A Equilibrista. - Normanda - Lia Lúcia de Sá Leitão - 9/08/2005

Raíssa era a graça do espetáculo, treinava o mesmo show apresentado na noite anterior causando admiração e espanto na criançada; era o brilho da festa, vestia uma malha de bailarina cor-de-rosa e saia armada, bordada com flores em lantejoulas brilhantes, tudo perfeito, jamais se machucava, subia com a ajuda do apresentador naquele quadrado de madeira e graciosamente, abria uma sombrinha de vidrilhos rosa com motivos infantis, combinando com a sapatilha que parecia acertar cada passo com a leveza de uma borboleta naquele arame fininho a uma altura de três metros do chão, sem colchão ou rede para a sua proteção no caso de um acidente, a menina brincava, desenvolvia uma coreografia de adulto, dava viravoltas diante dos olhares atentos, pulava e passava a sombrinha por entre as pernas, ficava nas pontinhas dos pés aqui e ali; sem perder a formosura mantinha o corpo esguio com a graciosidade que só as pequeninas atletas sabem exibir. Ela era a melhor. Os olhares atentos... sem um rumor mais alto na platéia dava um clima de mais concentração, mistério.

Mas na vida de Raíssa tudo tinha um preço, o trabalho era exaustivo para uma criança com nove anos, não podia comer chocolates para não ganhar peso, não podia brincar com as outras crianças para não se machucar, não podia correr ao relento para não gripar, tudo era medido no compasso da música e nos ponteiros dos relógios, treino, escola, lição de casa, exercícios.

Quantas vezes uma lágrima insistiu em cair em sua face infantil pelo calor das lonas e precisou disfarçar como uma baga de suor.

Via uma amiguinha nos balanços fazendo piruetas livres como as aves,

divertindo-se sem a responsabilidade do compromisso com o show. Acompanhava com o olhar os gritos fininhos da criançada e o corre corre com os palhaços, outros brincavam de jogar bola com os macacos, os seus bichinhos prediletos, certa feita viu Jam, o palhaço mais querido sempre dava apoio para os meninos montarem e cavalgarem o alazão branco da princesa do circo, a mãe de todas as bailarinas, aquela que dominava em pé a pleno galope aquele animal robusto animal durante o espetáculo, em movimentos sincronizados,com tamanha destreza e segurança, pulando de um lado para o outro segurando apenas nas crinas do animal. Deixando público sem fôlego.

A pequena estrela ficava olhando tudo aquilo à distância sem nada poder fazer.

As meninas quando percebiam o olhar triste da sensação do show, dobravam nos seus alaridos, tiravam a atenção até o domador das feras, irritavam os tigres, deixavam o pessoal da limpeza em polvorosa, trocavam os baldes dos palhaços com os da limpeza, as bengalas pelas vassouras tudo era muito divertido.

Um dia fizeram a índia paraguaia cuspir fogo ao invés de engolir espadas.

No circo mambembe para tudo funcionar sem ocupar muito espaço é necessário ordem e determinação.

Ali dentre todas as crianças havia Malu uma menina sonhadora, vivia olhando as nuvens, imaginando carrosséis, coelhinhos, cavalinhos de algodão doces; sentava-se no primeiro banco do picadeiro, os que passavam por ela nem desconfiavam que ela era membro daquela comunidade, sua quietude era tamanha que ninguém a perturbava parar e perguntar se ela queria participar ao menos das brincadeiras. Absorta parecia criar naquele mundo imaginário os maiores circos, com orquestras, com trapézios e equilibristas mais bonitas que Raíssa. Um ciúme pueril dominava seu silêncio. Nesse circo virtual ela seria sempre a primeira de todas, afinal o circo era seu, o mundo era seu as músicas eram as suas, até o Jam, o melhor de todos os palhaços seria seu queridinho, as propagandas divulgadas da equilibrista do circo tomava todos os lugares até mesmo o da fila do almoço onde todos podiam ser esquecidos ela jamais! Mesmo quando no cardápio não fosse o seu prato predileto: batatas fritas com bife a milanesa.

A menina perdia-se nos ponteiros dos relógios, no calor o dia, na monotonia dos passos contados sincronizado com a música. Não tirava o olhar lânguido para cada passo, cada pulo, cada técnica elaborada por Raíssa. Certo dia pediu ao professor, - Pode me ensinar? O homem fez cara de irritado e nem deu olhos ao seu menor talento.

Astutamente, foi ao campo encontrou desativada uma caixa d’água cimentada a meio metro do chão, conseguiu cravar ali duas barras de ferro e atou de uma ponta à outra os restos de arames encontrados pelas caixas de ferramentase terreno ao redor do circo, pediu uma sombrinha emprestada e pensou ser autodidata do equilibrismo.

Aquilo seria moleza diante das horas consumidas pelas observações. Calçou uma sapatilha velha costurada de pedrinhas e enfeitada com papel crepon colada com goma arábica, tentou subir na primeira extremidade... primeiro passinho... segundo passinho... tentou dar um pulo e plaft! O arame rompeu, Malu caiu, além dos aranhões, quebrou o braço ao som do que seria sua fonte inspiradora, a música mais tocada do momento Iolanda Hino de resistência daqueles que acreditavam nas mudanças, daqueles perseverantes, daqueles que jamais desistem de uma luta mesmo que essa luta pareça inglória, como a de ser a primeira equilibrista de um circo imaginário

Assim como aconteciam simultaneamente as mudanças político-social e cultural no país, Iolanda do cubano Pablo Milanês se tornara a bandeira de guerra de tantas lutas.

A bandeira daqueles que jamais desistem dos seus sonhos fez Malu apesar de todas as raladuras na carne branca e do gesso no braço direito, subir mais uma vez no arame agora inteiro, sob os aplausos dos meninos desesperados pelo seu sucesso.

Mais uma vez os tombos, arranhões, gritarias e as risadagens, a ajuda dos primeiros socorros, queixumes da mãe, proibições do seu pai, a menina pela última vez tenta um salto para o futuro.

Subiu no patamar, equilibrou a sombrinha e atravessou, ilesa, os dois metros arqueados do arame, saltando graciosamente, caminhando com porte de bailarina e por fim ... a vitória, os aplausos a conquista do sucesso.

A vitória de todas as vitórias ela era a primeira equilibrista do seu imaginado circo.