DIÁLOGO À ESPERA DA MANHÃ QUE NUNCA VAI NASCER

Daqui a pouco o dia nasce e vamos nos sentir melhor, você vai ver. Se você quiser abro um pouco a veneziana da janela, se tiver sol, assim ilumina um pouco aqui dentro. Não sei se você já viu esta janela, acho que daí da cama não dá pra ver, o vidro é fixo, não dá pra abrir. Fica o ar entrando somente por aqueles frisos na parte debaixo da porta de entrada. E também pela janelinha do banheiro, mas é melhor deixar fechada a porta do banheiro, você quer que eu deixe aberta a porta do corredor? Mas pode vir algum barulho inesperado lá de forma, de bandeja, elevador, gente andando, essas coisas, e você se assusta. Melhor deixar aberta, se você quiser depois eu abro, mas só um pouco, pra entrar um ar. Às vezes vem um cheiro desagradável, acho que passa uma tubulação, não sei, você ouve barulho de água correndo durante a noite, pai? Deve estar cheio de encanamentos, este quarto, quando alguém aciona a válvula de descarga a água passa bem embaixo da cama. Desconfortável esta poltrona, vou amanhecer todo quebrado, com as costas moídas. Mas bem que se você pudesse trocava comigo, hein, pai? Não trocava, claro que não trocava, pai nenhum quer ver o filho doente que nem você está agora. Melhor ficar com esta poltrona dura do que deitado nessa cama aí, não é verdade? Embrulhado nessa roupa de cama, com esse nome, “Hospital do Câncer”. Deve ser pior que a poltrona. Pai, deixa eu tirar esse urinol daqui, você não usa mais mesmo, com essa sonda aí pendurada. Já deviam ter tirado esse negócio daqui, na verdade, desde que botaram a sonda. Já faz quase três horas que eu cheguei e você ainda não acordou, está com tanto sono assim? Será que não se confundiram e te deram remédio demais, não? Sei lá, tem tanto doente aqui, esse prédio é tão grande, pode acontecer de alguém se enganar e dar o remédio errado pra algum paciente. Você sempre dormiu bastante, mas agora está dormindo demais. Mas você parece tão bem, quase não perdeu cabelo. Parece que apareceram algumas olheiras, mas o cabelo está mais bonito, mais grisalho, mais cinza, será o remédio? Nunca tinha reparado nesta bolinha branca sobre a pálpebra, você sempre teve isso? Esquisito, parece uma verruga. E está nascendo outra aqui do lado, perto da orelha. Precisa ver isso, pai, às vezes não é nada, mas pode ser algo grave, sei lá, começarem a surgir essas coisas assim, do nada. Se a enfermeira aparecer por aqui vou mostrar pra ela, de repente ela fala pro médico, faz uns exames. Tá esfriando, pai, à medida que a madrugada avança o frio aumenta. Você está bem coberto, com a mão quente. Passou o problema do ácido úrico, não, pai? Que bom, seus dedos ficavam horríveis, todos cortados. Acho que é por causa desse monte de remédio que dão aqui. Bom, a respiração está normal, estou vendo. Os fios estão todos conectados, tem fio com agulha espetada na mão, nos dois braços, até no saco tem fio pendurado. Você está parecendo aqueles televisores antigos que consertava na mesa da cozinha quando a gente era moleque, lembra? Tudo cheio de fio. Será que é câncer mesmo, pai? Sei lá, ninguém fala nada direito, só dizem que o que há é uma massa, um volume, mas se for ver bem médico nenhum usou a palavra tumor, já reparou? Então. Mas por outro lado, se não fosse isso mesmo, se não fosse algo grave, você não estaria num lugar chamado “Hospital do Câncer”. Pode ser por prevenção, também, eles preferiram mandar você pra cá para o caso de essa massa, esse volume, ser mesmo câncer. Mas não é não, pai, vai ver só. Quem tem câncer emagrece demais, fica careca, só pele e osso, faz quimioterapia, radioterapia, e você só tem esse monte de fios pendurados. E as olheiras. Emagreceu um pouco, sim, mas também queria o quê? E depois, não me lembro de ouvir falar de alguém na sua família que tivesse câncer. Você sempre foi um cara tranqüilo, sem grandes neuras. A mãe sempre falou que você foi sossegado. Bom, sossegado não, ela sempre falou que você era acomodado. Já ouvi que câncer dá mais em quem tem grandes aborrecimentos, preocupações demais, o que, pelo que eu me lembre, nunca foi seu caso. E tem a genética, a hereditariedade, também, acho que no seu caso a genética ajuda, afinal seus pais e seus irmãos morreram de infarto, não foi? É, acho que não é câncer, não, pode ficar tranqüilo aí na cama. Impressionante este silêncio a esta hora da noite, né, pai? Nem parece que estamos em São Paulo, uma confusão danada. Meu irmão veio aí, deixou umas pêras e umas goiabas, falou com o médico e ele disse que pode. Engraçado, há um mês atrás não podia comer nada, agora já deixam entrar até goiaba. E da vermelha, grandona, a que você mais gosta. Você gosta de figo, também, se quiser eu trago quando voltar. Ou ligo e peço que ele traga quando vier aqui da próxima vez, não sei quando é que ele volta, esse meu irmão trabalha demais. Sabe que outro dia estava reparando que o filho desse meu irmão tem os pés iguaizinhos aos seus? Os dedos meio fechados pra dentro, parece que formam uma espécie de concha, vão envergando em direção ao meio do pé. E com ácido úrico. Quando eu era mais ou menos moleque ficava olhando seus pés, imaginava você atravessando o país com mãe, irmão, dia e noite de estrada pra chegar em São Paulo, quase três mil quilômetros de viagem, sempre se equilibrando em cima dos pés rachados e de unhas grandes, que você nunca gostou de cortar. Três mil quilômetros de estrada e sol esturricando as idéias no meio da cara, você e mais um monte de gente, do Norte todo. Que loucura, não, pai? E eu ficava olhando seus pés, o jeito de andar, a camisa aberta com o calor que fazia lá onde a gente morava. Você tinha a mania de andar olhando pro lado, e os pés em concha, eu e o meu irmão ficávamos no portão de casa olhando você apontar lá no comecinho da rua, depois você vinha vindo. Um dia corri pra lhe alcançar e um cachorro correu atrás de mim, lembra do meu desespero? Depois você me pegou no colo, me levou até a sala de casa, falou que eu estava muito pesado. Eu sempre fui meio gordo, você sabe. Tá me dando um sono... amanhã tenho que encarar três horas de ônibus pra chegar em casa. Será que até eu sair você já vai ter acordado? Tá acabando a água do filtro, quando a enfermeira vier vou pedir que reponha. Não tem jornal neste Hospital, não? Pai, será que eu posso descer até o térreo pra ver se tem alguma coisa pra ler? É rapidinho, vou e volto. São quatro andares, pelo elevador não demora nada. Mas e se você precisar de mim pra alguma coisa enquanto estou lá embaixo? Não, melhor ficar aqui, mesmo, quem sabe eu desço e é justamente aí que você precisa de alguma coisa, e eu não estou aqui pra ajudar. E foi justamente pra isso que eu vim, pra ficar contigo. Ou então a enfermeira entra e eu não estou aqui pra pedir a reposição da água? Melhor ficar. Ouviu? Sirene de Polícia. São Paulo é assim mesmo, não pára nunca. Esqueci, você não pode ouvir. O médico disse que depois da sedação não se ouve mais nada, só pode reverter de novo uma única vez, e aí se o paciente tiver outra crise terão que entubar. Não sei bem o que é isso, pai, mas ele disse que é bem ruim, a pessoa sofre demais. Por isso resolvi concordar com a sedação, entendeu? Assim aquelas crises param, você não precisa sofrer tanto, além do que pode ser que nem seja câncer, não é verdade? Não foi isso que a gente conversou? Ele também disse que algumas pessoas podem até mesmo sair da sedação, que nada mais é do que um coma induzido. E a gente ouve tanto falar de pessoas que entram em coma e depois ficam boas! Então, pai, vou ver se arranjo lugar na geladeirinha pra colocar as frutas que meu irmão trouxe, pra quando você acordar e tiver fome, que alguma coisa em mim diz que você ainda vai acordar, e vai ser ainda esta noite que isso vai acontecer, tenho certeza. Não comentei nada com ninguém desse meu pressentimento, mas depois que meus filhos nasceram eu mudei muito, pai, você deve saber como são essas coisas, e algumas certezas tomam conta de mim de tal forma que aquilo que eu desejo pode mesmo acontecer. Se bem que no seu caso nem é pressentimento, nada, é científico mesmo –você não tem nada ou, se tinha, está prestes a ser curado. Já ouvi falar de um monte de gente que sobrevive anos com uma massa, um volume, ou seja lá o que for, no corpo. E se isto realmente acontecer significa que o pior já vai ter passado, e dentro de pouco tempo poderemos levar você de volta pra sua casa, pras suas plantas, pra seus livros espíritas, pras suas frutas compradas toda quinta na Rua da Feira, para o calor comprido que se instala debaixo dos chapéus-de-sol da cidade onde você mora.

Benilson Toniolo
Enviado por Benilson Toniolo em 11/04/2008
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