JUVÊNCIO E SEU PARQUE DE DIVERSÃO

Juvêncio era trabalhador de parque de diversões. Pobre e imundo, ele armava as rodas-gigantes para a alegria das crianças do bairro. Proletários divertiam-se.

Juvêncio sempre sonhara com uma namorada, com uma roupa nova, sapatos limpos... Apenas sonhava. Na realidade, ele nada possuía. Nascera na rua, sem pai e sem mãe; não se tornando marginal simplesmente pelo fato de trabalhar neste pequeno parque de diversões. Juvêncio recebia, dos donos do parque, sopapos, xingamentos e os mais variados tipos de agressões.

Geralmente, as moças do lugar riam de Juvêncio, riam de sua boca desdentada, de sua vida inferior e humilhante. As moças caçoavam dele, mas o pobre rapaz as amava. Sonhava em namorá-las um dia e abraçá-las lá nas alturas das rodas-gigantes.

Sozinho vivia Juvêncio, sozinho com o seu cão já velho, e com o seu violão. Às vezes chovia, e ele, retraindo-se na tristeza, chorava por não ter casa, não ter moça para beijar, por se encontrar abandonado no mundo dos seres humanos.

Certa vez, Juvêncio ficou admirado com uma moça que fôra ao parque para se divertir. Era realmente bela, e Juvêncio sentiu a grande atração de todo homem por uma mulher. Ela fingiu que correspondia e olhava-o, sorrindo maliciosamente. Juvêncio iludiu-se. Todas as noites, Juvêncio pensava e passava a conversar com Estela: “_ Estela, minha estrela...”, versava Juvêncio na ingênua paixão ardente do seu peito.

Passara a conversar, então, com a moça, todos os dias em que ela se dirigia ao parque – aliás, essa era a hora que Juvêncio mais gostava em sua vida miserável, a hora de ver Estela. Quando a via... sentia-se outro. Toda a humilhação de sua miserável vida, todas as agressões recebidas pelos donos do parque desapareciam. Estela era seu encantamento, sua esperança de vida. Ele, às vezes, sentia vergonha de conversar com a moça, porque todo sujo, imprestável, a boca sem qualquer dente... mas ele não se aborrecia, pensava que a moça o achava belo, pensava que existia amor, pensava que este amor não via roupas sujas, dentes podres, boca banguela, vida inferior. Estela era, assim, tudo para ele. Juvêncio passava horas com o seu velho cão sardento, quando se encerrava o funcionamento do parque.

Ficava horas dizendo, para si próprio, coisas sobre a bela moça que enfeitara com a cor da ilusão o seu desacreditado coração.

Em um sábado, quando os trabalhadores do parque armavam toda a diversão do pequeno bairro suburbano, alguém chamou Juvêncio:

_ Juvêncio! Você está sempre conversando com aquela “cabritinha” da Estela... Até parece um inocente príncipe encantado! Fique sabendo, pequeno príncipe, que ela está gozando de sua cara, dizendo que você é banguela, mendigo, idiota. Disseram que a viram a chacotear o seu nome para todas as meninas do bairro.

Juvêncio avançou sobre o homem que disse tais palavras. Não poderia acreditar em tal fato. Aquela doçura de pessoa, que chegara até a beijá-lo, iria lhe cometer semelhante humilhação?! O homem aplicou-lhe uma rasteira, lançando Juvêncio ao chão. Juvêncio sentiu-se horrivelmente arrasado. Logo, todos os trabalhadores do parque ririam dele sarcasticamente, ferindo, cada vez mais, com crueldade, a sua vida.

_ Ah, Juvêncio, o namoradinho, está apanhando! Bate neste retardado.

Os homens juntaram-se sobre o pobre moço, enchendo-lhe o corpo de coques, pontapés, safanões, cuspidas. Juvêncio chorava e, desgraçadamente, mais aumentava os risos dos homens.

_ A moça está tirando sarro da cara deste trouxa, e ainda ele se volta contra os amiguinhos?! O bairro inteiro já conhece todas as chacotas que a Estelinha inventa pro Juvêncio! Ha, ha, ha, ha ...

Juvêncio não conseguia acreditar na história daqueles homens.

Continuava a amar ainda mais a moça. Talvez ela fosse, para ele, uma espécie de carinho que jamais experimentara em sua pobreza solitária. Não se parece engraçado ou romântico, mas Estela representava uma esperança de vida para o passado de Juvêncio, presente e futuro. Ela existia como a única estrela que acalmava e alegrava a sua vida esquecida de quase-mendigo.

Diziam, por todo o bairro, que Juvêncio era louco, pois conversava o dia todo com o seu magricela cachorro. E as pessoas caçoavam dele, seja no parque, quando trabalhava na armação, seja quando ia ao bar próximo comprar um doce. Diziam: _ Lá vai o louco! Lá vai o Juvêncio, nome de burro. A Estela piranha está dele caçoando. Ha, ha, ha, ha....

Isso ardia no peito de Juvêncio, mas ele suportava. Para um coração que não tenha sensibilidade, todas essas chacotas não importariam. Porém, Juvêncio, apesar de ter sofrido muito, possuía um forte sentimento sensível; qualquer ofensa ou até mesmo uma brincadeira o feria amargamente. Não posso explicar por qual razão Juvêncio era assim, ou melhor, o que originara esta grande carga de sensibilidade. Só posso dizer que uma existência solitária guarda todo um acervo de sentimentos que não pode se exteriorizar. E quando encontra um simples fato, faz dele todo o escoadouro de seu sentimento reprimido. Tudo isto devido à agressividade de uma sociedade dividida, de homens partidos, na qual cada pessoa reprime o seu coração, tornando-se, assim, violenta ou excessivamente apaixonada. A existência transforma-se na face da desconfiança e do medo.

Juvêncio andava, agora, mais triste. Tinha uma leve esperança de que tudo o que falavam era mentira. Quem sabe Estela desmentiria tudo isto e acalentar-lhe-ia contra todas aquelas ofensas – isso era o que pensava sua ingenuidade apaixonada.

Mas em uma noite, num domingo, tudo ia se revelar na mente de Juvêncio. Foi namorar Estela, quando a encontrou com outro rapaz, dentro de um automóvel, em frente ao parque de diversões. Juvêncio gritou: _ Saía daí, Estela!!

Estela se assustou, depois ao constatar quem era o rapaz, ofereceu-lhe um riso sarcástico: _ Ah! o bobinho veio me “namorar”...

O rapaz que acompanhava a moça, disse: _ Quem é esse monstro? Mande-o embora. Deixa nós “meter” sossegados, seu panaca ...

Juvêncio, chorando, viu todo o seu mundo ruir. Sentiu uma raiva incontrolável de tudo e de todos. Sentiu a revolta dos homens, das agressões, das bofetadas que recebia no corpo e na alma. Então se armou de uma ferramenta e foi de encontro à Estela. Ela disse: _Juvêncio, nome de burro... Mocorongo... Bicha! Ha, ha, ha, ha... como me diverti com você! Você só serviu para ser o meu parque de diversão, para caçoar de algum retardado nas horas vagas! Você não é homem, não usa essa ferramenta nem pra matar uma mosca. Disse isso, olhando para o rapaz que se encontrava dentro do automóvel: _ Meu amor, dá uma sova neste louco do parque?!

O rapazinho saiu do carro e chutou Juvêncio, dizendo: _ Não tenho medo de ferramenta não, panaca... Ainda mais na mão de um viado...

Juvêncio pegou a ferramenta e lançou-a com força no rosto do rapaz, que acabara de sair do carro. O sangue esguichou. Um pedaço de rosto do rapazinho foi partido. Estela soltou um grito lancinante. Todo o pessoal do parque ouviu, dirigindo-se, todos, para o local de onde se ouviu o grito. Havia muita gente no parque naquele dia. Juvêncio correu para os alojamentos, temendo que algo lhe acontecesse, agora que tinha ferido gravemente (ou matado?!) o rapazinho.

Estela, aos gritos, foi ver o estado do rapaz, que se encontrava todo ensangüentado, constatando que ele estava morto. Quando isto percebeu, Estela gritou para o povo: _ Foi o Juvêncio que fez isso. Matou José Roberto com esta ferramenta! Meu Deus! Está louco aquele miserável. É um louco, vocês precisam matá-lo, agora!

“_É um louco, vocês precisam matá-lo, agora!” Esta frase como que despertou um ódio incontrolável na multidão que se formara no local. Toda a revolta que Estela possuía soltou-se naquele momento. Revolta de sua vida de prostituta, revolta contra a malicia dos humanos, que estragara toda a sua vida. Era preciso vingar-se de alguém, e esse alguém era um fraco: Juvêncio.

Todos os que se divertiam no parque reuniram-se para linchar Juvêncio (agora, esta era a diversão), e correram em direção dos acampamentos do parque, a fim de caçá-lo e arrebentar seu magro corpo. O moço se encolheu num canto e pensou em todo desprezo que recebera do mundo. A desconfiança, a humilhação, a agressividade: tudo rebaixando os seus ossos perante todos os seres. Chorava abraçado a seu velho cão que também gemia, acompanhando o dono como se fosse um homem e sentisse a dor de todo o desprezo e violência humanos. O cão sentia a própria miséria humana em seus pêlos.

O moço desprotegido ouviu o povo gritando o seu nome e dizendo que iria matá-lo. A multidão enfurecida tinha, agora, em quem descontar todos os seus preconceitos, os seus ferimentos na consciência, a sua neurose colecionada graças à ganância dos seres. Essas pessoas tinham Juvêncio para saldar o que fôra perdido de humano nas suas mágoas, seus rebaixamentos nos mundos do trabalho, nas suas fomes e apreensões.

Teriam que espancá-lo para aliviar o fardo de violência contra todo um modo de vida viciado; teriam que espancá-lo... agora, que um grito acordou a chama da crueldade passada de filho para filho, o corpo da vingança contra as suas próprias vidas.

Juvêncio, quando viu as pessoas se aproximarem, correu desesperadamente pelo parque de diversões. Não pensava em nada, somente em preservar a vida. Via luzes por todos os lados, luzes de sua infância maldita, de sua dor num mundo injusto.

Acionou a roda gigante, abraçou o seu cachorro e pulou num banquinho. O grande e iluminado brinquedo começou a girar, e Juvêncio, alucinado, começou loucamente a gargalhar do povo que se reunia para linchá-lo, povo armado de paus e de porretes. Mas, ninguém esperava que Juvêncio, no momento que atingiu o topo da roda gigante, atirar-se-ia, abraçado ao cachorro, de lá de cima. Caiu em meio às ferragens, morrendo, assim, despedaçado. O cachorro - ainda vivo, mas muito ferido - gemia seus últimos momentos de vida entre as ferragens abraçado fortemente pelo corpo despedaçado de Juvêncio.

De repente, diante daquela triste cena, o povo que desejava linchá-lo começou, aborrecido, a abandonar o lugar. Algumas pessoas choravam...

Um grande peso de consciência desceu sobre os olhos de Estela, das pessoas do bairro, dos empregados do parque. Desceu sobre todas aquelas pessoas que lhe maltrataram, lhe desprezaram, lhe caluniaram, como se Juvêncio fosse um réptil; desceu, enfim, um grande e doloroso remorso. E agora todos estavam extremamente entristecidos pela morte tão trágica deste pobre moço trabalhador das ruas, dos parques de diversões. Todos choravam, agora, em nome de Juvêncio.

Uma imensa e espessa lágrima desceu sobre aquelas pessoas que não souberam oferecer a Juvêncio o carinho e a humanidade que um pequeno cão vira-lata soube lhe dar...

FIM

FERNANDO MEDEIROS

primavera de 2005