Livro de Memórias em Branco

Hoje.

Mergulhou a ponta da quimba do cigarro no fundo negro da xícara. No chiado da brasa se apagando, ouviu os últimos estertores de suas próprias angústias. O silêncio que o invadiu foi o mesmo silêncio eterno do sol no acaso.

Tomado pela paz da decisão definitiva, olhou para além da vidraça. A tarde já vai se vestindo de veludo negro. Nas ruas, uma multidão comemora convulsionada pelo orgulho nacional e pela paixão inverossímil, a vitória da seleção nacional de futebol contra a Alemanha. Nunca entendeu como as pessoas se deixam dominar por esse tipo de alienação.

Também não entendia como nunca sentiu essa euforia que os torcedores sentem por seus times de futebol, por seus ídolos na música, no cinema ou por seus partidos políticos ou eventuais candidatos. Nunca entendeu porque jamais lhe tocara o fervor da fé religiosa ou a empolgação dos torcedores das corridas de cavalos.

Mas, sempre se soube um homem de coração aberto aos sentimentos, às emoções. Ainda que tais eflúvios emotivos lhe tenham sido refratários a maior parte de sua vida.

Sempre buscou deixar-se contaminar pela ternura de um jardim florido, pela inocência dos sorrisos e olhares infantis, pela doçura de um abraço de quem chega de viagem depois de décadas ou de quem parte para o outro lado do oceano. Sempre quis sentir saudade de amigos de infância, de domingos adolescentes, de namoradas ausentes.

O que se alastrou em seu coração, no entanto, foi o musgo cinzento da desconfiança nas intenções humanas, inclusive, nas suas próprias intenções. Nos jardins bem cuidados, via apenas a arte do jardineiro, nas crianças, via apenas a dependência e a exigência tirânica da atenção constante. Nos abraços de chegada, sentia apenas a falta da ausência abdicada e nas partidas, a esperança de que não houvesse mais regressos.

Dos amigos de infância sentia apenas a nostalgia de uma pipa rasgada acidentalmente, das partidas intermináveis de finca-finca e dos banhos de rio em tardes que nunca acabavam. Dos domingos adolescentes, o que mais sentia eram remorsos pelas moedas e notas miúdas subtraídas da carteira do pai para comprar cigarros e assistir as matinês do Cine Alvorada. Pelas namoradas dispensadas nunca sentia arrependimentos ou saudades dos beijos sôfregos ou negados, de carícias consentidas ou não, de sexo selvagem e gozos precipitados.

Durante 70 anos, viveu só dentro de si. Só agora percebe que se tornara um ermitão, isolado do mundo e de si mesmo. Nada relevante vivera durante toda a sua vida. Nenhuma dor lancinante por amor desprezado, porque nunca teve um amor de verdade. Nenhuma saudade edificante, porque nunca viveu de alma presente qualquer momento. Nenhum desgosto deprimente, porque nunca desejou algo mais do que uma fração de segundo.

Até a manhã de ontem, achava-se um homem realizado e pleno. Quando na verdade, era apenas casca de gente. Tão vazio de si mesmo que nem percebera, em 70 anos de convivência, a própria ausência. Uma ausência que agora lhe pesa terrivelmente sobre os ombros e lhe causa ânsias de vômito quando olha o precipício que se estende do coração até a alma.

Ontem.

Abriu a janela e deixou o sol entrar no quarto, ainda semi-adormecido. Em volta, tudo igual como sempre fora. Menos aquele traço de perfume de magnólias e almíscar, impregnando o ar, a suas roupas, sua pele. Aos borbotões, as lembranças da noite anterior arrastaram-no.

Só percebeu que ela estava sentada à sua frente quando apagou a chama do isqueiro com o qual acendia o quinto cigarro da última hora. Ela lhe pediu um cigarro e falou algo sobre a final da copa. Não se lembra da voz dela, apenas dos lábios pintados com batom verde que depois, descobriu ter gosto de maçã. Lembra também dos olhos negros, grandes e brilhantes que sorriam quando ela se calava.

Tomaram cerveja, riram de coisas sem importância, contaram histórias inventadas na hora. Combinaram o preço do programa. Antes de ele pagar a conta do bar, ela pediu sorvete de chocolate e menta na casquinha.

No quarto, ela pediu que deixasse a luz acessa, porque gostava assim. E ele não sentiu vergonha da barriga estufada e dos músculos flácidos dos braços, nem dos pelos brancos do púbis e nem do peito liso, coisas que sempre o atormentavam nessas horas. Nunca havia sido tão fácil ser homem como foi com ela. Nunca tinha durado tanto quanto durou com ela. Nenhuma outra mulher tinha sido tão ardente e feminina em seus braços quanto ela foi naquela noite. E nenhuma antes havia ido embora como ela fez sem levar o dinheiro que deixava sempre, bem a vista, sobre o criado e estrategicamente perto da bolsa.

Foi então que, de súbito, percebeu que aquele perfume em extinção era tudo o que dela lhe restara. E o quanto deixara de ser, de viver, de sentir em 70 anos de vida.

Hoje.

Deixou uma nota embaixo do pires e saiu do café. A multidão, em sua alegria esfuziante, o engolfou como uma onda de braços, pernas, cabeças, bandeiras, gritos, buzinas, cornetas, fogos de artifício. Uma onda verde-amarela. Uma sensação de estréia no mundo transbordou-lhe no rosto na forma de um sorriso permanente.

O tempo não volta. O que foi, será passado, sempre. O que não se viveu está perdido, irremediavelmente. É certo, isso. Mas, sempre há tempo para se viver quando se percebe, não importa como nem em que ponto da existência, que a vida só acaba mesmo quando se desiste dela. E, aos 70 anos, ele acaba de se descobrir, finalmente, um homem com apenas um dia de nascido e que tem um livro de memórias em branco à espera para ser inteiramente escrito.

(Antonio Peres Pacheco)

Antonio P Pacheco
Enviado por Antonio P Pacheco em 28/01/2008
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