O Ventríloquo.-Normanda - Lia Lúcia Almeida de Sá Leitão.- 8/8/005

A vida tomba diante da tinta que se manifesta e infesta, a alma do artesão como poeta, a mão que não acerta o verso, o verso que não encontra a escrita e a labuta diária da praça como cenário, de teatro o estrado para o homem e o boneco, os pássaros e as plantas, os gritos agudos das crianças e a voz sumida do mendigo, a vida em ebulição. O pipoqueiro insiste em seu microondas macaqueando o poste de luz, escondendo a usada panela de alumínio meia de óleo e fundo preto da fuligem do velho fogareiro a gás butano, cheiro, milho transgênico de vários sabores e o anuncio de promoção pague duas e leve uma grátis.

O dia já amanheceu faz tempo, uma nuvem suntuosa encobre o sol que estarrecido ilumina cinza os desejos de quem pede calor, a impotência da ameaçadora chuva diante dos que brincam de corre-corre, bicicleta, velocípedes, ignorada também, pela mesa dos quatro aposentados jogadores do dominó, carros que circulam as extremidades das ruas nem percebem a cor da manhã de sábado e contribuem com suas buzinas e freios a impossibilidade do esquecimento da semana passada mesmo diante do crepúsculo inusitado daquele dia que seria de verão.

Meio ciclônico um vento levantava as saias das moças da escola Episcopal, roubava com a mão de fada os véus das viúvas e senhoras que se dirigiam à reza matutina, tremulava afoito a folha de metal representando o papel do poema que sentado num pedestal de granito olhava fixamente para o Museu do Estado ali na sua frente, devia estar entediado das cores sempre rosas e portas cor de mogno polido e sempre fechadas ao público, o jornal do homem que embrulhava amendoins torrados, naquele momento um lambe-lambe registrava a folha da árvore desprendida e sem rumo voando como uma pipa sem a mão de Ariadne segurando o fio.

Vendedores ambulantes ofereciam, colares, bolsas, passes estudantis, Cds pirata, um homem gritava olha o dólar vendo pelo comercial, outro berrava olha a borboleta da sorte, confirme pela Loteria, a banca clandestina do bicheiro vendia mais que um zoológico inteiro, sapos, pombos, urubus, cobras, lagartos, rato, leão, cavalo, peru e os olhos fixos nos números tombavam a ilha numa festa de confirmações, mexericos e discrepâncias políticas como futebol.

Era a festa do sol encoberta pela nuvem magnânima sem dia de padroeiro, todos podiam circular sem serem percebidos ou configurarem estruturas de esculturas estáticas, sempre a espera do astro rei.

Mas ela estava ali, importante, dona da chuva, a manda frio, manda qualquer coisa desde que a farra daquele momento se desfaça num aguaceiro gélido de inverno em pleno verão.

Era essa a idéia, lavar as bocas sujas dos palavrões no jogo dos avós, lavrar a mão de Ariadne para segurar o fio da história, apagar com o fogo do botijão a gás do pipoqueiro e inundar a rua de cascabulhos, entulhos, que desceriam da ladeira pelo oitão da Igreja Matriz.

Ninguém via a intenção da nuvem, assim como ninguém mais lia a novidade do dia, comiam-se os amendoins e jogavam-se as notícias na lixeira junto à garrafa dos refrigerantes das horas passadas.

Ninguém consumia a feirinha de artesanatos, nem o banheiro público.

Os artistas da praça cada um aos seus postos sorriam de um público enamorado, o homem do realejo alegrava desde os desiludidos de amor aos amantes de beijos estalados, rodava a maçaneta daquela caixa ornamentada de flores e santos, de doirado e vermelho, de franjas e fitas de cetim, já usada e carcomida, maltratada há anos que definhava um som cansado como o dono, mesmo assim os graves e agudos se propagava num mesmo bemol e o macaquinho coreógrafo, atado em fita escarlate fulgurava em brios dando inveja ao sol escondido, dançava, rolava, dava uma, duas, cambalhotas e puxava o bilhetinho da sorte, aquela moeda de centavo comprava o lampejo milionário da felicidade.

Os transeuntes circulavam o caminho iluminado das pedras que davam um brilho de vidro polido aos ladrilhos delicadamente desenhados para deleite dos solados dos sapatos, fossem rústicos como o de um homem que atravessava em passos rápidos para a feira, como a mulher que segurava a sacola e uma velha sobrinha florida de passei, como os saltos da bem vestida moça que cortava o espaço na contra mão em direção ao caixa eletrônico, como a adolescente que arrastava as chinelas num tom cadenciado de preguiça, daqueles que consumiam as idéias pautadas na economia sempre compenetrados de cabeças baixas como quem contava pedrinhas ou procuravam anéis perdidos.

Vozes altas, sussurros, psiuus, assovios, gritos, momentâneo silêncio quebrado por um canto de pardaloca, e o blá blá blá que sopra sem as barreiras do som tomavam o encanto de uma ópera completa, a música misturava aos pigarros do mendigo que implorava o pingado com pão na padaria da esquina.

Tudo virava às avessas, tudo girava sentido anti-horário, o dia insistia em não abrir em sol, mas nada ali parecia perceber o homem de casaca azul desgastada pelo tempo, chegou em silêncio, tirou do braço esquerdo um banco amarelado, deitou ao chão uma sacola preta e abriu, retirando de dentro um boneco de meio metro com cabelos de fiapos de pano até o ombro, arrumou banquinho na posição de conforto para a perna e deixou-se acomodar o pé direito onde acomodou aquele boneco sentado sobre a cocha, vestido de paletó e gravata, chapéu de taxista dos anos 30.

O feitio do boneco não passava de um menino sapeca aos 9 anos franzino e feio, com lábios carnudos desproporcional e acentuadamente vermelhos, olhos esbugalhados que não perdia uma cena, cheio de piadas e chistes, jogou o chapéu no chão, e abriu uma coluna, o boneco falava e o homem olhava com espanto a sabedoria do ser, sua primeira piada abria as galhofas para o público:

AS PIADAS COMEÇAVAM SEM PIEDADE.

Os dois caipiras se encontram numa venda:

- Oi, cumpadre! Como vão as coisas?

- Tudo bem! Vosmicê sabia que o Chico casou?

- Sabia, não! Casou com a Lindalva?

- É, aquele mulherão! Agora o bicho tá que é um touro!

- De forte?

- Não, de chifre!t

Terminada a piada em seguida emendava com voz de jornalista ... Mulher de pernas bonitas vale uma loa, pão de broa e um beijo na boca! Mulher de pernas feias, com marcas de feridas vale um empurrão na fila do INSS, moça bonita não paga show só as feias que desfilam de camburão.

Moça pronta pra casar é quem tem casa, cama e fogão receitas de quitutes de manjar, as feias só servem para arear panela, e rezar as orações de Santo Antônio para desencalhar.

Olha a mulherada solteira marido se pega pela barriga, e pela barriga macho sabido prende mulher bronca, mas aquele que se diz macho de verdade se prende é de trabalhar.

Marido de barriga, namorado de marmelada se borra todo no jantar, homem decente sem vergonha de pai de moça casadoira, quer namorar e ganhar tempo alegrando a mãe e a avó com cocadas de menina moça ou terços de contas de vidro para velha poder rezar .

A praça inunda de gente, o homem de azul impecável pára e respira, passa o chapéu ganha os trocados, conta todo o volume de moedas num balançar de chapéu, no passar dos olhos os dinheiro, e diz em voz alta para aquele público o nome do boneco é Alcebíades veio numas férias de navio direto de além mar, das terras dos Reis Católicos onde já não podia cantar, a polícia não dava tréguas nas ruas, correndo risco de ser preso, mandando pegar o caminho do mundo que ali não era praça pra vadiar; e o ventríloquo que vos fala de nome se chama Sávio.

É agora na rua ou no improviso do mambembe sua casa 5 é a sorte; e de 5 peças cantadas a cada dia 5 dias nos castelos desdenha das damas do reino, das festas de confrarias fala das casamenteira, aos Santos de Padrinho Cícero ou mesmo Frei Damião a fé de remissão, alegrava inocentes e adultos, nos bailes da cidade nas danças profanas e moças dos pastoris.

Uma tarde apaixonou-se por uma moça e fez uma loa irreverente começou a pesquisar sobre a sapiência do prefeito.

- Fiz um levantamento em nível municipal para saber as coisas que o homem mais gosta. Em todos os cantos da cidade a resposta era uma só:

- Dinheiro e mulher!

Em todos os campinhos de futebol, os homens respondiam de pronto: "dinheiro e mulher".

Quase ao final da pesquisa, ele encontrou o prefeito sentado na calçada da bodega pitando um cigarro.

- Bom dia.

O Prefeito deu uma tragada, cuspiu de lado e respondeu: "dia, só."

- Estou fazendo uma pesquisa para saber as coisas que o homem mais gosta. O senhor pode me responder?

O Preeito ficou em pé deu mais uma tragada e mais uma cuspida:

- As coisa que o homem mais gosta é "dinheiro, muié e bicho de pé".

O pesquisador, estranhando a inclusão do item "bicho de pé" na resposta, perguntou:

- Olha, todo mundo falou dinheiro e mulher. Mas e bicho de pé?

Mais uma tragada e mais uma cuspidinha, o prefeito retrucou.

- O. Que que adianta ter dinheiro e mulher se o "bicho" não tiver de pé?

Quando o Prefeito descobriu a bagunça imediatamente mandou apurar a brincadeira sem graça, expulsar boneco safado e faceiro na fala do desarvorado.

Ventríloquo, pé rapado chamado de desaforado, o verdadeiro atentado ao pudor da autoridade da cidade só pra chamar a atenção da filha mais nova do desafortunado, o dono da arte debochada depois de ser expulso da praça, saiu cuspindo bravatas que só quem tem arte pode falar.

- O rico tem o carro cheio de garotas e um cara cheio de marra na direção, lá iam eles pelo interior, numa estradinha de terra fazendo turismo. De repente, parado na beira da estrada, tinha um Matutinho. O garotão disse:

- Vou gozar esse caipira. Disse o boa pinta para as meninas.

- Você vai entrar bem. Disseram as garotas.Esses matutos de beira de estrada não perdem uma.

- Vão perder hoje. Falou o cara.

O garotão boa pinta parou o carro em frente ao matutinho e disse:

- Como é o nome desse porquinho aí do seu lado, ô compadre?

E o matutinho sem tirar o zóio do fumo que estava pitando respondeu:

- É Ocê!

As meninas caíram na gargalhada.

O rapaz ficou meio perdido, mas vinha vindo uma porca na direção deles e ele teve a idéia genial:

- Ah... e aquela que vem lá é a mãe d'o ce, não é?

As meninas adoraram a saída do rapaz mas pararam logo de rir ,quando o caipira falou, pausado:

- Não aquilo ali nem é porca . Aquilo é porco. A mãe d'oce eu comi ontem!

E o ventríloquo é expulso da cidade!