A OUTRA

Numa tarde ensolarada de sábado, sozinho em sua casa, o homem lia um livro.

- Está bom, o livro?

- Que susto. Me pegou distraído.

- Não quis assustar, desculpe.

- Não, tudo bem. O livro é bom, sim. É o segundo livro que leio deste cara. Mas não sei...

- O que há?

- Os dois livros se parecem muito. Um parece continuação do outro.

- E não são continuações?

- Não, são livros diferentes. Mas os enredos são muitos parecidos. Aquele negócio que todo mundo já sabe, “visão crítica da burguesia portuguesa do início do Século XIX, através da reprodução de comédia de costumes e uso de fina ironia pra criticar a estrutura da sociedade da época, bla, blá, blá...”

- E você não gosta?

- Gosto, sim, o cara tem um estilo impressionante. Tem tudo pra se tornar um dos meus autores favoritos.

- Ohhh...

- Não seja irônica. Estou tentando engatar uma conversa razoável com você.

- Tá, foi mal. Não seria por que você começou a ler este logo depois de ter lido o primeiro?

- Pode ser.

- Quando nos vimos da última vez, você não lia tanto.

- Sempre li muito. Você é que não lembra.

- Nada disso. Naquela época você pensava em outras coisas, estava ocupado com outras prioridades...

- Veja bem, minha esposa estava grávida do nosso primeiro filho. Precisávamos casar, e rápido, antes que alguém descobrisse tudo.

- Foi uma confusão.

- Você lembra? Depois que ficaram sabendo, foi um alvoroço.

- Não teria sido mais fácil assumir a situação do que ficar correndo atrás de casamento, às pressas?

- Éramos muito jovens, você se lembra.

- E mesmo assim você não quis vir comigo...

- Como você queria que eu largasse tudo aqui e fosse com você?

- Era sua obrigação. A hora era aquela, você não tinha o direito de me fazer esperar. Você tinha que ter vindo comigo naquele dia. Tive sérios problemas, depois daquilo.

- Imagino. Obrigado, você me ajudou muito ao me deixar ficar.

- Pena que você não soube aproveitar.

- Por que você diz isso?

- Por que você não fez nada que prestasse da vida que lhe sobrou depois daquele dia.

- É, eu sei.

- Você casou, teve seu primeiro filho, depois vocês tiveram mais dois, e aí você deixou de existir. Nunca mais estudou, não pintou mais um único quadro, construiu esta casa com a ajuda do sogro. Depois veio a doença dela, o definhamento, até que tive que vir buscá-la quando as crianças ainda eram pequenas. E você diminuindo, limitando-se a trabalhar pra sustentar a casa e acabar de criar os filhos.

- Até que tentei mudar alguma coisa, você sabe. Lembra-se de quando eu quis largar tudo e ir embora do país?

- Morar na Itália? Estudar pintura, alugar uma casa com vista para a Ponte Vecchio? Viúvo e com três filhos? Loucura sua. Algum resquício de irresponsabilidade juvenil.

Ainda bem que não foi.

- E nem tinha como ir. Não tinha dinheiro. Ia vender o carro e chegar lá quase sem nada.

- E aquele carro não dava nem o dinheiro da passagem. Depois você teve hipertensão, diabetes, colesterol alto. Você padeceu um bocado.

- Ia doer muito?

- Não, você não ia nem sentir.

- Ia ser naquela curva, perto do trevo?

- É, ia ser ali, sim. Você não ia sentir nada, ia perder o controle da moto e bater no poste. Seria como apagar uma luz. Você não ia nem perceber. A questão é que, na hora em que a moto derrapou, você fechou os olhos e fez um pedido tão desesperado que hesitei. Pela primeira vez, hesitei. E aí, quando percebi, você já estava vivo de novo.

- Quer dizer que...

- Sim, eu já segurava sua mão.

- Meu Deus. Por isso que ninguém acreditou que eu tinha escapado. A moto acabou-se, o poste tinha sangue de montão. E eu saí do local do acidente caminhando. Minha esposa guardou durante muitos anos o convite de casamento todo sujo de sangue.

- E onde é que você estava indo, afinal, naquela correria?

- Estava indo levar o convite para umas tias, e atrasado pra festa que o pessoal do escritório havia preparado. Afinal, estávamos na semana do casamento.

- Definitivamente, você deveria ter vindo comigo naquela época. Teria evitado muita coisa desagradável.

- Por exemplo?

- Desemprego, preocupações, medo, descrença, aquela pancreatite que te fez sofrer tanto. E todos os outros desapontamentos que só a vida pode oferecer a quem está, evidentemente, vivo. Além do que houve com sua mulher, claro.

- Você não faz idéia de como eu sofri com aquilo.

- Sempre a mesma lenga-lenga. Eu não tenho culpa nenhuma. Você fez a sua escolha, preferiu permanecer vivo. Se alguém tem culpa nessa história, é você mesmo.

- Não dava pra ter vindo buscá-la depois? Quando as crianças já estivessem maiores, por exemplo?

- Opa, opa, opa. Trabalho é trabalho. Já escutei muito esculacho por não ter levado você quando era preciso. E outra coisa, a doença dela era fatal, não dava pra fazer nada.

- Preferia que você tivesse levado a mim, não a ela. Foi terrível.

- Mas foi justamente o que eu vim fazer naquele dia, meu filho, e você pediu pra ficar. E eu, boba, aceitei e deu no que deu. Nunca mais.

- Mas você não me disse que eu ia perdê-la daquela forma.

- E você acha que eu sei como é que as coisas vão acontecer com as pessoas? Fico lá, quietinha, aí chega a Ordem de Serviço e eu venho aqui pra cumprir. Quem decide quem, quando e como não sou eu, não. Eu só faço meu trabalho, quem manda são eles lá em cima.

- Eles? Não seria Ele?

- No começo, era. Mas com o advento dos serviços de terceirização, atualmente dizem que Ele só assina.

- E, pelo que estou vendo, hoje é meu dia.

- Pois é, dessa vez não tem jeito. Vou ter que levar você.

- Mas logo agora?

- Sim, agora, por quê?

- Sabe o que é? É que dentro de trinta, quarenta dias, meu neto mais velho vai se formar na Faculdade. Já imaginou se eu morrer logo agora?

- Você não toma jeito, mesmo. Não, não dá não. Vai ter Formatura do mesmo jeito, com ou sem você.

- Mas justo agora, quando me sinto tão bem? Morrer assim, lendo?

- Não dá pra esperar você acabar de ler. Você nasceu sem nem saber ler, agora fica querendo protelar a própria morte por causa de um livro. Vamos, está na hora.

- Levo meus remédios?

- Não, não precisa. Você não vai precisar de remédios para onde estamos indo.

- Está bem. Vamos, então. Vai demorar muito pra chegar?

- Depende de você. Na verdade não vamos juntos, eu só vou levar você até o Corredor e depois volto pra pegar mais algumas pessoas.

- Mas como eu vou saber pra onde ir?

- Você vai saber. Quando chegar lá, você vai saber.

- E eu vou sozinho?

- Não, não vai. Ela vai estar te esperando.

Então o homem sorriu brevemente e adormeceu, sentindo nos cabelos os dedos da que ele mais havia amado enquanto esteve vivo.

Benilson Toniolo
Enviado por Benilson Toniolo em 27/02/2008
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