Nada mais é como deveria ser

1.

O barulho do salto alto ecoava pelo corredor vazio. A atmosfera carregada mostrava que as pessoas iam até lá para morrer. Abandonados. Pessoas sem passado e sem futuro.

Por baixo de seu casaco, havia um uniforme azul e uma plaquinha com seu nome. A maquiagem carregada não escondia que aqueles olhos, que eram da mesma cor do uniforme, estavam cheios de tristeza e preocupação.

O médico a estava esperando.

- Se ela não souber quem você é, não pense que é porque ela não te ama. É apenas a doença.

A senhora deitada na cama parecia tão velha quanto à eternidade. Seu rosto pálido parecia uma tortura contra a vida. A humanidade não deveria ser obrigada a viver em condições adversas.

- Senhora Muttlepot. Tem uma visita para você– disse o médico com um sorriso plástico no rosto.

- Quem? Quem é?

- Mamãe, sou eu. A Madalenne, sua filha.

- Filha? Eu lembro de ser filha, mas não mãe. Quando eu era menor eu sonhava com muitas coisas, castelos, príncipes e muitas aventuras. Aqui é meu castelo?

- Não mãe. Você está no hospital.

- Você é muito bonita moça, quem é você?

2.

Enquanto lutava desesperadamente contra seu ursinho de pelúcia, ouvia os gritos da mãe chamando para o banho. Era uma coisa estúpida, por que tinha que tomar banho se ele ia acabar se sujando novamente? Mas sua mãe não compartilhava da mesma idéia e ele já começava a achar que ser adulto era ter idéias estúpidas.

Em momentos perigosos como este, ele se escondia na sala de seu amigo imaginário, para pedir conselhos ou apenas ouvir uma palavra de conforto. O lugar também era conhecido pelos adultos como armário.

- Fugindo do banho de novo?

- É... Não entendo porque tenho que tomar banho agora, já tomei um ontem.

- Logo você vai entender. Você tem o que? Oito anos?

- Nove.

- Nove. Mas alguma coisa vai mudar. Você pode sentir no ar, não?

- Eu não entendo o que você quer dizer com isso.

- Mas logo irá entender. A certeza foi mudada. O certo agora não é mais certo. Você entende?

- Não.

- Alguma coisa aconteceu. As pessoas estão perdendo o que possuem e ganhando o que não tem. Agora você entende?

- Nojento.

- O que?

- Como os bebês são feitos. Iuck..

- É claro que são. Viu, é isso que eu estava dizendo. Memórias que não nos pertencem. Está tudo bagunçado.

- Por que parece que meu nome é senhora Muttlepot e eu tenho uma fábrica clandestina de bebidas no meu porão?

- A caixa de pandora foi aberta.

- E o que é isso?

- Pergunte à senhora Muttlepot.

- Eu não acredito que fui tão irresponsável e agora tenho uma filha.

- Com a sua idade tudo que você tem são amigos imaginários.

3.

O suor que escorria de seu rosto era o resultado de uma perseguição frenética em telhados. Eram noites como aquela que fazia com que ele se arrependesse de suas escolhas. Mas o mundo era cheio de lixo e alguém tinha que se livrar dele.

O homem ensanguentado na ponta da sua mão não se comportava como alguém espancado. Havia um sorriso débil ao meio de todo aquele sangue. Talvez fosse algum masoquista ou algo assim. Ele tinha que perguntar.

- Do que você está rindo?

- De você. Esse seu uniforme ridículo. Você pensa que isso é o bastante para salvar o mundo?

- Alguém precisa acabar com pessoas como você.

- E você acha mesmo que pode vencer?

- Até o momento estou fazendo o trabalho muito bem.

- É claro – o homem disse cuspindo sangue na roupa do homem fantasiado – Tá vendo esse botão aqui? – continuou tirando um aparelho do bolso – Quando eu apertar isso aqui você não vai mais ser você. O seu cérebro vai ser apagado como um quadro negro depois de uma aula de física. Interessante não? O cérebro não é nada mais do que impulsos elétricos e eu tenho aqui um campo eletromagnético grande o bastante para bagunçar tudo. Fascinante não?

O homem apertou sua mão e a luva de couro revestiu o pescoço do homem despenteado.

- Você não ousaria!

- O que? Quem é você?

O homem fantasiado levantou-se e foi até a janela. Olhando seu reflexo pelo vidro, ele tentava se lembrar de alguma coisa.

- A imaginação de um garoto eu acho. Não, espere, eu acho que é carnaval.

Thom Ficman
Enviado por Thom Ficman em 20/01/2008
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