"Progredindo na Vida" = Conto=

- De jeito maneira que dá pra continuar aqui, mãe. Isso aqui é uma terrinha sem futuro, mãe. A senhora vai me desculpar, mas eu vou passar nos cobres o resto do gadin que sobrou e vou me embora pra São Paulo. Aquilo lá é que é terra pra quem quer trabalhar, ganhar dinheiro, vencer na vida.

- Meu filho, já te contei que trabalhei em São Paulo. Fui empregada doméstica lá e sei o que digo: aquilo é terra grande demais da conta, filho. Quando eu trabalhei lá, faz tempo, estava passando uma novela chamada “Selva de Pedra”, e é o que aquela cidade. Uma selva de pedra. Aqui a vida é dura, mas é tranqüila. Você, com seus vinte e cinco anos, tem muito mais força e saúde que muito menino da sua idade lá. Você não sabe o que é trânsito, barulheira, fumaceira, gente andando depressa pra todo lado. Não tem nem idéia. Mas, quer saber de uma coisa, o melhor mesmo é você ir pra lá. Vá pra lá, fique uns tempos e depois me conte. Pode ficar com o dinheiro do gadinho que sobrou que eu me viro bem com a pensão que seu pai deixou.

Um mês depois Ariovaldo embarcava em um ônibus rumo a São Paulo. Ao despedir-se prometeu à mãe que voltaria rico.

A mãe riu:

- Espero que não seja um “rico de purga e bicho”...

- A senhora vai ver, mãe. Esse dinheiro do gado vai ser meu capital inicial. Vou multiplicar isso por um monte de vezes.

Ao falar sobre o dinheiro, Ariovaldo tirou-o do bolso interno do rústico paletó e uma moça viu de longe o belo maço de notas. Depois que viu o dinheiro nas mãos dele, ela voltou correndo à bilheteria da pequena e improvisada rodoviária:

- Moço, qual é o número da poltrona daquele moço simpático ali? O de paletó azul claro.

- Acabei de vender a passagem pra ele. Deixe eu ver...aqui está...ele pegou a poltrona dezesseis.

- Faz um favor pra mim, moço. Troque minha passagem pra eu ficar ao lado dele. Achei aquele moço com cara de gente tão boa...Sabe como é, né? A gente que é mulher gosta de viajar se sentindo mais protegida quando está sozinha.

O homem trocou a passagem para ela e ela se dirigiu ao primeiro banco que viu, abriu a mala e de lá tirou um cobertor de casal.

Quando Ariovaldo chegou à sua poltrona a moça já estava com os olhos fechados, bem agasalhada pelo cobertor e parecia dormir. Alguns quilômetros adiante a bela cabecinha da moça foi aos poucos se encostando no ombro dele, que gostou da coisa e deixou que ela dormisse apoiada nele.

Mais algumas dezenas de quilômetros ela havia se ajeitado da melhor forma possível, com boa parte do corpo em cima das pernas de Ariovaldo que, por sua vez, sentia-se malicioso, malandro mesmo, enquanto ajeitava o quente corpinho da moça junto ao seu. Aos poucos tomou coragem e colocou a mão na cintura dela, por baixo da blusa. Ela, por sua vez, como que sonhando, pôs sua delicada mãozinha sobre a dele, acariciando-a enquanto fingia dormir e sonhar.

Mão aqui, mãozinha ali, a coisa foi melhorando, esquentando, progredindo, assanhando, e lá pelas tantas da madrugada os dois estavam embolados embaixo do cobertor da moça fazendo amor o mais discretamente possível. Ela, de costas para ele, saia levantada e calcinha arriada, entregava-se silenciosamente.

Satisfeitos, os dois dormiram profundamente.

Ariovaldo acordou com os primeiros raios de sol que bateram em seus olhos e percebeu logo o lugar vazio ao seu lado. Perceber que seu bolso interno do paletó também estava vazio demorou um pouco mais. Só aconteceu quando chegou a São Paulo, doido para tomar um café com leite e comer um pão com manteiga, e viu que o dinheiro havia sumido.

- Minha nossa!! A vagabunda levou embora o meu capitalzinho!!

Teve vontade de sentar na calçada e chorar como criança que se perdeu dos pais, mas a custo controlou-se, respirou fundo, pegou suas malas e saiu andando. Simplesmente andando sem rumo, ao léu, sem ter a mínima idéia de para onde ir ou o que fazer sem um tostão furado nos bolsos.

Escapou de ser atropelado várias vezes por pura sorte e muita agilidade, correndo no meio dos carros com as duas pesadas malas. Muitos motoristas foram compreensivos ao ver seu jeitão de caipira autêntico, diminuindo a marcha e fazendo sinal aos motoristas de trás. Como quem avisa que tem gado à frente.

Lá pelas tantas veio a tontura da fome. Rapaz forte, saudável, acostumado a almoçar às nove da manhã, mandando pra dentro um prato reforçado, começou a ver estrelinhas azuis em volta da cabeça.

- Caramba...acho que vou desmaiar de fome e não vou ter ninguém pra me fazer-me voltar a si...

Não desmaiou de fome, mas ficou sentado embaixo de um viaduto, com as malas escondidas atrás de uma pedra grande, olhando os carros passarem enquanto pensava na vida.

Nunca imaginara coisa igual! Viu milhões de pessoas o dia todo e ninguém, absolutamente ninguém falou com ele. Nem uma única vez alguém gritou de longe: “E aí, Vardão? Como é que tá dona Cotinha? E o gado, melhorou da pereba?”. Como é que pode haver tanta gente num lugar só e ninguém conhecer ninguém? Viver naquela correria, todo mundo parecendo querer tirar o pai da forca, todo mundo com cara de sempre atrasado? Isso lá é jeito de viver? Não ter um tempinho para um boa pescaria, uma pingalhada no boteco contando casos e rindo da vida? Mãe tinha toda razão do mundo. Isso não é vida não. Tenho mais é que voltar depressinha e trabalhar pra comprar outro gado.

A noite chegou. E com ela o frio. Um frio que ele desconhecia em sua região, de clima ameno e que parecia quase sempre igual o ano todo. O frio parecia entrar-lhe pele adentro, carne adentro, até instalar-se em seus ossos. Cadê coragem de abrir a mala, pegar um cobertor e deitar-se ali mesmo, embaixo daquele viaduto? Os que haviam passado por ele a pé, ali embaixo do viaduto, não tinham lá caras de muitos amigos.

De repente um carro parou à frente dele e uma mocinha linda, loirinha de olhos azuis e tranças grandes, sorridente, perguntou:

- Está com frio, moço?

O sotaque diferente da moça fez com que ele pensasse por alguns segundos até entender o que ela dizia. Tempo suficiente para que ela julgasse que ele não sabia o que dizer, ou que estava acanhado, e pegando uma sacola jogou em sua direção e o carro arrancou.

Ariovaldo pegou a sacola, abriu-a, rindo com o jeito da moça, e viu logo um belo casaco marrom claro, com jeito de coisa fina, pesado e gostoso de passar a mão. Nem pensou duas vezes: levantou-se e vestiu-o sentindo uma grande felicidade.

- Menino...que coisa elegante!! Nunca que eu imaginei ter uma coisa fina dessas...Troço bão de vestir demais da conta, sô!

Vontade de chegar logo perto de um espelho, ou de um vidraça qualquer, e ver se estava mesmo elegante. Alisou as mangas com a mão, ajeitou a gola, enfiou as mãos nos bolsos. Enfiou as mãos nos bolsos e encontrou uma coisa quadradinha dentro de um deles. Mesmo sem tirar do bolso percebeu que era dinheiro o que havia ali. Um belo pacote de dinheiro amarrado com elásticos. Quem lhe dera o casaco não se preocupara em antes examinar-lhe os bolsos.

Dessa vez foi mais malicioso. Não tirou do bolso a quantia. Respirou fundo, pegou as malas, andou vigorosa e rapidamente em direção às luzes que via ao longe e uns quinze ou vinte minutos depois entrava em um bar de esquina, grande e bem movimentado.

No bar perguntou se poderia usar o banheiro, pegou a chave e se trancou, com as malas, no estreito reservado. Ali contou e recontou calmamente o dinheiro, com vontade de pular de alegria.

- Três vez e meia meu gadinho!! Três vez e meia meu capitalzim...Mãe não vai acreditar!!

Tirou do maço uma nota pequena, enfiou o restante na meia, amarrou a meia bem amarrada com um cadarço, comeu no bar um super sanduíche tipo refeição e depois procurou uma pensão barata. No dia seguinte, bem cedinho, pegaria o primeiro ônibus para sua terra.

- Menino, já de volta, peste?

- É mãe...Fui, vi, venci e voltei pra casa.

- Tempinho curto demais. O que você fez lá?

- Quando cheguei eu abri uma mercearia. Ela fez sucesso e eu montei uma filial. Quando aquela mercearia virou uma rede de supermercados eu vendi tudo e vim embora. Tudo isso em vinte e quatro horas.

Os dois riram gostosamente da bobagem.

- Esse meu menino é um portento!! Agora conte a verdade pra mãe, filhinho.

Depois que ele contou o que realmente acontecera, os dois saíram juntos, a cavalo, à procura de gado pra comprar.

Ao passar pelo centro da pequena cidade, onde em meio a um enorme descampado de terra batida ficava a pequena rodoviária local, Ariovaldo viu ao longe uma figura conhecida.

- Mãe, aquela é a vigarista que me roubou. Acho que vou lá dar umas chicotadas nela.

- Bobagem, menino. Só o que vai acontecer é todo mundo ficar sabendo que ela te enganou. E se uma mulher pode te enganar, tudo mundo vai achar que pode. Dê só um susto nela.

Ariovaldo desceu do cavalo, aproximou-se da moça, que não o viu chegar, e pegou-a pelo cotovelo.

- Cadê meu dinheiro, ordinária?

Ela nem ao menos se assustou. Encarou-o tranqüilamente e disse, como se contasse o caso a uma velha amiga.

- Bem que eu queria ter aquele dinheiro comigo. Não durou nem cinco minutos comigo. Depois que desci do ônibus, com a bexiga cheia e doida pra dar uma mijadinha, entrei no banheiro do restaurante de beira de estrada e lá dei de cara com uma mulherona que me tomou a bolsa e me ameaçou com uma navalha. Tive que andar um dia inteiro pra chegar até minha casa. E você, como é que se virou sem dinheiro em São Paulo?

- Dei sorte. Ganhei um dinheirão assim que acabei de chegar e voltei. Tô bem de vida. Qualquer hora dessas dá uma passadinha lá em casa. Vá tomar um cafezinho com a gente.

- Vou sim. Qual é o endereço?

- Aqui não tem esse negócio de endereço não, moça. Pergunte onde é a fazendinha do Vardão que qualquer um te indica. Apareça.

- Apareço sim.

- Mas não pode roubar nada lá.

- Fique tranqüilo. Deus te abençoe.

- Ele me abençoa sempre. Inté outra vez.

- Até.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 29/03/2008
Código do texto: T921767
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