SENHORES DO SEU FUTURO

Pode parecer que eles estão parados à toa, curtindo sua vida vazia, perdidos no limbo da insignificância enquanto o mundo gira. Mas para eles, não é assim. Cada um à sua maneira, eles pensam no que se foi e no que está sendo agora. À sua maneira, pode não parecer, eles também pensam no que virá embora nem sempre esse pensamento agrade.

Quase sempre foi assim. Perdidos, mas se encontrando quando estão juntos. Juntando seus pensamentos, vendo uns aos outros e imaginando.... imaginando o que cada um tem dentro de si ao mesmo tempo em que buscam, dentro deles próprios, o que levam consigo.

Quase sempre foi assim. A moça morena, por exemplo. Com seus olhos caídos, vistas cansadas que muito já viram na velhice de seus dezesseis anos, senta-se sempre naquele mesmo canto da calçada onde eles se reúnem. Evita olhar para frente – ela é uma das que não gostam de pensar no futuro – pois teme ver aquele homem, aquela criatura horrorosa que ela um dia chamou de pai. Um sujeito que ela sempre disse que roubou sua infância. Um sujeito que introduziu nela mais do que objetos; introduziu maldade, amargura, um azedo que contamina todo o gosto presente em todas as coisas em volta. Ou melhor, quase todas as coisas, pois desde que ela encontrou esses outros jovens, ela voltou a sentir gosto por alguma coisa. Por uma única coisa, que é compartilhar com eles, mesmo sem dizer nada, a amargura que carrega dentro de si. Mas ainda assim ela evita olhar para frente, temendo ver aquele sujeito. Talvez não tanto por medo dele, mas por medo de ele estragar a única coisa boa em sua vida: o convívio com seus novos amigos. Se ele aparecesse na sua frente quando ela está ali, sentada naquele canto habitual, tudo se perderia completamente.

O moço de cabaça raspada, aparentando ser o mais velho de todos, já se porta um pouco diferente. Consegue olhar para todos sem sentir o desconforto sentido pela moça morena. Ele também tem receio de encontrar uma certa pessoa, mas sabe que ela jamais apareceria ali. Na verdade, ele até que gostaria que ela o visse agora, amargurado por dentro por conta do que aconteceu, mas estando no meio de pessoas que o aceitam, mas ao mesmo tempo a idéia de vê-la novamente o repugna. Sua mãe, aquela mulher que desde pequeno ele tanto amou, renegou sua existência. E aí tudo ruiu para ele. Nem mesmo o amor do homem da sua vida (a razão pela qual sua mãe o renegou) consegue mais anima-lo. E por isso, seu relacionamento com ele acabou. Sua mãe conseguiu estragar tudo o que ele tinha, e por isso, ele a odeia e está agora sentado naquele canto.

Como o moço de cabeça raspada e a moça morena, há outros. E diferentes deles, também. Várias pessoas, vários jovens, carregando dentro de si muitas histórias, as quais se reúnem no beco da esquina dessa rua. Qualquer um pode imaginar quais são essas histórias. Qualquer um pode condená-los, apóia-los, sentir-se indiferente. Mas jamais ninguém poderá saber com certeza o que se passa dentro deles e muito menos compreender a real dimensão do que eles pretendem fazer agora, sentados ali enquanto choram. Esses jovens que não têm controle sobre suas vidas, queriam ser senhores de seu destino e, talvez, evitar o que acontecerá. Mas talvez o que acontecerá agora seja um novo recomeço, onde eles possam finalmente ser donos de seus futuros, de seus destinos.

E é assim que alguns deles, após tantos encontros nos quais poucas palavras foram trocadas, resolvem tomar a iniciativa. Eles se olham e, pela primeira vez em muitos anos, sorriem. Um deles chega a acender um cigarro e sentir, na primeira tragada, um prazer nunca antes sentido. Os demais se contagiam pela sensação. Agora é a hora. O futuro está chegando e eles querem ser senhores de seus futuros.

II

Foi dessa maneira que o dia seguinte amanheceu na cidade: no beco da esquina da rua que liga o passado e o futuro de alguns jovens sem futuro nesse mundo, corpos mortos enfeitaram o local. Muito sangue lavava a calçada. Aquilo foi mais do que o suicídio de várias pessoas: foi uma busca pelo futuro.

Todo aquele sangue no chão atraiu a repulsa de quem passava por ali. Era um sangue incompreendido, um sangue carregado por uma amargura que o mundo colocou naqueles jovens. Mas pouca gente percebeu um detalhe naquele sangue todo: uma flor brotava, como se estivesse nascendo ali, naquele momento. Se alguém tivesse coragem de se aproximar do sangue, poderia tentar apanhar a flor. Veria que ela estava presa ao chão, notaria que sua raiz passava pelo concreto. Ela nasceu no sangue derramado por aqueles jovens todos que, na busca por serem senhores de seu futuro, abandonaram o mundo que só lhes dava passado e um presente vazio.

Mas ninguém vai chegar perto daquela flor. Ao menos, não enquanto os corpos não forem recolhidos e o sangue não for limpo. Mas quando o sangue daqueles jovens senhores de seu futuro for limpo, a flor que ali nasceu morrerá. Irá encontrar ela própria seu futuro em outro lugar, assim como os donos daquele sangue.