[Mortes Necessárias]

Para mim, o lençol da visão do apóstolo Pedro é uma fina peneira, e a mensagem que esta peneira me traz nada tem a ver com aquela que Pedro recebeu dos céus quando viu o lençol. Ora, vejam como é cruenta essa visão desses invingados rancores que não adormecem jamais!

Peneirinha, peneirinha, peneirinha de coar fubá, quem sou eu, quem vem lá?! Não sei, não sei, respondeu-me uma voz; torno a perguntar: quem é que poderia me dizer quem sou eu que nessa peneira tão fina não passo, mas bóio junto com as minhas amargas lembranças? Estrada do amanhecer, estrada de a gente se cansar, estrada de ir ao entardecer — quem sou eu, quem vem lá?! E que lembranças são essas que não me deixam dormir?

Uma peneira assim, tão grande quanto o guarda-chuva do “seu” Egidio, baixou ante os meus olhos e, dentre tudo que havia nela, homens, mulheres e bichos, eu pude escolher, ao gosto de minha soberania, e fiz assim: ao escorpião, arranquei o ferrão, e soltei-o a andar decepado de sua arma; à aranha, arranquei-lhe todas a patas, toquei-a com um raminho seco e disse-lhe: “vamos, mova-se!”; ao grilo que pula longe, arranquei-lhe as patas de alavanca e deixei-o ir-se, arrastando o meu olhar de prazer, até a goela do feio sapo que mora no meu jardim, este, que me espera à noite na garagem; à cascavel, arranquei as presas e o chocalho e libertei-a, desarmada, em meio o cerrado povoado pelas grandes seriemas; à formiga cabeçuda, cortadeira das folhas das minhas roseiras, eu arranquei-lhe as tesouras e a soltei na trilha do tamanduá; ao mandi-açu e arranquei os ferrões e soltei-no remanso dos grandes dourados que entravam, brabos, espadanando as águas do Córrego da Trindade.

E quanto aos homens eu fiz assim: algumas mortes que pratiquei, foram bastante impessoais; ao mentiroso que vivia na venda esquina falando de todas as mulheres da rua, e até da minha mãe, eu cortei-lhe um pedaço da língua e atirei-o aos cães vagabundos; depois, calmamente, olhei os seus olhos apavorados e, rindo-me do seu inútil esforço para gritar, eu abri as suas veias e observei atentamente o sangue ser absorvido na terra seca; o vendeiro que aumentava os preços só por que dezembro se acabou, e logo outros o seguiam, eu matei com veneno de rato, pois o rato espalha doença, e a gente não o deixa vivo, se pode matar; ao urdidor da desgraça alheia, causador da morte de meu padrinho João Lopes, eu coloquei no cérebro dele um finíssimo ferrão de aço que não o matou de vez, mas deu-lhe tempo de correr Rua da Estação acima, todo mijado e cagado de tanta dor, e seguir a minha sábia e caridosa orientação para se jogar sob as rodas do trem da Mogiana que chega de São Paulo às 16h45; ah, se ele não se jogasse, eu o empurraria! Quando ele caiu nos trilhos, o trem doido passou por cima, e eu vi os miolos espirrarem pra todo o lado; ah, veja no que dá a intriga, o fuxico — eu disse ao corpo esfacelado!

Mas não matei todos os homens, para alguns a vingança foi mais suave; ao fraco e impertinente que sempre desistia das apostas e das carreiras, cortei-lhe os tendões para que seus músculos pendessem lassos; ao medroso que costumava atrapalhar-me roubar frutas na casa daquele vizinho que dava tiro de sal na molecada, quebrei-lhe as pernas para que não mais fugisse de sombras; reputo essas pequenas ações apenas como purgativas das raivas menores que me fizeram!

Porém, algumas das mortes foram por motivos de ódio eterno; herdado ou adquirido que se tornou eterno. Serei breve na primeira; ao homem que tirou o sossego de minha mãe e roubou a nossa herdade, eu cortei a garganta, mas tomei o cuidado de ficar de lado e olhar, à medida que o coração perdia força, como diminuía o tamanho da parábola descrita pelo sangue da jugular aberta.

E o mais interessante sucedeu àquela mulher maldosa que cobriu de nuvens negras os meus sonhos de criança; essa eu matei duas vezes, mas só enterrei uma. Na primeira, ela era ainda muito sadia, muito vigorosa, estava na força dos seus anos de praticar crueldades sem pensar na eternidade; para mata-la, eu fingi-me de carinhoso com ela, e consegui colocar-lhe uma aranha venenosa nos seios; ela sentiu a picada caiu dura! Porém, vejam só o que aconteceu: quando o cortejo chegou à porta do cemitério, ela soergueu-se, gritou e esbravejou com carregadores do ataúde, por fim, sentou-se, atirou longe aquelas dálias fedorentas que a cobriam, e antes que a jogassem no chão, de um salto, ela pôs-se de pé no meio da rua e espaventou a todos: “bando de pinóias, curriola de safados; onde é que pensavam que iam me levar, hein?! Cuidavam que eu já estava morta?! Pois eu estou viva, e bem viva, ouviram? E vou acabar com os dias de vida de vocês, vou atormentar os seus sonhos.” Tremi de medo. E não fui apenas eu; ninguém mais ousou sequer olhar para ela, tão poderosos e flamejantes eram os seus olhos! Ela desembaraçou-se das ataduras que a tolhiam e saiu correndo rua afora em direção a sua casa; as coitadas das empregadas quando a viram chegar, correram e esconderam-se atrás das bananeiras do quintal; e os vizinhos, que já se consideravam livres dela, fecharam as suas portas e janelas!

Do alto da minha visão eu pensei, desta vez, não deu certo, falhei! Mas da próxima... sim, houve a próxima vez: anos depois da primeira tentativa, quando eu já era crescido, já era forte e não mais temia os gritos e nem os olhos dela, eu a matei em definitivo. Desta vez, dei-lhe um copo de veneno enganosamente doce, porém envolto num papel em que eu escrevera uns versos amargos; ela bebeu o líquido e leu os meus versos; assim, matei-a, duplamente, com certeza! E tanto ela já havia sido encolhida pelos anos, tanto os seus gritos se extinguiram, e tão baços eram os seus olhos que o ataúde em que a vi, ao ser enterrada, era apenas um caixote de bacalhau da Noruega, daqueles que eu usava para fazer carrinhos de catar esterco nas sarjetas; na certa, devo ter guardado este caixote, desde a minha infância, apenas para esta finalidade, para enterrar aquela maldita mulher que escureceu os sonhos meus de criança, que tirava a paz e a harmonia dos meus quintais...

No entanto, vejo que não a matei totalmente, pois sempre que esta fina peneira desce das alturas, lá está ela, entre aqueles seres esquisitos, e olha-me como se pudesse humilhar-me outra vez! Mas não pode, e mesmo que pudesse seria apenas para levar-me a um novo e desesperado esforço de matá-la de uma vez por todas! Agito-me na cama, transpiro, que diabos, esta mulher ainda vive! De algum modo, ainda vive! E tampouco está morto o tal ladrão cínico que amargou a vida de minha mãe e roubou minha herdade; lá está ele; está vivo, e com seu riso sarcástico a zombar de mim; pois terei de cortar a sua garganta outra vez! E vou cortar meeeesmo!

Mas agora nada posso fazer, pois a tal peneira misteriosa começa se desfazer no meu visor e já vai se recolhendo às alturas! Ah, como eu disse, parece-se mesmo com o lençol da visão de Pedro! Mas a voz que ouço não me diz que devo matar e comer esses animais, querendo significar que eu deveria ia os gentios a pregar-lhes um evangelho; a voz grita-me que esses seres horrendos moram em mim, que os levarei aonde for, para sempre! E o pior: não adianta suicidar-me, pois há a forte possibilidade de que eu já tenha vivido bastante para que os meus filhos os herdem de mim! Insuportável condenação!

Vai-se de vez a tal peneira... e tenho a sensação de sobrevoar um lugar inóspito, um mar de árvores cascorentas, retorcidas... trata-se de um vasto cerrado e até aonde a minha vista alcança, a paisagem é uma aridez só, exceto alguns oásis onde se alteiam, majestosas, as palmeiras de buriti. Mas esta paisagem, este extenso cerrado e o oásis de buritis, já fazem parte de outra imagem... assim são os chapadões de Minas!