"Um Homem de Pavio Curto" =Conto=

Com um metro e setenta e cinco de altura, e um tanto quanto musculoso, Romildo gostava de manter a fama de ser um cara de pavio curto. Seu pavio era curto na proporção direta do tamanho e da valentia do ocasional oponente. Um sujeito forte, bravo, com um metro e oitenta, recebia dele muito mais atenção e compreensão do que um mais baixo e mais fraco. Valentão na fachada.

Com pouco mais de um metro e cinqüenta, Maria Helena era o que se podia dizer uma linda mulher. Morena de longos cabelos, boca bem delineada e um tanto quanto carnuda, seios médios e lindos, faziam um belo conjunto com um traseiro arredondado e no tamanho exato para chamar a atenção e a admiração na rua.

Conheceram-se em um baile, gostaram um do outro, casaram-se depois de alguns meses em uma cerimônia quase que secreta em vista dos poucos amigos e parentes presentes, e foram morar no Tatuapé, na zona leste de São Paulo.

Nos primeiros meses tudo transcorreu muito bem. Maria Helena era ótima dona-de-casa, excelente cozinheira, amante agradável, carinhosa e prestativa com o marido. Além disso relevava algumas de suas ainda pequenas grosserias e desatenções. Atribuía-as ao excesso de trabalho e ao gênio forte do marido.

Um dia Romildo deixou um terno para ser enviado à tinturaria. Precisaria dele dentro de dois dias e o queria muito bem lavado e passado.

Ao saber o preço que a tinturaria cobrava para lavar e passar um terno de linho, Maria Helena quis ser agradável ao marido e fez ela mesma o serviço. Dedicou-se durante horas à vestimenta e a deixou absolutamente impecável.

Dois dias depois Romildo vestiu o terno, elogiou o trabalho da tinturaria dos japoneses e Maria Helena, sorridente e orgulhosa, contou a ele que ela mesma havia feito o serviço e economizado um bom dinheiro.

O pavio curto de Romildo chegou ao fim em segundos:

- Muquirana filha-da-puta!! Eu lá te pedi que fizesse essa merda? Que ferrasse meu terno com seu trabalho de dona-de-casa ordinária? Cretina dos infernos! Eu não deixei o dinheiro pra pagar a despesa? Te pedi que fizesse essa merda, sua unha-de-fome?

Maria Helena levou um susto enorme. Ele acabara de elogiar o serviço e agora reagia daquela maneira? Nunca antes a havia ofendido, xingado, maltratado daquele jeito, e agora o fazia com ódio por uma coisa que ela considerara boa ter feito? Não era possível...

- O que é isso, Romildo? Que mal eu fiz, homem? Eu economizei pra você, caprichei na roupa e agora recebo essa grosseria toda? Que absurdo...

Romildo aproximou-se da esposa e sem dizer mais uma única palavra esbofeteou-a diversas vezes no rosto. Depois saiu batendo a porta. Impecavelmente vestido.

Maria Helena não chorou. Esperou que a vermelhidão da face diminuísse, trocou de roupa, pegou algum dinheiro na gaveta, foi até a rua e tomou um ônibus até o centro da cidade. Na companhia telefônica conseguiria mais facilmente um interurbano. Naquele tempo um telefone em casa era luxo de gente rica, rica mesmo.

Dois dias depois Romildo foi acordado com duas batidas fortes na porta de sua casa.

- Quem será o filho da puta que não sabe usar campainha?

Demorou-se um pouco vestindo uma calça e as batidas repetiram-se.

- Já vai, porra!! Não sabe esperar não, merda?

Ao abrir a porta, com raiva e pronto para mais alguns xingamentos, deu de cara com um homem enorme. Um sujeito com uns dois metros de altura, vestindo uma camisa justa que mostrava sua imensa musculatura e, pior de tudo, com cara de bravo. De um cara grande, forte demais e louco de raiva.

O homem levantou Romildo pela gola do pijama, elevou-o até perto de seu rosto, sacudiu-o violentamente diversas vezes, e só o botou de novo no chão depois de estapear-lhe ambas as faces muitas e muitas vezes.

- Foi assim que você bateu em minha filha, não foi, seu corno? Foi desse jeito que você estapeou minha menina, não foi, veadinho de pavio curto? Agora bata no pai dela. Vamos. Faça comigo o que fez com ela, covarde dos infernos.

Romildo quis dizer alguma coisa e levou um tapa na boca que lhe extraiu dois dentes da frente.

- Calado. Calado de uma vez por todas. Vim buscar minha filha, mas antes de ir embora nós dois ainda vamos acertar as contas. O que você teve até agora é só um tira-gosto de minha parte. Quando eu sair por aquela porta você estará pedindo para morrer depressa.

Maria Helena, encostada no batente da porta da sala, apenas sorria ao ver o marido tremendo de medo, encolhido e choroso no sofá.

- Papai, que saudades...Eu não sabia que o senhor viria tão depressa. Então os dois já se conheceram? Já conversaram bastante? O senhor viu que simpático é o meu maridinho? Pena que tenha pavio curto, não é mesmo? Um homem tão bem posicionado na vida. Funcionário do Banco do Brasil, com uma excelente carreira à sua frente, e no entanto uma cavalgadura...Dá uma pena, não é, papai?

- Pena você terá de verdade quando sairmos daqui. Eu ainda nem comecei a dar uma surra nele. Por enquanto foram só uns tapinhas de leve. Com esse mequetrefe quero matar as saudades de meus tempos de lutador de luta livre, quando eu era o campeão paulista da modalidade. Lembra, filhinha?

- Claro que me lembro, papai. O senhor dava cada pulo lindo na barriga dos outros. Foram tantos que saíram quase mortos do ringue que não dá pra gente esquecer.

- Filhinha, quanto você acha que o moço terá que lhe pagar por danos morais, psicológicos e físicos?

- Um bom dinheiro, papai. Ele me bateu muito, muito mesmo. Depois de bater na minha cara ainda me encheu de pontapés no traseiro, nas pernas, nos braços. Acho que ele queria era me matar. Estava possesso, furioso mesmo. Quase morri de medo com esse homem enorme me agredindo. Teve uma hora que achei que ele iria à cozinha pegar uma faca ou um facão.

Os três sabiam que aquilo era exagero dela, mas Romildo não teve coragem de negar.

O enorme papai coçava o queixo meditativamente.

- Heleninha, minha querida, estive pensando e cheguei à conclusão de que a justiça é muito lenta e nem sempre justa. Então o melhor a fazer é acabar com esse crápula com uma boa coronhada na cabeça, sem fazer muito barulho. Você, como viúva, receberá o seguro de vida que ele deve ter feito, além uma bela pensão para o resto da vida.

- Deixo em suas mãos, papai. Mas e o risco de cadeia?

- Nenhum, filhinha. Vocês serão vítimas de um assalto e o pobre pavio curto, valentão de merda, será a única vítima fatal. Ninguém me viu entrando em sua casa e ninguém me verá saindo. Se alguém tiver me visto, terá visto apenas um homem grande e não a minha cara.

Uma hora depois Maria Helena e seu pai saíram da casa de Romildo levando o carro novo dele, com o documento de transferência assinado em branco, todo o dinheiro que ele economizara durante os primeiros quinze anos de banco, além do compromisso do pagamento de pensão alimentícia à esposa pelo resto da vida. Ferrado e mal pago por causa de uns tapinhas na esposa, pobre coitado...

Só mais de vinte anos depois, por um acaso, Romildo ficou sabendo que o pai de Maria Helena era menor, mais fraco do que ele, e nada chegado a uma briga.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 16/03/2008
Reeditado em 16/03/2008
Código do texto: T903328
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