve ser eliminado.

 

Machado resolve esses dilemas ao rejeitar o figurino tradicional com que o pintamos. Fica a suspeita de que o Mal-Diabo não está no Outro somente, mas também dentro de cada um de nós, o que explicaria as contradições eternas a que todos os seres humanos estão expostos.

 

O intertexto com Fausto[8] é evidente:

Há muitos modos de afirmar: há só um de negar tudo [...]

- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos de século e dos séculos. [...]

- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega. (Machado de Assis, 1997:  4-6)

 

O Diabo é descrito como tendo os olhos acesos de ódio, aquele que mora nas províncias do abismo. No diálogo entre os dois. Deus o define como um velho retórico, sutil, vulgar e sem criatividade.

Por várias vezes o narrador descreve o Diabo rindo e sorrindo: O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. O que o Diabo quer é fundar uma Igreja na qual as virtudes se transformariam em pecado e os pecados cristãos em virtudes, enfim trocar o certo pelo errado, tornar santo e aprazível o bigode do pecado. Quando volta à Terra, o Diabo como numa espécie de evangelho profano traz

 

A Boa Nova aos Homens, confessa que é o Diabo e retifica seu caráter maculado pelas histórias que as beatas contavam dele:

Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio génio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo... (Machado de Assis, 1997: 7, ).

 

Neste novo evangelho o espírito de negação, com grandes golpes de eloquência, afirma que ele é o verdadeiro pai dos homens. Prega que a inveja, a soberba, a ira, a gula, a cólera, eram na realidade virtudes. O Diabo machadiano é um Diabo culto, já que conhece literatura e seus personagens.

 

Cita Homero e defende que sem a ira não haveria a cólera de Aquiles e que, sem a gula, Rabelais não teria produzido suas melhores páginas. Citando um letrado padre napolitano, o Diabo recomenda: Leve à breca o próximo!  Não há próximo. A única exceção é quando se tratava da mulher do próximo.

 

A Igreja prospera e o Diabo dá gritos de triunfo: todos agora só fazem o bem, ou seja, só cometem os pecados anteriormente condenados, o errado é o certo. Só que o que o Diabo não imaginava é que as pessoas, às escondidas, começavam a praticar o mal, ou seja, praticar atos que no passado eram virtudes e agora estavam proibidas. Ele ficou pasmo, chegou aos céus, tremendo de raiva, ansioso, com uma agonia satânica.

 

Deus não triunfou em cima do perturbado Diabo, olha para ele e diz:  - Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana. (Machado de Assis, 1997: 11,).

 

Chegamos então ao conto “O Anjo Rafael”, pela cronologia, o primeiro dos três contos aqui analisados já que foi publicado em 1869 no Jornal das Famílias, e o que mais nos interessa para este artigo. Entre os mais de duzentos contos de Machado, este é dos menos conhecidos.

 

Em 1973, Raymundo Magalhães Júnior publica pela Editora Bloch a obra “Contos Fantásticos de Machado de Assis”, que é reeditado pela mesma editora em 1998 e na qual está incluído o conto aqui analisado.

Na introdução, o crítico chama a atenção para o que ele denomina de fantástico mitigado nos contos machadianos e alerta «que a crítica pouco tinha atentado para essa faceta da obra de Machado» (Magalhães, 1998: 3).

 

Já Marcelo J. Fernandes em sua dissertação de mestrado intitulada  “Quase-macabro: o fantástico nos contos de Machado de Assis”, mesclando contos de sua escolha com alguns dos selecionados por Magalhães, faz uma análise da presença do fantástico e defende a tese de que Machado diluiu o fantástico naquilo que ele denomina de quase-macabro e inclui também o “Anjo Rafael”.

 

O Bruxo do Cosme Velho gostava de incursionar pelo fantástico mitigado ou o fantástico quase-macabro, como tão bem conceituaram os dois críticos aqui mencionados, afirmando que Machado desenvolve um padrão de fantástico". Mas nos interessa outro aspecto deste conto.

 

Resumindo o enredo do conto, temos o seguinte: um jovem de trinta e três anos por nome Dr. Antero resolve se matar. Naquela noite, quando estava prestes a se suicidar, recebe um criado com uma mensagem para que este o acompanhe até a casa do seu patrão.

 

Major Tomás. Antero resolve seguir o criado e chega a uma casa misteriosa. É apresentado ao Major que afirma por várias vezes ser um ser celestial, o Anjo Gabriel, que  incompreendido em sua missão, tivera uma filha e agora se afastava do mundo. Antes de morrer queria casar sua filha.

 

Observemos a criatividade e ironia de Machado neste conto insólito, fantástico quase-macabro. Quando Antero vai se matar ele faz uma bucha com uma folha do Evangelho de São João e mete dentro da pistola. Na hora derradeira do suicídio, ato contrário a toda lógica, Antero separa uma folha do Evangelho que começa pôr no princípio era o Verbo...

 

As referências bíblicas são constantes em todo o texto: Antero mora na Rua da Misericórdia, na casa do Major sonha que, após ter tirado sua vida.  Belzebu[9] o mantinha queimando eternamente numa fogueira; a aparência do velho Major lembra um patriarca bíblico. O major insiste que foi criado por Deus, que tem origem no céu, que foi enviado do céu, que é o Anjo Rafael e que sua filha Celestina é um anjo na raça e na candura.

 

A descrição que o narrador faz da moça é a descrição de um anjo: rosto angélico, virgindade do coração, cabelos louros e caídos em cachos e possuidora de uma auréola.

Para o narrador, filha e pai pertencem a uma civilização desconhecida e o Dr. Antero se sente arrebatado nas asas da Fantasia em meio àquelas pessoas do céu. Antero se apaixona por Celestina e, após estar no sétimo céu, começa a perceber que seu futuro sogro era monomaníaco, pois cria ter origem celeste e ser o próprio

 

Anjo Rafael:

- Eu sou, continuou o velho, eu sou o anjo Rafael, mandado pelo Senhor a este vale de lágrimas a ver se colho algumas boas almas para o céu. Não pude cumprir a minha missão, porque apenas disse quem era fui tido em conta de impostor.  Não quis afrontar a ira e o sarcasmo dos homens; retirei-me a esta morada, onde espero morrer. (Machado de Assis, 2008: 9, negrito nosso) Antero confirma suas suspeitas: o velho era um monomaníaco e a filha ia pelo mesmo caminho.

 

Esclarecemos que o anjo Rafael não é um personagem bíblico, ele só é citado em Tobias, um livro apócrifo que faz parte da chamada Bíblia católica, mas não faz parte da Bíblia protestante.

Embora muito se fale do Arcanjo Rafael, em nenhum dos textos deste apócrifo há a afirmação que Rafael seja arcanjo, mas apenas um anjo.  «... Eu sou Rafael, um dos sete anjos...» [Tobias 12-15]. Este anjo Rafael fez coisas que parecem mais práticas de um anjo caído.

 

Chegamos ao ponto mais importante do conto: o monomaníaco celestial entra no quarto do Dr. Antero e lhe informa com a maior naturalidade:

Sabe quem morreu?

- Não.

- O diabo.

Dizendo isto deu uma gargalhada nervosa que fez estremecer o doutor; o velho continuou:  - Sim, senhor, morreu o diabo; o que é grande fortuna para mim, porque me dá a maior alegria da minha vida. Que lhe parece? (Machado de Assis, 2008: 12)

 

“O Anjo Rafael” foi publicado em 1869, portanto exatamente dezenove anos antes de A Gaia Ciência (1888), obra na qual Nietzsche matou Deus. Ou seja, o Machado menor, cujas publicações ocorreram antes de 1881, ano da publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, fez o que o Machado maior, com as obras publicadas depois de 1881, não fez: matou o Diabo, bem antes de Nietzsche matar Deus.

 

Só este parágrafo, só esta ideia valeria por todo o conto.  Michel Infra em seu recente Tratado de Ateologia, no qual defende que os crentes sofrem de infantilismo mental e que o ateu é aquele que recuperou a sua saúde mental, afirma que a existência de Deus e do Diabo pertencem ao mundo mágico, à fabula, e que toda crença é uma ficção.

 

Sobre o Diabo afirma ele: «Satã, Lúcifer, o Portador da claridade - O filósofo emblemático das Luzes... -, aquele que diz não e não quer submeter-se à lei de Deus [...] o Diabo e Deus funcionam como frente e verso da mesma medalha, como teísmo e ateísmo» (Onfray, 2007: 6, negrito nosso).

 

Infra aponta que Deus e o Diabo são faces da mesma medalha, teísmo e ateísmo.  Discordo e vou mais além: frente e frente da mesma moeda - teísmo e teísmo. Como vimos anteriormente, a Igreja Católica considera a não crença no Diabo como heresia digna de excomunhão.

 

Ou seja, se você não acredita em Deus é um ateu, mas se você não acredita no Diabo igualmente o é. Infra afirma que um ateu é um ser incompleto, amputado, um semideus.

 

Podemos asseverar, no entanto, que um ateu é a partir de agora um sem-diabo. Se coube a Nietzsche matar Deus em “A Gaia Ciência”, coube a Machado de Assis, dezenove anos antes, no conto o Anjo Gabriel, matar o Diabo.

 

Tanto Nietzsche como Machado colocaram Deus e o Diabo no campo ou da filosofia ou da ficção (seres de papel). Mataram Deus e o Diabo e desta forma paradoxalmente os mantiveram vivos, porque seres ficcionais não morrem nunca e, talvez, a filosofia continue a existir mesmo quando o homem não mais existir.

Eis como o Bruxo do Cosme Velho matou Lúcifer...  Infra afirma que o último deus desaparecerá com o último homem. Afirmamos que o último Lúcifer também desaparecerá com o último homem...

 

O Diabo, tendemos a enxergá-lo no Outro, no diferente, diante do qual nos sentimos ameaçados e que, por isso mesmo, deve ser eliminado. Machado resolve esse dilema ao rejeitar o figurino tradicional com que o pintamos.

 

Resta a suspeita de que o Mal-Diabo não está no Outro somente, mas também dentro de cada um de nós, o que explicaria as contradições eternas a que todos os seres humanos estão expostos.

 

Uma visão menos maniqueísta do Diabo, como a proposta por Henry Kelly e outros autores modernos, parece estar em sintonia com o conceito de “mal” observado em algumas religiões. No hinduísmo e no budismo, por exemplo, existem criaturas malignas, como os demônios hindus Asuras, ou as criaturas infernais budistas chamadas Naraka.

 

Mas elas não são personagens centrais como o Diabo é na mitologia cristã. “O maniqueísmo clássico é o do zoroastrismo. Nessa antiga religião originária da Babilônia, existe um deus 100% benevolente, chamado Ahura Mazda, e um espírito totalmente mau, conhecido como Angra Mainyu ou Ahriman.

 

O shaitan do islamismo, contudo, não é nem de longe tão maléfico e assustador quanto seu equivalente cristão. Na tradição judaico-cristã, nada pode ser mais perverso, traiçoeiro e perigoso que o demônio, ou seja, um servo extraviado do Todo-Poderoso, que acabou sendo expulso do reino dos Céus porque trazia em sua essência o nefasto e contagiante princípio da corrupção universal.

 

A descrição mais vívida do inferno talvez seja a de Dante Alighieri no clássico A Divina Comédia, de 1321. O “Inferno de Dante”, como ficou conhecido, é composto de nove círculos. O primeiro destina-se aos cristãos não batizados e pagãos virtuosos (aqueles que não tiveram a sorte de aceitar o cristianismo em vida).

Abaixo dele, existem círculos para adúlteros, glutões, avarentos e preguiçosos. A coisa começa a piorar, literalmente no sexto círculo, o dos heréticos. E, o sétimo círculo, que fora reservado aos violentos, é terrível e, suas vítimas são banhadas num rio de sangue fervente terrível. No oitavo círculo é para os fraudadores onde o pecador fica imerso num mar de excrementos e, no último é gelado, intensamente gélido onde ficam os traidores a escória da escória da humanidade.

 

Em produções de João Guimarães Rosa, como alguns poemas de “Magma”, o conto “Minha gente”, de “Sagarana”, o prefácio Aletria e Hermenêutica, de Tutaméia, e a narrativa Cipango, de Ave, Palavra, e, com base nelas, demonstrar a presença de um aspecto da filosofia budista a ideia de existência ilusória dos fenômenos em “Grande sertão: veredas”, condensado em um raciocínio de Riobaldo sobre a existência do diabo. Lidas através do conceito de paradigma indiciário de Carlo Ginzburg, em que informações marginais de uma obra podem revelar um dado maior, as referências ao Buda e ao budismo.

 

As divagações de Riobaldo sobre a natureza do diabo e a interpretação delas por meio da aproximação com um raciocínio budista demonstram como o budismo pode estar presente em “Grande sertão: veredas”; presença já sinalizada, mas não extensivamente desenvolvida, por Walnice Galvão, em “As formas do falso”, e por Francis Utéza, em J.G.R: metafísica do Grande Sertão.

 

Assim como em “Minha gente”, de Sagarana, em “Orientação”, de Tutaméia, e em “Cipango”, de Ave, palavra, o Oriente está no do interior do Brasil e, no caso do romance de Guimarães Rosa, está no sertão na voz do “erudito” Riobaldo. 

 

A ascensão do Cristianismo, e sua consequente difusão pelo mundo, elevou a figura arquetípica do Diabo por diversas regiões do mundo. Antigos deuses foram destituídos de suas posições e assumiram formas demoníacas, e a figura de Satã tomou o seu formato. A Idade Média tornou-se o período de maior difusão da figura do Diabo, é historicamente conhecida a perseguição às ‘bruxas’, e a tantos outros grupos intitulados de “possessos pelo Diabo”.

 

Assim milhares de pessoas foram queimadas e torturadas pela Inquisição. Famosa é a história dos cavaleiros Templários que, mesmo servindo a igreja, foram considerados como adoradores do Diabo e muitos acabaram inocentemente na fogueira.

 

A Revolução Francesa, como aponta o autor, foi um dos marcos mais importantes para o enfraquecimento da exacerbada crença nas manifestações demoníacas.  Assim, a posição do Diabo, frente à era da razão, se tornou mais opaca e suas manifestações ganharam margem para a própria difusão da ciência, pois, como mencionado, as ditas ‘manifestações demoníacas’ não passavam de surtos psicóticos o que abriram portas, na era moderna, para as pesquisas e avanços da Psiquiatria.

 

Atualmente, a crença no Diabo está muito em voga. São inúmeros os casos de possíveis cultos e sacrifícios satânicos que ainda permeiam a mídia. Dentro das próprias religiões existe um grande enaltecimento do Diabo.

 

A origem do Diabo teve sua mais forte expressão na Pérsia, mais precisamente na época de Zaratustra, no século VI a.C, em que se criou uma teologia dualista com concepção de céu e inferno. O Zoroastrismo, religião fundada por Zaratustra, é a primeira concepção religiosa a falar do mal.

 

A referida religião criou a sua própria teologia que seria difundida por todo ocidente criando o que temos hoje como o pilar central da teologia das principais religiões monoteístas.

 

Com efeito, após longo curso histórico a religião pregada por Zaratustra, impôs convicções na existência dos poderes do bem, configurados na figura do Deus único Ahura Mazda, contra a existência dos poderes do mal, centralizadas na figura de Arimã, o nosso protótipo do Diabo ou Satanás.

 

Para outra cultura, a céltica, verificamos que não existe Diabo entre a cultura dos Celtas, entretanto, assim como em outras culturas, encontramos a figura dos demônios ou dos deuses ambivalentes. O autor conclui que o mito de Satanás, ou Diabo, nasceu na Pérsia, no século IV a.C, como discutido anteriormente.

 

É na cultura celta que encontramos a figura do deus Cernunos, o deus cornudo, que estava associado ao mundo inferior, à fertilidade e da colheita, tal deus pode ter influenciado nossa atual concepção de que o Diabo seja personificado em um ser com chifres.

 

 

 

 

Referências

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BARROS, Bruno Mazolini de. A existência ilusória do diabo em Grande sertão veredas: rastros budistas na obra de João Guimarães Rosa. 2014. 101 f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.

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[1] ETIM (1258) latim lucĭfer, ĕri 'o planeta Vênus quando precede o Sol, estrela-d'alva; dia; o chefe dos demônios'

[2] A intolerância religiosa, no Brasil, é crime previsto na Constituição Federal em mais de uma ocasião. O artigo 208 do Código Penal estabelece como conduta criminosa “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”, com pena de um mês a um ano. A pena é aumentada em um terço se houver emprego de violência sem prejuízo à vítima – caso ocorra, passa-se a responder por outros crimes, a depender de qual a violência empregada. Já a Lei 9.459/1997 alterou a Lei 7.716/1989, que diz respeito ao preconceito em relação à cor, incluindo “etnia, religião ou procedência nacional”. O artigo 20 estabelece como crime, com pena de reclusão de um a três anos e multa, “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito” pelos motivos listados. A mesma pena se aplica à injúria por algum desses itens.

[3] O tema central do livro de Jó é o sofrimento e a fé. Jó é retratado como um homem justo que sofre muitas perdas e doenças, mas que ainda mantém sua fé em Deus. A obra retrata a luta de Jó para compreender por que ele está sofrendo, e a conversa que ele mantém com três amigos que tentam explicar a razão de sua dor. No final do livro, Deus aparece e fala com Jó, reafirmando Sua justiça e poder, e aconselhando Jó a se submeter a Sua vontade. O propósito do livro de Jó é explorar questões importantes sobre a vida, a fé e o sofrimento, e apresentar a visão bíblica sobre esses assuntos.

[4] Em sua obra "História do medo no Ocidente" (2009), Jean Delumeau, no entanto, afirma que “foi no começo da idade Moderna e não na Idade Média que o inferno, seus habitantes e seus sequazes mais monopolizaram a imaginação do homem no Ocidente”.  Seja na Idade Média ou na Idade Moderna, podemos identificar o surgimento e consolidação de ideias absurdamente fantásticas  sobre o diabo, algumas das quais citamos a seguir:    Os íncubos e súcubos, demônios machos e fêmeas, mantém relações sexuais  com os seres humanos;  Os demônios têm a capacidade de animar corpos;  O diabo é onipresente, assim como Deus;    É dotado de chifres, três cabeças e garras de ave de rapina;  Possui uma segunda face no abdômen ou no traseiro.  Possui cauda; Possui pés de vaca, cavalo ou bode; Possui asa de morcego.

[5] A obra-prima de Goethe está dividida em duas partes que são bastante distintas. Na primeira, o autor se baseia na lenda de Fausto e acompanha, sobretudo, a vida amorosa do personagem. Já na segunda, a atenção se volta para as explorações do protagonista pelo desconhecido, refletindo sobre as várias matérias do conhecimento humano que vigoravam na época. O enredo do poema dramático começa no céu, onde Deus conversa com Mefistófeles. Embora o Criador goste de Fausto, devido à sua enorme sede de saber, o demônio aposta que é capaz de conquistar a alma do humano. Um grande estudioso das mais diversas temáticas, o protagonista é um homem que se encontra deprimido e desencorajado pelas próprias falhas. Sem saber que rumo seguir, ele chega mesmo a ponderar o suicídio.

Para acalmar as ideias, decide dar um passeio com Wagner, o seu assistente, e começam a ser seguidos por um cachorro. No regresso, o animal entra na sua casa, revela sua identidade oculta e Mefistófeles faz uma proposta. Ele se oferece para vai servir Fausto até ao final da sua vida, mas depois irá levá-lo para o Inferno, onde se tornará um diabo e estará ao seu serviço para o resto da eternidade. No entanto, existe outra condição: se algum dia o homem se sentir plenamente feliz e desejar que um momento seja eterno, tudo terminará. Os dois selam o pacto com uma gota de sangue e passam a andar juntos. Acompanhado pelo demônio, Fausto vai consultar uma feiticeira e bebe uma poção que o transforma num homem mais jovem e atraente. Em seguida, ele vê uma moça passar e tenta falar com ela, mas é rejeitado. Percebendo que Margarida será difícil de conquistar, pede o seu auxílio do novo companheiro. Assim, Mefistófeles começa a planejar formas de juntá-los e consegue marcar um encontro, subornando uma vizinha da família. Cada vez mais ganancioso, Fausto recebe um castigo dos deuses e fica cego. Dominado pela culpa, ele ganha consciência dos seus atos e deseja que aquele momento de clareza dure para sempre. Assim, o pacto é quebrado e o protagonista morre.

Mefistófeles tenta levar a alma dele para o Inferno, mas é interrompido pelo aparecimento de um coro de anjos que carregam Fausto até ao Paraíso. Assim, podemos concluir que o seu arrependimento valeu a pena e o protagonista conseguiu a redenção divina.

[6] Podemos perceber que Machado de Assis traduz a natureza humana na contradição. Do conto realista do bruxo do Cosme Velho, conseguimos extrair uma visão de humanidade centrada na oposição que traduz o que todo ser humano tem dentro de si. O conto “A Igreja do Diabo”, de Machado de Assis, foi publicado no livro “Histórias sem Data” (1884) e pode ser caracterizado por uma espécie de fábula, por carregar consigo elementos moralizantes que pretendem dar conta do que o indivíduo pode ou não realizar, das leis (divinas) que ele deve ou não seguir.

 

 

 

 

[7] Considerações sobre a função da personagem do diabo (Mefistófeles) em textos de Machado de Assis e no Fausto de Goethe sob o prisma da teoria bakhtiniana do riso e da ironia. Pretendemos demonstrar como a dinâmica inerente ao texto através do uso do jogo irônico redimensiona o ato de leitura, transformando-o num ato de conhecimento do próprio homem e do mundo. Através da discussão de algumas passagens de textos desses autores, podemos ver que a adoção de técnicas dramático-narrativas que reproduzem a mutabilidade de conceitos garante a contemporaneidade de seus textos.

[8] O poema dramático do alemão Johann Wolfgang von Goethe começou a ser composto em 1775. A obra foi publicada em duas partes: a primeira em 1808 e a segunda em 1832, já postumamente. Fruto do imaginário alemão, o mito de Fausto surge em diversas narrativas; a versão de Wolfgang von Goethe é, sem dúvida, uma das mais célebres. A lenda foi inspirada em Johann Georg Faust (1480 – 1540), um mago e astrólogo do Renascimento alemão que chegou a ser apontado como alquimista. Na lenda, assim como no texto de Goethe, Fausto é um homem sábio e de sucesso que pretende aprender e experienciar o máximo que puder. No entanto, ele se encontra permanentemente frustrado com as limitações humanas e procura também respostas no universo mágico.

Seu caminho sofre uma reviravolta quando ele conhece um demônio que vem à Terra para corromper a sua alma, depois de ter feito uma aposta com Deus. Mefistófeles é uma figura da mitologia medieval que aparecia frequentemente nas obras da época, como uma das possíveis representações do mal. Com o tempo, ele passou a ser associado ao Diabo e confundido como outros personagens semelhantes, como Lúcifer. Não é através da força, mas graças à esperteza e negociação, que ele consegue "comprar" a alma do protagonista. Após segui-lo até casa, sob a forma de um cão, o demônio aparece diante do estudioso com uma proposta que ele não consegue recusar. Quando recebe uma resposta afirmativa do humano, que não resiste a tudo que lhe oferece, ele consegue realizar o seu principal objetivo: Fausto cai em tentação. Quando conhece Mefistófeles, ele encontra uma forma de superar as limitações da sua humanidade e ter acesso a saberes e experiências que jamais iria obter de outro modo. Para isso, ele precisa fazer uma escolha moralmente questionável: vender a alma a troca do conhecimento.

Contudo, o pacto de Fausto com o demônio terminará no momento em que ele se sentir verdadeiramente satisfeito. Ou seja, de alguma forma, ele precisa ser movido por essa sede contínua de progresso e informação, caso contrário tudo chegará ao fim.

[9] Baalzebub é uma entidade amalgamada de outras duas poderosas entidades conhecidas das mitologias cananeia e fenícia: Baal ou Bael, senhor dos trovões, agricultura e fertilidade. Também associado à morte e crueldade; Zebub, o deus das moscas e da pestilência.

 

 

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 22/05/2024
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