No circo, há lugar para todos, Cosette!

Quando eu, Cosette Dijon, entrei no circo pela primeira vez com uma enorme bagagem composta por uma pequena mala com algumas roupas e mil lembranças, algum dinheiro, algum talento pra dançarina, muita coragem e boa vontade, o dono do picadeiro, o Senhor Zider, me disse exatamente isso com um gesto de mãos abrangente: “Minha filinha, bem vinda! Bem vinda pois no circo, há lugar para todos Cosette!”. Não era muito tarde e os preparativos estavam começando para mais uma noite lúdica sob a tenda.

Meus olhos se maravilharam com tanta beleza e magnitude. Senti-me tão pequena, tão pequena sob os panos coloridos. Lá fora estavam os carros do circo todos com o mesmo emblema: “Le Grand Cirque Papillon”. Havia também uma enorme borboleta colorida no emblema.

Na hora em que entrei, o dono do picadeiro, o Senhor Zider, me abraçando como um pai, me levou para conhecer os artistas e toda a instalação. Senti-me tão feliz naquela hora esquecendo-me de tudo, de que eu iria sair daquela cidadezinha tão pequena onde eu não tinha nada. O circo por pior que fosse, jamais seria tão ruim quando aquela casa onde eu morava: o cheiro de bebida por todo lado, meus irmãos menores passando frio e fome sem a minha mãe que há muito já se fora. Meu pai sempre bêbado. De qualquer modo, entristeceu-me profundamente deixar toda aquela miséria para trás, porque mesmo sendo tudo tão horrível, era aquela a minha casa e a minha família.

Agora eu tinha uma nova casa e uma nova família. Os primeiros novos “parentes” que conheci foram os palhaços Jean e Pierre. Ao me verem, pintados e coloridos daquele jeito engraçado mesmo, acho que só para me divertir um pouco, fizeram algumas palhaçadas. Meus olhos, mesmo tristes, obedeceram minha vontade e riram junto com os lábios. Os palhaços e sua alegria tão contagiante, faziam desde crianças até velhinhos darem boas gargalhadas. Mesmo assim, eu me perguntava o que haveria por trás da pintura. Quem sabe um semblante também igual ao meu, choroso e carregado de emoções. Será que eles também fugiram de casa? Será que eles já amaram um dia? É tão ruim amar alguém que está muito longe. Longe demais. Não seriam os risos para esquecer a dor?

O próximo que eu conheci foi Armando Lopez. Um homem de uns trinta anos que era o mágico do circo. Armando Lopez era conhecido como um grande ilusionista. Quando me viu, tirou da cartola uma flor, um lírio branco. Como será que ele sabia que era essa a minha flor favorita? “Minha mãe tinha um jardim repleto delas, Senhor Lopez”. Disse-lhe. Ele me respondeu “eu sei, criança!”. Nunca eu conheci a vida toda alguém tão sensível como Senhor Lopez. Seus olhos de uma cor verde vivo, me fitavam tanto que eu tinha medo que ele pudesse ler os meus pensamentos. Pelo visto ele os lia. Depois de um tempo no circo ficamos muito amigos eu e ele. Ele sabia de tudo: das minhas aflições, dos meus medos e das minhas vontades na vida. Ele nunca contava nada pra ninguém. Nem sobre ele mesmo. Mas mesmo sabendo pouco sobre o Senhor Lopez e sobre seus olhos tão jovens, eu sentia bem lá no fundo, que nos conhecíamos de longa data.

Quem me agradava muito era a Dona Carmela. Era a mulher gorda do circo. Fazia alguns números com um homem bem baixinho e magrinho que nunca falava muito. Mas ah, a dona Carmela ria à toa! Era enorme e feliz da vida. Ela fazia números de humor e cozinhava para toda a trupe. Sempre que ela podia, fazia meu doce favorito só para mim. Aliás, ela era um doce! Lembrava-me um enorme suspiro pois, algumas vezes, a vi sentada em seu cantinho suspirando e lamentando. Só por alguns segundos. Depois ela se sacodia toda e botava um sorrisão no rosto. Aquele enorme rosto.

Ainda no passeio, conheci o malabarista, Simas, um garoto de uns dezessete anos no máximo. Simas tinha um sorriso lindo de morrer. Tão exibido era ele, equilibrando tudo com a cabeça em cima de um monociclo enquanto girava as bolas e pinos no ar. Nunca, nunca deixou nada cair n frente do público. Ele me olhou e piscou para mim. Será que ele era assim fora do picadeiro também? Sempre equilibrando tudo sem deixar cair. É difícil muitas vezes equilibrar as emoções. Tem dias que quero jogar tudo para o alto e me esquecer. Mas a lembrança da vida é inevitável.

A patrícia que conheci em seguida se chamava Rita, era a mulher elástica. Ela brincava com o corpo, se desdobrava, fazia cada coisa. Rita dava nó em pingo d’água. Menina impossível. Sempre maquiada e brilhante, sempre se desconjuntando e voltando ao normal depois. Fez questão de ir saltando e se desdobrando até um lado do picadeiro onde havia uma mesa e sobre ela uma caixa de bombons. Pegou um e ainda de desdobrando toda, entregou-o na minha mão. Há pessoas que fazem de tudo pelas outras. Quebram-se, caem e levantam pelo outro, pelo próximo, pelo irmão, pelo patrício. Chamo isso de doação. Agradeci-lhe com um enorme sorriso no rosto.

Quando eu achei que não podia ficar mais feliz, foi que eu conheci Anna e Diego, o casal de trapezistas. Eles estavam ensaiando seu número. Achei impressionante como eles precisavam um do outro naquela altura. Precisavam confiar um no outro, precisavam se entregar e se unir. No final, era uma pessoa só. Era lindo ver como estavam unidos, os dois, pra não cair uma vez que a queda poderia ser fatal. Seriam de fato, as pessoas mais unidas e confiáveis que eu conheceria melhor mais tarde. Sempre me ajudaram com os meus estudos. Eles eram tão inteligentes e eu nunca soube muita coisa até conhecê-los. Sou grata a Deus por tê-los colocado no meu caminho.

Foi quando o senhor Zider me disse que o passeio tinha acabado e que mais tarde eu poderia ver os bichos. Convidou-me para assistir a apresentação daquela noite ao seu lado, pois assim me explicaria tudo. Aliás, qual seria a minha função no circo? Bom, eu disse a ele que sabia dançar. Aprendi Can-can nas festas em que eu ia com as minhas amigas na minha cidade sempre que eu podia. E minha mãe me ensinara alguns passos também, eu poderia tentar. O senhor Zider, aquele homem ruivo e enorme como uma foca, me disse que ficasse tranqüila, e que iria dar tudo certo. Pude ver em seus olhos que falava a mais pura verdade e fiquei feliz!

Iria ver a segunda apresentação de circo na vida. A primeira fora há muito tempo atrás, quando eu tinha uns cinco anos e minha mãe me levou. O senhor Zider, fez as apresentações comuns e depois se sentou ao meu lado, me falou de cada artista, cada número. Diverti-me à beça naquela noite enquanto esquecia-me de tudo.

No final das apresentações, todos foram em volta da fogueira, e fomos jantar. Dona Carmela tinha feito uma sopa tão boa. Acho que era boa mesmo, não era só porque eu não comia havia uns dois dias. E todos riam e comentavam sobre os lucros da noite. Muitos queriam conversar comigo e saber de mim. Trataram-me com muito carinho e uma certa admiração. Eles me disseram que há muito precisavam de uma dançarina de Can-can para animar o público com números musicais. Fosse como fosse, seria um desafio maravilhoso para mim.

Fui com Rita até os seus aposentos, onde dormiríamos nós duas. Ela me disse que ajudaria com o meu trabalho sempre que eu precisasse, e que no dia seguinte começariam os ensaios. Arrumei então, as poucas coisas que tinha em um cantinho e, morta de sono e tristeza, dormi até o dia seguinte.

Rita me acordou bem cedo e depois do café, fomos para o ensaio. Eu conhecia muitos daqueles discos que ela me mostrou, os quais fariam parte da minha apresentação. Escolhi um e comecei a inventar e lembrar de alguns passos no ritmo daquela música tão ligeira. Pulei e inventei umas mil coisas. O Senhor Lopez bateu palmas quando dei minha apresentação por terminado. Fiquei lisonjeada, pois, ele me disse que eu era fantástica! Imagine, eu, fantástica... Estava longe, muito longe disso. Porém no mesmo dia, montei a minha coreografia e iria me apresentar naquela noite ainda.

Sentia-me extremamente nervosa mas muito feliz também. Quando chegou a minha hora, fui ao picadeiro e me apresentei vestida como uma legitima dançarina francesa, bem ao estilo de “Moulin Rouge”. Fui muito aplaudida, fiquei radiante!

Ao final das apresentações da noite, novamente em volta da fogueira fiquei, tomando um caldo bem quente naquela noite tão fria. O Senhor Zider me deu os parabéns, disse-me que iria aumentar o meu número, colocar mais moças do circo para dançar comigo e até comprar um figurino novo. Como prometido, o dono do picadeiro cumpriu com o que disse, e o meu número agora tinha até seu cartaz e mais cinco bailarinas. Cosette ficou para trás e nasceu Nini Fantine. Achei o nome bem estranho a princípio mas depois me acostumei a ser chamada de “A Pequena Nini”.

Fantine era agora um astro e o circo ia de vento em popa. Os lucros eram gordos, e eu era muito prestigiada e querida por todos. Era mais uma no mundo do circo como todos os outros, e do mesmo modo, eu amava a toda aquela família e jamais me perdoaria se perdesse a amizade e o carinho de algum deles. Mas nem tudo eram rosas no mundo maravilhoso do circo: Dona Carmela faleceu depois de um ano a minha chegada, Simas casou-se e foi embora, a esposa do trapezista também morreu depois de uma queda no meio de seu número. Muitas vezes quando os lucros eram baixos passamos fome e frio. Muitos outros entraram para a trupe, outros saíram.

O Senhor Zider, apesar de já bem idoso depois de dez anos, continuava o mesmo homem forte, e eu continuava muito amiga do Senhor Lopez. Aliás, eu não o chamava assim havia anos. Chamava-o apenas de Armando, meu melhor e fiel amigo, quem sempre me dava colo, quem ainda me chamava de Cosette. “Cosette, minha querida Cosette. O que foi que esse circo fez de bom e ruim para você, minha querida amiga?”.

Mais uma vez na estrada, com todos aqueles carros, eu olhava para a cidade que deixávamos e me lembrava a primeira vez que entrei no “Le Grand Cirque Papillon”, aquela pobre criança sem nada nem ninguém no mundo. Que sempre olhava para a platéia ao final de seus números procurando algum rosto familiar.

Nunca mais soube da minha velha família, dos meus irmãos pequenos, do meu pai tão doente e da minha mãe, que Deus a tenha. Sabia apenas que um dia, ah um dia, eu voltaria a minha pequena cidade. Não sei bem para que, mas eu haveria de voltar. Quem sabe lá ainda houvesse alguma outra garota de quinze anos fugindo de um mundo miserável para o mundo mágico do circo. Quem sabe ainda houvesse alguém acreditando em uma família nova, um lugar melhor, um lugar como o circo por exemplo. Porque no circo, não falta espaço. No circo há lugar para todos!

Carol Bohone
Enviado por Carol Bohone em 27/01/2008
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