Meu vizinho é o diabo

Havia ficado sem pó de café e desci até o 606 para pedir um pouco emprestado ao novo vizinho, que havia chegado de mudança há uns seis dias. Pelo convidativo aroma que subia até minha janela da cozinha toda manhã às seis em ponto, sabia que ele preparava um irresistível café.

Toquei a campainha. Veio atender-me de roupão de cetim um distinto e elegante senhor de meia-idade, alto e magro, porém esbelto.

— Bom dia! – cumprimentou-me da porta meu enigmático vizinho, acariciando lentamente seu cavanhaque de pelos tão negros que de brilho azulado. Apresentei-me:

— Sou o vizinho do 706. Desculpe incomodá-lo. Fiquei sem meu pó de café. O senhor poderia...?

— Certamente. É para isso que servem os vizinhos. Queira entrar, por favor. Sinta-se em casa – convidou o vizinho de voz sempre pausada e aveludada.

Seu apartamento era de um requinte inigualável. Não pude deixar de elogiar. Aguardei o vizinho voltar da cozinha.

— Veja o senhor como são as coisas! Também estou sem pó de café – ele disse. – Gastei o pouco que tinha para esta garrafa. O mínimo que posso fazer é convidar o senhor para cear comigo. Ficaria ofendido se recusasse. Sente-se. A mesa está servida.

Fiquei embaraçado, meio sem jeito, mas aceitei.

— Quer pão, meu bom homem? Eu mesmo amassei e assei – e chamou a esposa que se aprontava no quarto. – Querida, o café está na mesa!

— Ora, mas eu não queria incomodar sua família. Eu só...

— Não se preocupe, minha esposa adora receber visitas.

Provei do pão, e estava uma delícia.

— Prove também desta maçã – ofereceu. Aceitei. Parecia que ele era um velho conhecido.

—Desculpe a minha intromissão – tive que dizer, – o senhor me lembra alguém. É como se o senhor me passasse a imagem de uma pessoa famosa, reconhecida publicamente, entende?

Meu vizinho apoiou os cotovelos na mesa, e, descansando o queixo sobre as mãos entrelaçadas, encarou-me e disse, sorrindo:

— Eu deixo essa impressão nas pessoas. Mas, sem rodeios, pode dizer exatamente quem você acha que eu pareço ser.

Sua franqueza era de certa ternura, que me impôs a confessar:

— Bem, não pretendo ofendê-lo, mas o senhor me lembra de forma impressionante, e assustadora eu diria, com a figura que eu tenho do que seria o diabo. Pronto. Não pude evitar. Sinto muito pela grosseria.

— Não tema. Eu sou.

— Como...? – engoli seco.

— Eu sou, eu sou o diabo mesmo, não há do que se desculpar. Muitos me reconhecem de primeira, mas se intimidam em admitir.

— Ah, entendi a piada. Afinal, foi muita indelicadeza de minha parte. Mil perdões. Eu não devia...

— Meu bom homem. Eu. Sou. O. Diabo – afirmava em tom cada vez mais sério. – Claro que eu preferia estar no céu, compondo músicas e tal, mas fui banido e condenado a viver aqui na terra, como o senhor bem deve saber. A gente tem que sobreviver e tocar a vida adiante, não é mesmo?

— Sei. Bem, eu já vou indo antes que o senhor use o seu tridente em mim. Com licença – levantei-me, já pronto para nunca mais cruzar com aquele vizinho sinistro.

— Na verdade, eu uso mesmo o tridente, mas só com minha esposa. Ela gosta de sadomasoquismo. Ela é do jeito que eu gosto. No entanto, não se vá, por favor. Insisto que fique aqui, conosco. De qualquer forma, o senhor não vai precisar trabalhar mesmo. As ações do seu chefe subiram a um nível recorde e ele vai dispensar você hoje.

Naquele instante, meu celular tocou. Era meu chefe, ligando do carro, a caminho da praia. Ele estava comemorando a valorização de suas ações e acabara de me dar um dia de folga.

— Como eu ia dizendo, aproveite minha hospitalidade – insistiu no convite o vizinho.

— Ah, isso foi armação – comecei a duvidar de mim mesmo.

— Armação foi o que sua ex-mulher fez com seu melhor amigo enquanto você estava naquela convenção, não é mesmo?

— Meu Deus! Isso é bruxaria! – assustei-me. Era verdade.

— Eu não me meto com bruxarias, filho. Acho uma deturpação da natureza. E eu não sou o seu deus. Bem, mas posso ser. Agora, queira sentar-se.

Meio atordoado, tomei assento novamente. Sua esposa havia acabado de sair do banheiro e chegara à mesa. Notei que estava grávida, e cumprimentei pelo futuro filho.

— É um menino – informou o vizinho – E será um rapaz de sucesso, assim como o pai. Ô, Rosemary, não se esqueça de tomar seu remédio – dirigiu-se à esposa. – Como eu ia dizendo, meu bom homem – retomou o assunto, – ando viajando muito e estou procurando um funcionário confiável para gerenciar uma filial de uma empresa minha. Acho que já é hora de você ter um novo emprego, decolar na carreira, estou certo?

— Bem, eu...

— Ora, sejamos francos. Você tem ambição, mas não tem futuro no seu trabalho. Nunca conseguiu uma promoção em anos, e o máximo que você tirou de seu chefe foi um aumento salarial irrisório. Além do mais, seu chefe vai acabar demitindo você, mais cedo ou mais tarde.

— Uau! – Fiquei sem palavras. Era como se ele soubesse o que se passava em meu coração.

— Bem, eu não queria me gabar, mas como você não acreditou em mim quando me apresentei! Mas considere minha proposta. Fique aqui com o meu cartão – Estendeu-o a mim. Notei que ele era canhoto. Peguei o cartão, e agradeci.

— Mas não vou ter que vender minha alma para o senhor, vou? – brinquei, ainda assustado. Ele deu uma risada descontraída. Depois tornou sério seu semblante novamente:

— Eu não faço isso, amigo. Nada de venda de almas. Eu não mexo com esse negócio. Isso é política velha da oposição.

Li o cartão. A empresa era Cinco Pontas Empreendimentos, e descobri que o nome do meu vizinho era Lúcio Ferro Angeli.

— Angeli por parte de pai – comentou.

— A propósito, como anda o seu pai?

— Não tenho falado muito com ele desde que saí de casa. Sabe, eu sou meio rebelde.

— Deve ser duro viver sem o pai – assenti.

— É disso que eu falo sempre com a Rose! Como faz falta um pai! As pessoas vivem me culpando por causa dessa juventude rebelde. Mas sabe a causa disso? São uma juventude que sente a falta de um pai.

— Que bacana. Você poderia palestrar sobre isso nas igrejas.

— Não gostam de mim, estão sempre me expulsando. Mas eu já palestrei pelo mundo inteiro sobre relações humanas. Querida, faz favor, pega ali o meu DVD das palestras que eu fiz em Denver, para ele assistir depois.

— Obrigado, Dona Rose – Notei que o título do DVD era Xou dos Baixinhos VI.

— Para assistir às minhas palestras é só tocar o DVD ao contrário. Jogada de marketing.

Vi que estava ficando tarde. Agradeci pela conversa e pelo café e prometi entrar novamente em contato assim que estudasse suas propostas.

— Tenho certeza de que você escolherá o caminho certo, é só seguir seus impulsos. Você não vai se arrepender. Bem, então até a próxima, senhor... como é mesmo seu nome, filho?

— Meu nome é Fausto.

Retornei ao meu apartamento. Pus o DVD para tocar e fui guardar a xícara que havia levado para trazer o pó de café. Enquanto ouvia atentamente às propostas empresariais do enigmático vizinho, inclinando-me a aceitá-las, abri a porta do armário e avistei atrás do açucareiro um pacote fechado de pó de café que eu antes, que estranho, nem havia notado.

Vitor Pereira Jr
Enviado por Vitor Pereira Jr em 05/03/2008
Reeditado em 04/11/2018
Código do texto: T888272
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