Gafanhotos

GAFANHOTOS

(conto publicado no livro "O Insidioso Fato - Algumas historinhas cínicas e moralistas", contos, Florianópolis, UDESC/Editora, 1979, 86 pág.)

Detesto gafanhotos. São uma praga. Há milênios já invadiam o Egito. Destruíam o trigo, semeavam a fome. Muita gente se suicidou para não morrer de fome. Por causa deles.

Detesto gafanhotos. Outro dia entrou-me um em casa, não pude matar. Sentia aquele bicho me espreitando de um canto qualquer, de trás de algum móvel. Não tenho quase móveis em casa, o que não elimina a possibilidade de um gafanhoto se esconder atrás de uma cadeira, por exemplo. Quase não tenho casa, também, o que não impede que, ainda assim, entrem gafanhotos pela janela. Sua presença verde enchia o ambiente, um apartamento de quarto e sala no primeiro andar. Acho que se fosse um pouco mais alto - com mais precisão: do terceiro andar para cima - o bicho não entrava. O caminhar de suas longas patas traseiras se fazia ouvir exatamente a partir das onze da noite, quando o silêncio se torna mais escuro que breu. Suas asas, escutava-as rufar sempre às minhas costas, duras e secas como papel celofane transparente. Um terror. Uma praga.

Detesto gafanhotos. Mas não posso impedi-los de entrar por minha janela, especialmente quando não estou em casa. Ultimamente tenho ficado a guardar as entradas do apartamento, atento a qualquer aproximação. Toda aproximação, por definição, é suspeita, pois implica num interesse, numa comunhão de que posso até nem compartilhar. E detesto ter que aceitar uma imposição. Por isso decidi não aceitar, não compactuar com a presença do gafanhoto. E já que não posso expulsá-lo, sequer eliminá-lo, cuido com afinco para que outros não venham a se juntar a este que burlou minha vigília. Porque sei que outros virão, como sabia já de há muito que este primeiro chegaria um dia. Como realmente chegou, impávido, verde e imponente, janela adentro.

É engraçado. Embora aguardasse sua chegada (e isso afinal representou um alívio enorme para mim, pois nada há de mais torturante do que aguardar a vinda fatal de um gafanhoto sem saber a data em que o evento vai se produzir), embora aguardasse sua chegada, ia dizendo, só notei que havia gafanhotos em casa quando desapareceu um pedaço dos "Dez dias que abalaram o mundo". Eu estava relendo o livro, ainda recordo bem, e o marcador indicava a página 55. De repente, desapareceu um pedaço: desde a capa até a página 6. Assustei-me, sem dúvida: dez por cento, pouco mais, do que eu já lera! Comecei a temer pelo livro, ou melhor, pelo sucesso de minha releitura. Inda mais agora, em que pouco tempo me sobrava para que eu me dedicasse à leitura, única coisa que sei fazer, que consigo fazer, que gosto de fazer. Meu tempo todo (ou quase todo) passou a ser dedicado à execrável tarefa de impedir a entrada de novos gafanhotos (eu, que detesto gafanhotos!).

Dia seguinte consegui atingir apenas a página 60; o gafanhoto, a 12. Estava indo mais rápido do que eu. Consolava-me saber que, a 6 páginas por dia, só podia se tratar mesmo de um gafanhoto apenas. Mas cumpria não descuidar, outros mais rondavam o apartamento, vigiando meus movimentos cá dentro, esperando calmamente o mais leve dos meus cochilos. E isso eu jamais poderia permitir.

Passamos a conviver, eu e o gafanhoto. De início, brigávamos por aquele livro. Deus, foi uma epopéia! Quase venci, se isso pode ser considerado um bom resultado. Mas acho que foi. Só não consegui reler a última página, o gafanhoto comeu antes, junto com a capa traseira. Mas a capa, é lógico, não tinha importância alguma, nada havia de especial que pudesse acrescentar algo ao texto. Escondido, apanhei, para nova leitura, o "1984". Fazia assim: olhava bem onde estava o volume, apagava a luz e, tateando no escuro, emergia à claridade com o livro na mão. O expediente demonstrou sua validade, o que permitiu uma leitura tranqüila, considerada a situação reinante. Fui muito bem até a página 140, exatamente a metade da obra, saboreando minha retumbante vitória. Como até hoje nunca vi o gafanhoto (acho que ia me esquecendo de contar, mas é verdade, sim, pressinto suas antenas a me sondar, trágico radar a me vigiar os movimentos, porém jamais consegui pousar-lhe os olhos na carcaça verdolenga), cheguei a supor - vã esperança! - que ele tivesse se ido, cansado de atormentar-me, a mim, que detesto gafanhotos. Ao atingir a página 140 de "1984", porém, notei que uma das cadeiras estava bamba, meio torta para o lado da parede. Não a cadeira que costumo utilizar para minhas leituras, ou mesmo para vigiar a janela, mas a outra, a que serve de cabide, armário e sapateira: o animal vinha comendo, cada dia, de uma perna da cadeira, pouco a pouco. Foi meu grande período, enquanto havia a cadeira: com a velocidade que a prática de anos a fio me proporcionou, devorei livros, perdão, quem o fez foi o gafanhoto, depois de ter liquidado as duas cadeiras, a mesinha e minha tosca cama de solteiro, ou seja, toda a mobília do imóvel. Quanto a mim, enquanto se consumiam os móveis (e eu tinha certeza que ainda era apenas um gafanhoto que me atormentava, não deixara entrar mais nenhum), aproveitei o tempo para ler, primeiro, os livros que não lera até então, dezenas deles, e a seguir parti para as releituras.

Sei que se aproxima o grande momento, a decisão final: nada mais há no apartamento além de paredes nuas, piso descoberto, teto branco. Além de mim e do gafanhoto, é lógico. Não consigo descobrir atrás de que o animal se esconde, pois não existem mais portas nem janelas, nem portais, umbrais, nem livros nem nada. Mas eu sei que ele anda por aí, verde e ameaçador, faminto como eu, preparando-nos ambos para algo que virá, hoje, amanhã, mês que vem, um dia.

Duas coisas posso afirmar com toda segurança:

1. não entrou mais nenhum gafanhoto no apartamento, apesar das inúmeras tentativas; para isso, pelo menos, valeu minha vigilância criteriosa; e

2. detesto gafanhotos!

N.S.Desterro, outubro de 1978

(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "O Tempo de Eduardo Dias - Tragédia em 4 tempos", teatro)

Amilcar Neves
Enviado por Amilcar Neves em 02/02/2008
Código do texto: T843031
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