"O Casca Grossa" =Conto=

- Como é que é, ô preguiçosa? Vai ou não servir o café? Essa merda de café sai ou não sai?

- Ao senhor eu não sirvo mais.

- Desde quando?

- Desde este momento. Resolvi que não obedeço mais às suas ordens. E pronto.

- Querendo perder o emprego?

- Não senhor. Apenas esperando que o senhor seja expulso dessa casa.

- Vagabunda petulante dos infernos! Então você acha mesmo que pode mais do que eu, o dono da casa?

- Dono da casa o senhor? Faz-me rir...Se o senhor fosse o dono da casa eu nunca teria trabalhado aqui. Nem por um dia. Cavalgadura da sua laia não há empregada que seja obrigada a aturar. Eu trabalho para a senhora sua mãe, a bem educada, decente, e simpática dona Alzira.

- Que assim que acordar vai ter que te mandar embora. Ou ela manda ou eu te dou um pé na bunda que...

Uma terceira voz surgiu na conversa:

- Está enganado, meu filho. Não vou mandar minha excelente empregada embora por sua causa. Você é quem tem meia hora de prazo para sumir daqui de uma vez por todas. Arrume suas malas e caia fora.

- Está de brincadeira comigo, mãe? Resolveu me desautorizar assim, na lata, na presença da empregada?

- Não se desautoriza quem não tem autoridade. Autoridade é coisa que você não tem aqui em minha casa. Em minha casa, entendeu? Única e exclusivamente minha e de mais ninguém. Já o tolerei aqui tempo demais. Já era pra você ter sumido daqui desde que se formou, mas continua em minha casa. Agora chega. Arrume suas malas e caia fora o quanto antes.

O filho cruzou os braços e encarou a mãe desafiadoramente. Dona Alzira não perdeu tempo. Pegou o telefone e fez uma ligação.

- Meu filho, seu irmão está aqui e ainda não começou a arrumar as malas para ir embora. Está me desafiando, como sempre. Você virá logo? Tá. Então tudo bem. Eu te espero.

Ao perceber que o irmão mais velho chegaria logo, ele deu-se pressa em arrumar as malas e preparar sua saída. Tinha pavor do irmão mais velho. Um cara imenso, de pouca conversa, muitos músculos e uma força animalesca. Um irmão que o vinha ameaçando havia um bom tempo e que só não lhe dera ainda uma boa surra graças à intervenção da mãe de ambos. No último instante dona Alzira ficava com pena e evitava a pancadaria.

Enquanto ele arrumava as malas, às pressas, patroa e empregada conversavam na sala.

- Eu imagino, dona Alzira, o quanto deve ser duro pra senhora colocar pra fora de casa um filho, mas olhe, com toda a franqueza, a senhora já agüentou coisas demais desse moço. Ele é uma cavalgadura com a senhora. E é assim o tempo todo.

- Nunca consegui entender o porque da agressividade desse menino, Vanda. Teve tudo que o outro teve. Carinho, brinquedos, atenção, presentes, nunca faltou nada a ele. O mais velho nunca teve ciúmes dele e sempre o tratou bem. Bem, pelo menos enquanto ele foi um rapaz bem educado, normal, decente. Depois foi se transformando nessa besta-fera que você está vendo, minha filha.

- Deus me livre e guarde do que vou dizer, dona Alzira, mas não será droga? Será que ele não está consumindo essas porcarias?

- Que nada...Já mandei investigar e ele anda sempre de cara limpa, como dizem hoje em dia. Nem ao menos bebe socialmente. É grosseiro por natureza. Deve ter puxado alguém da família do pai dele. Algum casca grossa que eu não sei quem foi, ou quem é. Agora vê lá se vou tolerar em minha casa um filho que não me respeita, que berra palavrões e diz imoralidades como se estivesse sozinho, na casa dele. Não vou mesmo.

- Deixe estar, dona Alzira. Não estou desejando mal a ele, mas uma hora ele vai encontrar o que procura. Acho mesmo é que precisa de um bom susto pra se acalmar.

Logo mais as duas ouviram a porta sendo fechada com estrondo.

- A cavalgadura acaba de sair...

Com uma mala na mão e uma mochila às costas o enfezado rapaz entrou no elevador e desceu até a garagem. Alguns segundos depois berrou pelo garagista:

- Cadê o meu carro, ô seu merda? Eu não avisei que estava de saída, seu incompetente?

O garagista, um simpático e eficiente nordestino, estacou a caminho do carro dele e voltou-se:

- O que foi que você disse?

- Você não, seu folgado do cacete. Pra você eu sou doutor.

- O que foi que você disse? De que foi que me chamou?

- Chamei de merda e de incompetente. Porque? Vai me encher o saco também? Do mesmo jeito que fez aquela vagabunda da sua namorada, aquela preta nojenta que trabalha na casa de minha mãe?

O garagista sorriu de maneira estranha, encarando-o, depois se dirigiu ao balcão da garagem onde deixou as chaves que tinha nas mãos, e voltou lentamente, gingando o corpo de maneira que fez rir o jovem atrevido.

- Andou bebendo, vagau.

- Moço, só não vou responder que vagau é a senhora sua mãe porque dona Alzira é pessoa de minha consideração, mas vou lhe dar uma surra de criar bicho.

- Você e mais quem, nanico?

O funcionário da garagem tinha pouco mais de um metro e sessenta, era magro, parecia realmente indefeso. O que o filhinho de mamãe não sabia e que ele era capaz de subir uma escada enorme levando aos ombros dois sacos de cimento e que, ainda por cima, tinha a agilidade de um gato jovem. Verdadeiro feixe de músculos cheio de gana por uma boa luta.

A surra foi rápida e eficiente. Alguns minutos depois um rapaz estropiado e cheio de hematomas voltava choroso à casa da mãe. Os olhos roxos, os dentes faltando na frente, mancando e sangrando nas orelhas, eram um triste quadro. Um triste quadro que arrancou sorrisos da mãe e da empregada.

- Encontrou o que procurava, filhinho? Era isso que você estava procurando feito doido?

- Aposto que foi o Raimundo, meu namorado. Ele é esquentado demais da conta, dona Alzira. Será que ele vai perder o emprego logo agora que a gente marcou casamento?

- De jeito nenhum, Vanda. Por mim ele será promovido, não demitido.

Pode ter sido apenas coincidência, mas algumas semanas depois dona Alzira tinha em casa um filho educadíssimo. Um verdadeiro gentleman que tratava a todos com respeito e consideração. Inclusive os empregados da casa, do edifício e no trabalho.

Só vários anos depois Vanda contou a dona Alzira que Raimundo, seu marido e pai de seus cinco filhos, tinha vindo para São Paulo fugido do nordeste, onde era acusado de várias mortes, muitas delas por motivos fúteis, mas aqui se regenerara, constituíra família e nunca mais se envolvera em confusões. O filho de dona Alzira estava vivo apenas por ser filho dela, pessoa de alta consideração de Raimundo.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 29/03/2008
Código do texto: T921681
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