O Encontro

Desceu o barranco, trôpego, escorregando nas pedras soltas da trilha estreita. O sol, meio dia, tinindo fogo nos cabelos sarará, chamuscado. Os olhos brilham com chamas de uma certeza aguda, aflitiva, de que ele está lá a sua espera. Aflição tesa pelo momento mais esperado em toda a sua parca existência. Na pressa descuidada e tropeçante do caminho, a correia da sandália de borracha barata e gasta arrebenta. Da boca seca escapa uma praga e uma prece fervorosa à Nossa Senhora de Sant´Ana, madrinha de fé, em agradecimento antecipado à graça que imagina já ter alcançado.

O cascalho refulge, arisco, sob os pés, retardando a chegada ao seu destino. O corpo magro, envolto em restos de uma camisa velhíssima e de cor imprecisa, balança num ensaio de queda incompleta. O corpo esquálido imita um tosco mastro a sustentar uma bandeira, esfarrapada em feroz batalha - pela vida -, a tremular ao vento num campo sem sobreviventes. Vento que as narinas largas, de negro angola ancestral, sorve a largas golfadas. Negro. Negro. “Doutor Nego, por favor”, assim hão de chamá-lo amanhã, imagina. O sonho vem de muito, tempos idos e longos de espera paciente, entremeados aqui e ali por desesperos tênues, raivas violentas sossegadas com goles permanentes de cachaça nos botecos da vila.

O rio reflete os raios do sol feito espelho líquido, lampejando estrelas nas cristas dos banzeiros. Águas claras, doces e mornas nas noites de lua cheia. Pisa a areia branca da praiazinha com a força de destemido conquistador sentindo com prazer o "crotch-crotch" dos próprios passos rumo a conquista definitiva.

Na beira do rio, com olhos esbugalhados e fulminantes, examina atentamente tudo em volta. Nas distâncias curtas e longas busca sinais da presença dele. O peito arfante segura à custo o bater descompassado do coração. Ele estava ali, tem certeza. Onde, então ? O sonho não o enganaria. Não era o sonho o aviso certeiro? Era. Respirou fundo e um arremedo de sorriso desenhou-se em seus lábios grossos e ressecados. Andou mais alguns passos, seguindo as águas gargarejantes sobre o leito pedregoso do rio, os olhos grudados e atentos às variações do cascalho no chão.

Próximo à uma pequena enseada, abaixou-se e apanhou com as duas mãos um punhado de areia e pedregulhos miúdos. Examinou a porção que tinha nas mãos e, tomado de euforia até a alma, gargalhou alto, longa e desassombradamente, a boca desdentada totalmente aberta como que querendo engolir o impassível céu azul. Seu espasmo de alegria desmedida assustou para longe as garças, quero-queros e bem-te-vis. Ele riu até as pernas se recusarem a mante-lo de pé e dobrarem-se até deixa-lo de joelhos em adoração à natureza de tudo e de sua fé.

Passada a explosão de alegria sem origem, começou a trabalhar o cascalho do leito do rio. Recolheu, lavou, separou o cascalho em suas várias formas, peneirou e bateiou até a luz do dia ser engolida pelas sombras da boca da noite, mas ele não apareceu, não veio, mangando ao encontro avisado em sonho. A frágil luz das estrelas iluminou-lhe a certeza de que as águas levaram com elas o sonho. A certeza deu lugar ao vazio medonho dos abismos abissais onde apodrecem todas as esperanças humanas, oco no peito e no estômago maltratado pela fome de um dia inteiro sem arroz, feijão, farinha e um naco que seja de carne seca.

A lua cheia avançou sua cara redonda e vermelha acima do fim do mundo para encontra-lo ainda sentado sobre o monte inútil de cascalho. As águas do rio aquietaram-se sem o lufar do vento ardente da tarde e seu rumorejar tornou-se um canto de Yaras em consolo à sua decepção. Foi só então que o viu num olhar distraído lançado ao acaso para o fundo da lâmina prateada das águas. Lá estava ele onde não imaginara jamais que pudesse estar, grande, brilhante como uma estrela, emitindo uma luz que vinha de si mesmo e que trespassava as profundezas das águas iluminando os cardumes de matrinxãs, piaus, pacus, bagres e lambaris.

Feito moleque, embriagado por uma felicidade renascida da renúncia à tudo o que fora então sua vida, levantou-se de onde estava em um salto para mergulhar sob as águas tépidas do rio em direção a luz que emanava dele. Apenas um curiango, pousado sobre uma pedra, testemunhou em silêncio aquele encontro eterno.

Antonio P Pacheco
Enviado por Antonio P Pacheco em 29/01/2008
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