Lembranças de um ano que não existiu

Caro leitor, tudo que está escrito foi baseado em fatos surreais e qualquer semelhança não será mera coincidência, pois há verdades que desconhecemos e se lemos algo que nos parece familiar é porque de fato temos alguma relação com o que está sendo contado. Não duvido se me contarem um dia que você que lê a isto deixou de fazer alguma coisa ou que se não estivesse lendo faria alguma coisa que em algum momento alteraria até o meu destino. Uma situação hipotética posso imaginar na qual você, ao invés de ler fosse ao supermercado com seu carro e que por um descuido seu me atropelasse, pois atravessava a rua distraído a caminho da editora para entregar meus textos. Considerando que a distração dava-se pela minha preocupação se aqueles textos fossem aprovados e caso fossem resultariam em boas vendas. Mas não! Pois fui atropelado por outro distraído que cogitou ler um texto publicado numa página da Internet e que com as mãos no volante imaginava que palavras leria e que suspenses o prenderia. Tudo isso para dizer que nem tudo é uma mera coincidência.

NAS NUVENS

Naquele ano, exatamente na terceira lua cheia do ano, num ponto de ônibus, às dez horas e vinte dois minutos da manhã e trinta e quatro segundos, disse para a única moça após um silêncio de quarenta e oito minutos.

— Até quando vou ter que te provar que não foi minha culpa?

A moça me olhou com estranheza e depois voltou a olhar pro chão ao invés de olhar para a rua. O silêncio voltou e nele ficamos até que algo repentinamente caiu próximo ao ponto de ônibus. Era um homem. Aproximei-me e antes de me agachar o sujeito se levantou e continuou a caminhar carregando a pasta que caiu junto com ele. Voltei e me sentei no banco do ponto. A moça se manifestou:

— As nuvens. Sinto que elas querem dizer algo. Mas eu não sei, não sei, não sei, mas quem o saberá?

Até aquele momento a avenida estava totalmente vazia. Éramos apenas nós dois, sem contar o homem que caiu não se sabe de onde e que continuou andando. Às dez horas e cinqüenta e quatro minutos a avenida estava totalmente cheia, todos os pontos de ônibus lotados, inclusive o nosso. Mal dava para ver a moça, ela não me ouviria, então gritei:

— Dê-me uma chance, só uma.

Não obtive resposta de imediato, e as pessoas continuavam chegando, mais e mais, havia pessoas até em cima do ponto, subindo pelos postes, definitivamente não havia espaço para mais ninguém na calçada e foi nesse momento que ela disse:

— Descobri! As nuvens querem nos dizer que uma chuva está por vir. Protejam-se, pois, uma chuva de hipocrisia inundará a cidade, haverá raios de falsidade causando blecaute nas redes de amizade e casamento.

NAS NUVENS PARTE 2

Após o diálogo com a moça das nuvens, os meus vizinhos brigaram dezenas de vezes, lá pela quadragésima vez aconteceu não com eles, mas comigo, algo curioso. Atravessava a grande avenida quando uma imensa dor me atingiu, gritei, pus a mão próxima do umbigo, cai no chão. Saiu um homem de um carro veio me olhar, depois com a mão acenou para um prédio e minutos depois já estava numa maca e uma cirurgia em plena avenida começava. Retiraram de mim um livro de vinte e três páginas, nele continha poesia e prosa. Um dos médicos começou a ler e outro arranjou um violão para acompanhar a leitura.

— Très bizarre! – diria um francês, mas não sei o que ele diria se soubesse que aquele livro foi publicado, o qual mencionava um apêndice no índice só que a página tinha sido rasgada.

Ainda naquele dia entabulei uma conversa com um faxineiro que fumava charuto e que não olhou no meu rosto uma vez sequer.

— Onde você estava quando derrubaram o muro de Berlim?

— São todos iguais, entram e saem, não mudam nada, inventam leis para benefício próprio.

— Você acredita que o homem foi à Lua?

— Ainda bem que foi embora mesmo, já não tinha nada a ver ficarmos juntos e ainda bem que levou aquele moleque, nem era mesmo meu filho.

— E se ela quiser voltar?

— Estava bebendo cuba libre.

— E se eles te derem melhor emprego?

— Claro que foram a Lua, fui eu quem deu uma varrida no foguete quando voltaram. Agora me diz para onde foi aquele homem que se jogou meses atrás e não morreu?

— As nuvens. Parece que elas têm algo a dizer.

CAFÉ COM ÓDIO E CHÁ COM AMOR

Quando bebi vodka acompanhada de língua de cobra no café da manhã pela quinta vez eu tive uma premonição: um novo astro se aproximará do nosso planeta alterando nosso comportamento duas vezes por dia.

Dia seguinte os astrônomos anunciaram que uma estrela se aproximou muito do nosso planeta, os astrólogos também fizeram seus comentários.

Estava no ponto de ônibus quando esta notícia foi dada e de repente uma moça disse algo para mim.

— Seu idiota, miserável, te odeio com todas as minhas forças, como pode ser tão desprezível, você é o que há de pior entre os seres humanos.

Apenas ouvi e deixei passar. Não valeria a pena. Acho que deve ser efeito da nova estrela. Seis horas mais tarde esperando o metrô uma moça desconhecida confessou seu amor por mim, disse as coisas mais belas, mais adoráveis e quando o metrô chegou entrou e tudo voltou ao normal e reagiu como se não me conhecesse e de fato não me conhecia. Agora será assim: o ódio pela manhã e o amor pela tarde.

10 NANOSSEGUNDOS

Onde trabalho eu sou pago para pensar, meu colega de sala é pago para executar e assim funciona a empresa. Ocorrem conflitos, pois sou conservador e ele liberal, sou erudito e ele amante da tecnologia, gosto do cinema mudo e ele assiste filmes em que robôs têm maior destaque. Será que isso funciona? Não sei, pois ele começou hoje.

— Na outra empresa desenvolvi um processador de 1 peta hertz.

— E eu descobri que minha namorada não gosta de batatas fritas com mais de sete centímetros.

— 1 peta hertz é o mesmo que 1 quadrilhão de hertz, isso é espantoso.

— Esse processador é capaz de acabar com as dores de cabeça da minha namorada que ocorrem às sextas-feiras por volta das dez horas e quinze minutos e vinte segundos?

— Isso e muito mais.

— Isso é suficiente, pois esses componentes eletrônicos não satisfazem o grande desejo que sinto nesse dia.

— Até quando você vai ficar dizendo as horas de forma exata?

— Até o dia em que eu não tiver mais relógio.

CULPADO?

O culpado? O destino. Foi ele quem encomendou o assalto do meu relógio. Sugerido pelo meu colega de sala.

Falando em culpado, tive a experiência de ter sido culpado por um escritor. Li um conto que começava assim:

— Aquele que lê este conto tem toda a culpa pelas mortes e desaparecimentos que ocorreram nesta cidade.

Eu ri, chorei, gritei, cantei, dancei e fui levado por um sujeito para a delegacia. Lá estava outro sujeito.

— Então foi você quem leu meu conto?

— Mal comecei a ler.

— Calado! Não era pra você ler!

— É que...

— Calado! Não vou repetir! Como teve acesso?

— Foi através...

— Calado! É surdo por acaso?

— O senhor me fez uma pergunta.

— Sim, eu fiz, mas não queria a resposta naquela hora.

...

— Por que está quieto?

— Porque o senhor pediu.

— Mas eu não pedi.

— Acho que fiquei tempo demais aqui, com licença.

— Onde pensa que vai?

— Embora!

— E os crimes que cometeu?

— Não cometi crime algum.

— Cometeu sim, o meu livro diz isso.

— Você é doido.

— Não, eu só quero terminar meu livro. Vê aquele rapaz sentado, então ele está escrevendo toda a nossa conversa para que eu possa dar fim ao meu livro. Você é o meu personagem e não sairá daqui enquanto eu não terminar.

— Senhor delegado, não falará nada? – perguntei.

— O meu personagem ainda não fala nesta parte. – respondeu.

Toda aquela história de livro me fez perder mais três semanas do meu ano que já tinha passado da metade.

NA ENTREVISTA

Nove semanas antes do meu aniversário recebi um convite diferente. Fora chamado para participar de um programa de entrevistas na televisão. Acabei aceitando e fui.

O entrevistador me chamou da seguinte maneira: agora vamos receber ele, que ninguém conhece e ninguém sabe o que ele faz nem de onde veio.

— O que você faz? – perguntou-me.

— Faço as pessoas sorrirem e chorarem. – respondi.

— Você foi flagrado num casamento com a irmã da noiva, a revista Celebridade Popular cogitou que você a levou para comer um churrasco na laje. É verdade?

— É assim, o casamento foi horrível, todo mundo fuxicava na hora da cerimônia e eu troquei olhares com a irmã da noiva, todavia o noivo quase quis me socar, pois mantinha uma relação secreta com a cunhada, a qual era amante do pai do noivo.

— Incrível, sabe, é mais interessante trazer pessoas comuns do que essas pessoas da televisão.

— Você não sabe nem da metade.

— De que família você veio?

— Meu pai era maquinista de trem e num certo dia parou o trem de repente, saiu da sua cabine e foi para o vagão, viu uma moça que nunca tinha andado de trem e se casou com ela naquele mesmo dia. Teve o número de filhos equivalente a quantidade de vagões do trem no qual trabalhava.

— Casaram assim do nada?

— É, deu nele a vontade de casar e ter filhos. O nome do meu pai era Wagner.

— E o seu qual é?

— Não sei. Eles se esqueceram de me dar um.

— Mas como? Então como te chamaram pra vir aqui.

— Falaram assim: Ei você quer participar do programa?

— Foi com muito prazer que recebi você no meu programa, até a próxima.

O PROTAGONISTA

Duas luas minguantes depois da entrevista na tevê entrei num teatro por curiosidade e vi uma moça andando pelo palco sozinha, resolvi entrar e quanto mais me aproximava percebi que ela andava nas pontas dos pés.

— Por que andas assim?

— Estou pisando no coração dele.

— Será que ele anda com toda delicadeza no seu também?

— Provavelmente não.

— O coração dele está ferido?

— Muito. Após ter me traído duas vezes acabou sofrendo e sentiu pontadas de arrependimento.

— E por que ainda caminhas neste coração?

— Estou procurando o afeto que dei a ele, mas não acho.

— Será que ele o guardou no coração mesmo ou deixou que o sangue levasse para o baixo ventre?

— Não! Não! – gritou.

— Aceite, é melhor assim. Ele não gostava de você, na verdade sabia que não te merecia.

— Quem me merece?

— Aquele que fizer por merecer, a principio todos, na realidade poucos.

— Estou fadada a solidão.

— Bobagem, eu posso tentar merecer, se deixar.

— Deixo, suba até aqui.

Subi até lá e abracei a moça.

— Muito bom, muito bom, achamos um ator para viver seu par romântico – disse um homem sentado nas cadeiras.

— Ai que bom, demorou muito pra gente achar, agora é só ensaiar. – disse a atriz.

OS VENDEDORES

No dia seguinte tive que tomar um trem e descer só na última estação, sendo assim passaria um bom tempo lá. No trajeto vi diversos tipos de vendedores.

— Quem quer sinceridade, olha a sinceridade, o frasco está barato aproveitem.

Fiquei feliz por algumas pessoas comprarem, eu não comprei porque já sou, mas o vendedor seguinte me fez queimar a língua.

— Senhores e senhoras, pra quem acha que é bom, amigo, verdadeiro e se acha tudo isso, vendo aqui um pouco de humildade, não faz mal a ninguém, afinal quem diz de boca cheia que é generoso na verdade não o é, porque se fosse não vivia de palavra e sim de atitudes. Vamos lá, comprem.

Acabei comprando tudo, mas o homem não deixou.

— Sem extravagância meu senhor, há outras pessoas precisando, essa sua atitude é mais condenável do que quem não compra nada.

Por fim comprei um frasquinho. Além desses vendedores, apareceram outros um tanto quanto estranhos. Teve um que vendia milagres, outro veio com o aumentador de fé, surgiu um vendendo um xarope antitraição.

Antes de chegar à última estação entrou um sujeito estranho que começou a falar sozinho, e dizia algo sobre prever o futuro através das nuvens, depois se aproximou de uma mulher e contou a história de uma mãe que colocou o filho de castigo num quarto sem janela e o deixou lá, caindo no esquecimento, a mãe e o pai se mudaram deixando-o lá, vieram outras famílias até que alguém sabendo da história tentou abrir a porta e quando conseguiram nada encontraram lá. A mulher ficou curiosa pra saber o que aconteceu com o menino e então o sujeito disse como encontrá-lo, ele explicou e a senhora desceu na estação junto comigo e se jogou da plataforma e caminhou até ser atropelada por outro trem. O sujeito saiu do trem para ver e disse para mim como se me conhecesse:

— Viu, outra que caiu no mundo do esquecimento tal qual ocorrera com o menino.

— Mas o menino sumiu mesmo?

— Não se sabe, você também quer ir lá pra ver? A casa dele é aquela ali. – disse apontando para uma construção paralela a linha do trem.

MOMENTO DE REFLEXÃO DO ANO (afinal em algum momento do ano a gente reflete)

O fim do ano está se aproximando. Uma guerra foi declarada, pois a mulher de um líder religioso se confundiu e interpretou uma passagem do livro sagrado igual à religião de outro líder religioso. Isso gerou grande confusão e pensar que uma guerra começa por causa de detalhes. Outro dia os vizinhos começaram uma guerra por motivos que eles mesmos já esqueceram. Eu declarei guerra a quem faz guerra. Há quem declara guerra às pessoas que comem certas coisas. O que custa essas pessoas comerem o que desejam e deixar os que comem o que eles não comem em paz? E ainda há quem reclame quando alguém pede para outro o deixar em paz. Ninguém quer paz.

VOZ DA CONSCIÊNCIA

Mesmo sendo adulto, permiti-me junto com um amigo meu do trabalho, a fazer uma molecagem. Resolvemos passar trotes, com uma lista telefônica em mãos discamos vários números até que um atendeu assim:

— Por que você não está cuidando da sua mãe no hospital? – perguntou para meu amigo.

— O que você tem a ver com isso? – perguntou, confirmando assim o que homem dissera.

— Não seja tolo, você sabe que ela só tem a você.

— Quem está falando?

— Aquele que vai jogar terra sobre o caixão dela e quem sabe do seu também.

Apavorado ele desligou o telefone na cara do homem. Meu amigo ficou pálido e eu disquei de novo para ver se dava no mesmo número. E atenderam:

— Floricultura boa tarde. Ouvi e desliguei.

— Sua mãe está mesmo no hospital?

— Há quatro dias.

— Você reconheceu a voz deste homem?

— Parecia com a minha. Mas meu pai faleceu.

— Então quem será?

— Eu mesmo.

— Como pode?

— Pode ser a minha própria consciência.

— Claro, a voz da consciência. Essa não dá trégua.

REVOLUÇÃO COTIDIANA

De repente o dia escurece.

De repente da escuridão surge um clarão

De repente do clarão tudo desaparece

De repente do nada surge uma revolução.

Atravessando a rua, duas horas da tarde e eis que tudo fica escuro. Doze horas se passaram em um segundo. Duas da manhã e só eu na rua. Surge um grande clarão, será uma nave extraterrestre? Depois me vejo no nada total, como se o movimento dadaísta ganhasse respeito e espaço para atuar. Do silêncio, do vácuo, da inexistência começa a manifestar o todo em sua plena forma. Começa com uma voz, depois outra. Uma agrada a outra que orgulhosa de si maltrata aquela que a agradou, surge uma terceira voz para defender a maltratada e outra voz surge para apoiar a que maltratou, algumas vozes aparecem do outro lado discutindo. Não há acordos. Não há consenso. Tem que valer a opinião de cada um. Quem cederá? Qual a melhor argumentação? E se houver mentira no meio? Tem quem use de chantagem, suborno. Essa é a revolução cotidiana.

NAQUELE ANO

E o ano acabou. E não sei por que estava naquela bendita hora e naquele bendito lugar em que uma viga de construção caiu em minha cabeça causando-me um coma. Não vi a virada do ano, nem fogos de artifício, nem estrangeiros entrando em mares gelados, nada disso. Fui acordar no dia primeiro de abril, por ironia de destino. Fiquei feliz, meu ano novo começara ali. Soltei rojões e mais rojões até que a polícia bateu em minha porta me levando para a delegacia. Explicaram-me que naquele dia o presidente da república tinha falecido, depois de estar no comando por doze anos, a despeito da maioria não estar contente com o governo, já não tinham coragem de ir contra, tinham se acomodado enquanto que eu comemorava minha volta à vida. Agora na prisão já há um ano que foi de onde escrevi essa retrospectiva surreal, afinal nada do que escrevi ocorreu, pois a bem da verdade fui preso numa batalha judicial de plágio. Plagiaram a minha história, mas veio uma voz que defendeu melhor o plagiador do que a voz que me defendia. É a vida! Pelo menos tentei fazer de um ano comum outro bem diferente, baseado em fatos surreais.

07/01/08

Miguel Rodrigues
Enviado por Miguel Rodrigues em 07/01/2008
Reeditado em 08/01/2008
Código do texto: T807318
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