a última ponta

Eu lembrava nitidamente o caminho até a casa dela. Era sempre assim. Me perturbava saber que ela sempre tem certeza. E tem mesmo. Sempre. Certeza. Posso imaginá-la trancada no quarto, a janela aberta, a fumaça do incenso penetrando seus cabelos, enlaçando os dedos absortos na rude tarefa de transcrever minha vida. Agora ela pára e olha o nada por onde a fumaça se esvai, à procura da expressão que melhor caia aos meus devaneios, às minhas fraquezas de homem orgulhoso.

E dói. Ter pernas de não andar e boca de não falar. Isso acaba comigo. Sem ter como ir, sem ter cara pra peitar o drama, sem ânimo e sem voz que me permita dizer perdão. Eu penso. Mas eu penso! A ela não basta pensar? Pra quê esse tal sexto sentido se não vale nada ela ter certeza de meus pensamentos? E por quê essa distância de semi-deusa? Aqueles olhos, por cima dos óculos, que perfuram o ar e me golpeiam. Detesto aquele pedantismo esperando, cobrando atitudes e frases bem feitas e ditas que ela sabe que eu não sei dizer. Aquela mania ridícula de perguntar ãn tendo ouvido tudo o que eu disse, só pra ter o prazer de me ver admitir a gagueira tímida que persevera em mim.

Eu sei que um copo d’água poreja em cima da mesa, esperando-a sorver mais alguns goles, aos poucos. Detesto toda aquela lucidez premeditada. Hora disso, hora daquilo. Hoje não, amanhã talvez. Sei que agora a fumaça do incenso dela faz um véu e a protege dos mosquitos. A pele morena das costas sem uma mácula, a alça puída do vestido caída no ombro esquerdo, e ela escrevendo feito louca, com o sestro de quem é canhota, mas é destra. Pilhas de livros que ela nunca leu, nem lerá, eu bem sei. A familiaridade com o proibido a faz desdenhar do meu mundo ilícito, dizendo não preciso disso, não preciso de você assim, sonolento, olhos vermelhos, viajante de terras vis. Acorda e vê o que te cerca. Ela me diz sem precisar soar uma nota de toda essa ladainha ridícula que ela aprendeu numa osmose muito mal-feita no decorrer da adolescência. Ela não entende.

E eu aqui. Odiando com todo fervor que pode haver em alguém. Odiando sempre mais todas as conversas que tivemos e os livros que lemos e a lavagem cerebral que ela quis fazer em mim. Todos os incensos inalados e as mentiras que eu disse, que eu ouvi. Todos os passeios, todos os goles do pouco vinho que ela bebia (e soltava os cabelos, cantava alto, fazíamos amor. Minha medusa...), todos os minutos perdidos na inútil tentativa de fazê-la ver (eu só pedia que ela visse) meu mundo. Tudo o que ela já escreveu sobre mim, desde a primeira sílaba. Renego todos os meus pensamentos dela, todos os pensamentos dela meus. Ao inferno, todos os pesadelos do porvir semeados pela distância de uma semana, todas as canções, tudo o que ela fez e o que vier a fazer. Ao diabo, tudo o que a cerque, tudo. Todas as lembranças de ditos e feitos.

Longe de tudo o que ela é, tento voltar a mim e não consigo. Uma parte de mim é dor e a outra também. A galera, mais um beck, mais um gole da bebida mais vagabunda que houver e o perfume do incenso dela, queimando até a última ponta.