Aconteceu na mina

I

A noite estava fria e clara e pegar a zero hora chegava ser um sacrilégio. Era troca de “terno”, quem pegava às seis da tarde estava largando. Naquela época a mina trabalhava as vinte e quatro horas do dia, era o auge da produção de carvão e, mesmo para uma noite de outono, as ruas próximas ao poço tinham significativo movimento já que cerca de duzentos operários estavam se revezando no trabalho. Cumprimentos, brincadeiras em duplas, trios, grupos de bicicleta ou a pé, homens tisnos de carvão, ou já banhados, enchiam a rua de vida.

- Se tu andar ligeiro ainda encontra a cama quentinha e a Rosinha cheia de amor pra dar! – brincou Alemão ao encontrar Carlinhos, que, de tanto carvão, voltava para casa só com os olhos e dentes brancos.

- Mas tu não tem serventia mesmo, Alemão. Vai lá, não consegue nada e ainda tem coragem de contar.

Afastam-se rindo. Em qualquer outro lugar isso seria motivo de briga, surra de facão, tiros...Não ali na boca do poço, onde cada mineiro tem a mulher que vem pra mina, uma de “faz de conta” que se presta para as mais variadas brincadeiras. Agora, a de verdade, a que realmente aguardava, atenta ao menor atraso, a real, a de carne e osso, que criava os filhos, cuidava a casa, enfrentava a cooperativa e suas burocracias e filas, lutava contra aquela mancha cinza que insistia em marcar o lado do marido na cama... Esta jamais atravessava o portão da mina, a não ser em caso de tragédia.

II

Assim, quem aguardava o Carlinhos era Maria. Olhos muito abertos no escuro do quarto velando o sono dos filhos, mas atenta ao rangido do portão que anunciava a chegada do marido.

Ela, como as demais esposas, tinha a sua rotina ditada pelo terno do marido. Se ele pegasse às zero, ficava sozinha sentada na cozinha cuidando a hora para despertá-lo. No terno das seis da manhã, acordava às quatro, passava café, fritava pastéis – ás vezes se dava o trabalho de participar das traquinagens dele, recheando um com apenas sal e farinha para “pegar” algum guloso desavisado.

Se os filhos ou o sogro – o qual um derrame deixara paraplégico e cego – acordassem, dava-lhes um bom café com pastel quente antes de dormirem outra vez. Quando era terno do meio-dia, o almoço tinha que estar à mesa às onze. Se a pegada fosse às seis da tarde, passava o dia a sua volta, deixando faxinas, limpezas para depois que ele fosse trabalhar e, mesmo que conseguisse deitar, não adormecia antes dele chegar.

III

Uma vez, um novato chamado Antônio, muito sério e de pouquíssimos amigos, presenciou uma brincadeira um pouco “forte” com a mulher de um colega e jurou para si mesmo não dizer o nome da mulher por nada deste mundo. Os outros andavam às voltas tentando encontrar uma forma de saber, mas ele era tão sério que não teve jeito nem de inventar um nome como geralmente faziam.

Um turno de trabalho (terno) durava seis horas, na metade dele costumavam parar o trabalho para fazer uma refeição que podia ser pão com manteiga ou mortadela e café preto – geralmente em garrafas de 600 ml – até viandas com arroz, feijão, carne, por exemplo. O pó fino que aspiravam misturava-se aos alimentos, mas eles não tinham muita escolha, já que ficavam satisfeitos em driblar os ratos. No terno da noite, Carlinhos costumava levar refrigerante e bolacha d’água. Como num ritual, sempre deixava um pouco para a filha de cinco anos que não abria mão de tomar o “guaraná da mina” - nem aceitava trocar por um novinho. O pai não entendia a graça daquilo: refrigerante morno, choco, sem gás, certamente com pó de carvão...Mas ela gostava e ele não tinha coragem de negar.

Naquela noite resolveu que ia descobrir o nome da esposa do Antônio. Na hora de comer, sentou-se ao lado dele, que sempre ficava mais afastado, e puxou conversa. Falou do serviço, da filha e de sua mania de beber guaraná da mina e lá pelas tantas lascou:

- A minha patroa se chama Rosinha. E a sua, seu Antônio?

- Palmira.

Antônio mal fechou a boca e se deu conta da enrascada em que metera a si mesmo e a mulher. Teria que matar no peito as chacotas que certamente viriam. Veterano, Carlinhos lhe tinha arrancado um segredo de morte.

Antônio ainda não sabia, mas em breve compreenderia que as brincadeiras, o parentesco, a solidariedade é que sustentavam aqueles homens numa tarefa tão árdua que os tornava heróis só pelo fato de descerem a quase trezentos metros do solo.

Depois daquela do Carlinhos, ficou um pouco arisco com o companheiro, mas conhecendo-o melhor, logo viu que as brincadeiras tinham limite e que afinal seu erro não tinha sido assim tão grave.

IV

Ainda hoje, Carlinhos lembra dessa história com um sorriso:

- Coitado do Antônio, quanta ingenuidade...

Gosta de relembrar os tempos em que trabalhou na mina e, havendo alguém disposto em ouvi-lo, tem prazer de contar um ou outro acontecido:

- Eu era furador, usava o martelo – uma perfuratriz elétrica que pesava bem uns vinte quilos, que tinha na ponta uma broca que podia medir de um a três metros. Nos buracos feitos por ela se colocava uma banana e meia de dinamite com um estopim de um metro e sessenta centímetros de comprimento. Assim se rebentava o grosso do carvão que depois se tirava na pá e na picareta. Levado até o real (túnel construído onde não se faziam escavações e que eram sustentados por toras de madeira) de transporte por calha (correia de ferro arrastada por correntes que se mexiam dentro dela) e depois seguia em correias até o silo mais próximo ao elevador de carga.

- No terno anterior tinha ficado um degrau na galeria, daí meti duas cargas embaixo dele para que não atrapalhasse depois. Furei e carreguei as demais como de costume: duas pegas na lateral e uma no centro, mais para o alto. Enquanto eu acendia os estopins, meus dois parceiros foram para o real mestre esperar os tiros. Quando ouviram a primeira explosão, perceberam que algo estava errado. Eu não tinha voltado, mas eles não poderiam entrar lá enquanto não detonassem as demais cargas. Depois do ultimo tiro, foram buscar o que achavam que restava de mim.

Carlinhos silencia, franze a testa:

- Tudo num pertume só, luz só a das lanternas, atravessando a nuvem de poeira levantada pela explosão. O que eles sentiram eu sei, estive mais de uma vez na situação deles: a garganta seca, o coração parece que bate na fronte e é mais alto seu barulho do que o dos tiros. Só ouvi o Zé Coelho falando com a voz meio cortada:

- E agora? Quem conta pra Rosinha?

- Deixa que eu mesmo conto retruquei da escuridão.

Zé Coelho deu um pulo, Antão gelou até os ossos. A mina tinha vindo abaixo e o Carlinhos ainda estava ali, gozando deles. Com a luz das lanternas encontraram-no sentado num dormente, só de cuecas, todo esfolado. Já refeitos e levando-o para o real mestre, ventilado e claro, ouviram a explicação do milagre:

- Eu botei duas cargas naquele degrau para ele não atrapalhar depois. Quando eu terminei de botar as cargas da frente, as duas primeiras queimaram, e como estava em cima do degrau, voei junto. Acordei antes de explodir o resto e me arrastei pra trás e o mundo veio abaixo. Isso quer dizer que o estopim correu antes.

- É...hoje tá fazendo um mês que o Purguinha foi...e pelo jeito que tu tá contando, deve ter acontecido o mesmo com ele - comentou Antão.

Quando foi avisada por uma vizinha do acidente do marido, Maria estava no açougue da cooperativa. Ensurdeceu-se para o apelo do açougueiro:

- Vai ser essa, Dona? – que ficou com o pedaço de carne no ar, sem saber o que fazer.

Sem dizer palavra, pegou os filhos pela mão e deixou tudo como estava: compras no carrinho, carne por comprar.

Aquele tremendo nó na garganta só se desfez quando entrou em casa e viu o marido deitado, mas lúcido.

- Pra ela foi um susto e tanto, mas quase que vou para o hospital quando, daquele estado, invento de brincar dizendo que ela quase que tinha ficado rica com uma indenização.

- Mas eu ainda ia ter muito com que me incomodar. Foi aberto um inquérito para apurar as causas do acidente. Eles também notaram a semelhança com o que aconteceu comigo e com o Purguinha. O Exército, responsável pela segurança dos explosivos, a mineradora o fabricante e o antigo INPS fizeram inúmeros interrogatórios para apurar os culpados, não propriamente por questão de segurança dos empregados, mas pra ver quem pagaria a indenização para a mulher do Purguinha.

- Eu já tinha perdido as contas de quantos depoimentos já tinha dado quando recebi mais uma convocação pro outro dia, na largada das zero. Já tava quase subindo na “gaiola” (elevador) quando o Gateado me atacou, quase botando os bofes para fora:

- Peguei até um transporte para te alcançar. Eu soube que tu tem reunião hoje e te trouxe uma coisa.

Abriu a cesta cheia de estopins mal queimados e me disse:

- Dos trinta tiros que demos hoje, nove falharam. Pode levar e mostrar pros doutor. Não te acanha em dizer o meu nome e a minha chapa porque se precisar eu mesmo vou lá e conto tudo.

Levei aquilo tudo comigo. Na sala de reuniões estavam os mesmos de sempre.

- O senhor pode nos contar como foi o acidente?

- Deve estar tudo registrado aí, mas não tem problema.

Contei tudo de novo, tintim por tintim. E de novo o engenheiro dos fabricantes e o coronel disseram que os estopins não tinham defeitos.

- Não existe possibilidade do senhor ter errado?- perguntou um outro.

- Sou furador há quase dez anos, tenho mulher e filhos, não seria descuidado nem faria qualquer coisa que pudesse me matar. Além do mais acender as cargas obedece uma escala. A gente mede pela alça da caixa de ferramentas, o que dá quarenta centímetros. Cada tiro recebe um estopim de um metro e sessenta; um pega é um estopim de quarenta centímetros que a gente dá cortes na capa em intervalos iguais. Quando ele é aceso, a faísca que sai por cada corte desses permite acender uma carga, mantendo um espaço de tempo igual entre elas que explodem em seqüência.

- Mas o senhor pode ter errado a escala?- me perguntou o oficial. Fingi que não ouvi e perguntei ao engenheiro:

- Se um estopim correr demais é problema?

- Sim, é claro.

- E se não correr também é problema?

- Mas é lógico!

Tirei da cesta um molho de estopins falhados e contei o que o Gateado havia dito.

- De trinta cargas, nove falharam. Isso quer dizer que o seu estopim tem problema, sim. E aquele que levou o Purguinha e que quase me arrastou também correram mais que as outras. Moço, posso não entender nada de engenharia, mas dez anos de mina ensinam muita coisa pra gente.

V

Sai de lá com o coração apertado, sabia que a mulher do Purguinha estava passando necessidades com os quatro filhos. Tinha corrido uma lista entre nós para ajudar, mas isso não era solução. Talvez agora se responsabilizassem porque eu tinha sobrevivido pra contar. Se eu também tivesse morrido, minha mulher e meus filhos teriam passado pelo mesmo sofrimento: perder pai, o esposo e o próprio sustento.

Lembrei do Antônio, da Palmirinha, que ao pegar um cepo na subida do elevador trancou a perna e subiu os duzentos e tantos metros rasgando-a entre a gaiola e a parede do poço. Chegou em cima consciente, mas não teve ninguém que se dispusesse a sujar o carro com sangue e carvão para levá-lo ao posto médico que não ficava a mais de quinhentos metros da mina. Ficou mais de uma hora ali, atirado, os colegas sem saber o que fazer a sua volta.

Quando eu soube que ele estava assim, estava tomando banho. Nos juntamos nuns quantos, botamos ele numa calha de ferro que podia pesar uns trinta quilos e nos revezando, levamos ele pro posto. O médico mal olhou pra ele, cheio de dedos aplicou uma injeção e mandou pro hospital. Ele morreu antes de chegar lá. Aquele tempo que ele ficou ali fez toda a diferença: ninguém morre com um ferimento daquele tipo, a não ser que não seja atendido e se esvaia em sangue. Quanta diferença fez aquela hora. Teria terminado a casa, criado os filhos, talvez até inventado outro nome pra dona Palmira, coitada, ela jamais tirou o luto.

VI

Com o tempo fui perdendo as forças para trabalhar. Passava mal, suava demais, ficava tonto, tinha náuseas. Meu parceiro lutava pra segurar no braço a produção de nós dois. Somos muito amigos até hoje. No último terno saí carregado, nunca mais voltei. Primeiro me botaram de salário beneficio, como se diz hoje, o salário foi lá embaixo. Eu trabalhava por produção, a chapa (piso salarial) era uma miséria e o INPS ainda pagava só setenta por cento da média do que a gente ganhava.

Eu que nunca tinha deixado antes, tive que aceitar que a minha mulher trabalhasse. Os filhos já estavam grandinhos, mas ver ela sair todo o dia com uma bacia de pastel pra segurar o orçamento de casa me doía por dentro. Dois anos depois, aposentaram-me por invalidez. Aos trinta e seis anos não tinha mais serventia pro serviço. Não posso correr cinqüenta metros, mas em lugar nenhum está escrito que foi o serviço que fez isso comigo. Como no ‘causo’ do Purguinha, ninguém quer assumir a bronca. O curioso de tudo isso é que sinto saudade do serviço, dos companheiros, da Rosinha. Se pudesse, eu voltava pra mina, juro que voltava...Comenta ele, num fio de voz.

A mina foi desativada alguns anos depois da aposentadoria de Carlinhos. Guardou em suas entranhas suas tragédias, suas histórias, seus fantasmas que podiam ser ouvidos a bater machados e martelos em zonas já abandonadas. E talvez ainda hoje quantos não estarão lá cumprindo seus ternos sem que ninguém testemunhe isso.

Aos meus pais, Pedro e Eva