CINZAS II - QUANDO O SOL SE PÕE - Normanda - Lia de Sá Leitão

A sensação de abandono tomou conta daquela tarde onde o frio também tinha o poder de estremecer a alma.

O vento cortava a pele e os passos se arrastavam pela calçada sem direção, atravessava uma, duas ruas e mais ruas até chegar ao mar.

A terra naquele instante era ainda maior que a distância que separa razão e o abismo, e o tempo quase totalmente perdido nas horas de um pôr de Sol desbotado.

Um desejo de abrir o chão e sumir diante a humilhação, um torpor que fere o brio e sopra nas mãos de quem escreve cartas para ninguém um a Deus magoado.

Um calafrio de quem saltou do vôo sem pára-quedas e clama pela alma que se perdeu no labirinto dos sonhos.

A alma sangra sem deixar rolar a lágrimas que deveria transbordar como a chuva que se aproxima ou o grito contido na garganta como o trovão preste a trincar o céu em espelhos, a ferida aberta borra em cinza o sol que se põe.

Ainda resta a luz que brilha dos postes e quantas portas a mão que segura o efêmero véu terá que abrir como comportas de esperança e resgatar no silêncio os gemidos do prazer, mesmo diante da revelação; ereção não é desejo.

Entre um quarteirão e a noite resta a certeza de que o dia amanhecerá em brasa e sons felizes de crianças que passam para a escola, e o sorriso de prazer daquele que segue no carro a passeio.

Todo o movimento da ópera passa em estudos como quem retroage e apenas os atores secundários entram em cena. Toca a sonata e rangem as cordas do coração que se propõe a não perder a esperança determinada em seguir o ritmo sem perder o tom.

O olhar ganha um novo brilho de quem encontra a força que existe no destino a cumprir com dignidade, pois já escritos nas estrelas dimensionam o valor da alma humana.

Questiona-se a vida em suas lacunas, o que se tem a esquadrinhar no quebra cabeça que foi dado a construir de bem ou de mal, onde se deixou de acertar?

Qual o preço do tropeço e a queda livre em pleno ar ou o mergulho atordoado numa onda que empurra o náufrago à enseada menos distante da ilha que servirá de morada sem dor ou raiva, sem a mácula da vergonha pela tentativa de um acerto e paz.

Cinza, agora é possível entender As Cinzas das Horas.

Toda tentativa de busca pela felicidade é a recompensa de uma verdade atada na bruma salgada da brisa que fere os olhos secos de rio e mar.

Toda tentativa de reconstrução é favorável ao acerto e ao apelo da verdade, porém a revelação do obvio tantas vezes discursada no etéreo mundo do real enganador não propaga o som, a face o olhar dos olhos de quem escreve em linhas azuis a oração dos comovidos.

O naufrago não se deixa levar pelo pensamento de solidão sem jamais sentir o sabor da derrota mesmo que a noite avance e não tenha consciência das rotas.

O caminho a seguir e deve ser seguido, existe um tempo a cumprir e será cumprido.

Sem arrependimentos ou dor ainda resta a esperança de estar vivo.

A intempérie passa e o sol voltará abrasador na manhã seguinte com o renascimento da esperança qual Fênix que sobrevoará a flor de lótus brotada no jardim das idéias.

O náufrago retoma o fôlego ainda ofegante e parte para o reconhecimento da história que será criada com a partição dos espelhos.

PARTIÇÃO DO ESPELHO – 01.

O Deleite

O náufrago descobre a fonte de água doce e esbanja o sorriso largo, joga o precioso líquido aos céus, dança ao som alegre de uma música há muito esquecida na sala dos brinquedos, sente-se criança e mergulha no profundo azul do encantamento.

Toca-se e sente um prazer irresistível da pele que arrepia em volúpias, ondas quentes invadem o corpo como quem faz amor pela primeira vez, desvario das idéias pensa no amor que se perdeu em algum lugar do passeio público.

Sente-se invadido pelos mais simples desejos da carne, toca os pés, passa dos dedos da mão sob os lábios, alisa o peito, faz movimentos circulares pela barriga, segura firme o membro enrijecido de prazer, sente choques, jorra o filho perdido sem o pesadelo da perda. Abre os olhos e a paisagem continua silenciosa e cúmplice.

Em algum momento sentiu falta do corpo que despertava com a voz da cidade, mas nem mesmo sabia o tempo que levara para esquecer o rosto, o gosto a cor da separação.

Desvia o pensamento de tudo para o nada constante, ali receptivo que acolhia em seus braços de ilha.

Deleita-se entre o real e virtual a imagem da mais bela sereia, desistiu do virtual na verdade a sereia era verde.

Brinca mais uma vez com na superfície da água e vê na margem oposta o gnomo dono do ouro de onde nasce o arco-íris.

Canta a plenos pulmões uma canção de amor, mergulha, bóia, ouve o barulho do mundo e os vôos dos pássaros parecem as acrobacias de ginastas que não disputam ouro olímpico por serem deuses metamorfoseando, mergulhões, gaivotas, andorinhas do mar, papagaios, e lavadeiras, todos podiam ser distinguidos pelo vôo rasante sobre o espelho refletindo luz.

Nenhuma sensação de desconforto podia quebrar a harmonia da natureza naquele momento, a interação dos seres fundiam-se em cor, cheiro e linguagem, os anjos em seus arpejos decodificavam a alma humana naquele instante de sublimação e êxtase.