O Enterro

Silêncio.

A sonata “Claire de Lune” deposita em meus ouvidos uma porção de imagens cinzentas. A melodia vem de um apartamento logo atrás de mim e surge para o mundo graciosamente. “Ao menos”, penso comigo, “se pudesse tê-la sempre dentro de mim, talvez tivesse mais chances de me levantar”. Havia nela aquela beleza que não se explica, que existe tão verdadeiramente, tão inteiramente em si mesma, que seu poder penetra nas almas sem que elas percebam. Ou não, talvez seja uma impressão.

Concluí, depois de passar tanto tempo entre as pessoas, que não havia como provar coisa alguma se continuasse aceitando que minhas idéias sofressem o jugo de qualquer intriga, fosse minha ou alheia. E, com certeza, esse foi o estopim do meu completo abandono. Dei razão demais a esse pensamento, de tal maneira, que persegui as pessoas à minha volta com implacável hostilidade, e ninguém mais voltou à minha casa. Mas o que fazer? Tudo o que sempre encontrei foi uma porção de passados sobrecarregados por um presente necessitado de tudo. Evasivas pairavam a todo instante, e todos eram amigos quando me pediam dinheiro para reparar as perdas de suas aventuras. No fim, o funil fragmentou minha personalidade e me tornei nostálgico, medíocre e solitário.

Perdi tudo em tão pouco tempo que não ainda não me adaptei. Ainda preciso me restabelecer da perplexidade.

E recebi em troca apenas um punhado de negativas hostis cada vez que batia numa porta procurando ajuda e um pouco de atenção. Emergia uma multidão de caras feias e zangadas em torno de meu desfalecimento, e com o tempo, o desamparo se tornou o único amigo com o qual podia desabafar meus lamentos... E quê amigo!

Conheci o lado escuro da cidade quando, numa calçada úmida e fria, perto da casa de cultura no centro, encontrei abrigo para passar a primeira noite depois da desgraça. Passei a noite acordado, desconfortado, em companhia de alguns outros que reclamavam as mesmas dores e falavam a mesma língua que eu, o que de fato facilitou nosso entendimento e a filosofia conjunta.

Nunca mais consegui manter meus olhos firmes e calmos. E por negligência me deixei ser enterrado vivo.

De uns tempos para cá passei a percorrer a cidade em vão, tornando os círculos de convívio numa tediosa busca por coisas que não existiam desde tempos atrás e que eu não admitia por orgulho. Ia ocupando meus pensamentos com numerosas alucinações e ao mesmo tempo constrangendo as promessas que viessem a concordar com algum significado digno de apreciação. Muito me prometeram, e muito eu mesmo tratei de prometer quando ainda podia sentir a jucunda estranheza de acicatar algo legítimo e profundamente suntuoso dentro de mim. Só que o mundo é para os espertos, e louco é aquele que duvidar. Nunca fui hipócrita, no entanto, também nunca fui esperto o bastante para alcançar em meu espírito uma forma honrosa de não dizer aquilo que realmente queria dizer. Deu no que deu!

Sou espectador do meu próprio enterro, caminhando invisível entre os poucos que constituem o pequeno cortejo fúnebre. Meu caixão não está sendo carregado por ninguém: desliza por si mesmo sobre os paralelepípedos pontiagudos que o arranham como se esfolasse minha carme. Meu ataúde é de vidro, e posso examinar os rostos das pessoas de seu interior. Me pergunto: onde é que isso vai dar? A quem minha morte realmente importa? Não sou casado, não tenho filhos, minha família se apagou com os anos, e meus amigos... ah! Meus amigos! Quando é que se tem amigos de verdade? Há algum tempo minha riqueza recrutou admiradores: ora me convidavam para compartilhar a alegria do luxo de aluguel que facilmente encontrávamos nas noites dessa cidade, ora desapareciam por um longo tempo.

Mesmo antes já era solitário, de difícil trato, e talvez por isso agora eu cumpra meu castigo, mas também não posso ignorar a sensação de que existem laços muito fortes que me ligam a toda essa pilhéria sugadora de sangue. Se me comportei mal? Tudo bem, eu cometi erros, mas me pergunta se alguma vez alguém se preocupou em saber por que eu agia com tamanho mau humor. Respondo mesmo assim: não, nunca!

Caminhei despercebido junto ao cortejo e adentrei o cemitério sem problema algum. Jogaram meu ataúde numa cova singela e mais ou menos profunda. Não havia padre como eu havia pedido certa vez, ao perguntarem como eu imaginava meu enterro. Os abutres mal proferiram um “Deus te abençoe, filho!”, e já começaram a jogar terra sobre o caixão, como se minha morte atrasasse suas vidas. Acompanhavam o rito apenas por convencionalismo, mas dissimulavam seus verdadeiros interesses, revestiam-nos por uma camada solene de compaixão. Uma mulher até fez questão de derramar uma lágrima enquanto ajoelhava frente ao sepulcro... Que espetáculo! Fiquei abismado com a habilidade da mulher. Ossos do ofício, eu acho.

Todo o fingimento me causou enorme asco. E tanto fingiam que suas faces se contorciam ridículas ao expressarem uma tristeza que não sentiam. Ninguém chorou, exceto aquela desconhecida, nem mesmo eu, porque não era vergonha admitir que alguém de minha índole fosse fácil de ser substituído. Por fora, estavam silenciosos e dispostos a refletir um pouco sobre minha existência, mas, por dentro, se remoíam no afã de encontrar ali, no sepulcro, uma maneira de se desembaraçarem finalmente dos problemas que lhes arranhavam a carne já putrefata. Por falta de tempo, em cada íris era possível identificar pequenas labaredas alimentadas apenas pelo desejo da cerimônia fatigosa acabar rápido, a fim de poder voltar para casa já pensando em como usar a minha morte para enterrar de uma vez por todas os problemas que em vida eu não quis resolver para eles.

“O velho tem parentes próximos?”, ouvi um deles perguntar, “acho que não, mas me disseram que ele deixou muita coisa e não tem para quem herdar”, respondeu o outro, “e o que é que vão fazer com todo o dinheiro dele? Ele tem dinheiro p’ra caramba!”, voltou a dizer o primeiro, perplexo com o destino cruel da minha riqueza. Eram ambos jovens com seus dezenove anos, aparentemente.

“Não, eu não tenho ninguém para herdar minha riqueza”, respondi a mim mesmo.

Numa parte afastada do céu azul-cinzento sobre minha cabeça, descansei meus olhos, bebendo ar e mastigando terra. Era fato a obrigação de considerar que por trás do que acontecia, apesar de desprezível, existiam idéias fortes, e, sobretudo, as duas faces do mesmo Deus que ilumina os dias e renova as noites. Ainda que torturante, depois de ouvir a conversa dos jovens prostrados frente ao buraco e olhando para o meu caixão com seus olhos inteiramente humanos, era preciso consultar minha consciência sobre o que eles destacaram no diálogo. “Reflita”, ordenei a mim mesmo.

Entrei em mim, consultei todas as respostas que tinha e percebi que havia um espaço em branco no mural onde todas elas estavam penduradas por alfinetes. Bebi mais uma longa dose de ar e com grande esforço voltei a ter o mesmo ânimo de quando era jovem, tentando apreciar os pequenos encantos da vida nem que fosse por um último instante. O espaço em branco foi ocupando toda a minha visão como um espelho embaçado. Olhei com atenção para ele, mais e mais concentrado a fim de desvendar o enigma. De todas as surpresas que tive durante a vida, esta foi a maior. Num relâmpago discernido e bem-amado, decifrei a charada ao me perguntar quem realmente eu era: eu não sou, não fui e não terei mais chances de ser. Esta foi a grande descoberta!

Meu desprezo não era tanto pelas evasivas ou atitudes alheias, no fundo, eu não podia rezar, sequer argumentar, porque não havia devoção alguma que pudesse alumiar minha alma. Ele reescreveu algumas linhas do meu destino e agora eu vivo de esmolas, nessa rua movimentada e arrastada pela multidão de pessoas tumultuadas consigo mesmas; algumas das quais a sobrevivência se deve ao dinheiro que atirei do alto desse mesmo prédio, onde a música de Beethoven nasce para a multidão de transeuntes empedernidos, em meio a uma tempestade de estímulos internos tão sagazes quanto a verdade que descobri no enterro de anteontem. Fui abençoado sem merecer, e isso não ocorre sempre. Sabe de uma coisa: não terei mais uma chance de ser alguém, mas pelo menos sei como se deve ser.

Escrito entre 25/06/03

DonnieDarko
Enviado por DonnieDarko em 04/12/2005
Código do texto: T81005