RENASCER

No meio daquela escuridão ouço um sussurro, tento mexer-me e não consigo, todo o meu corpo parece preso, sinto umas dores nas pernas e nos ombros. Estou completamente imobilizado sem saber o motivo. O cheiro de gasolina é muito forte.

Meus pensamentos vagueiam , não tenho idéia de onde estou. De repente uma sirene entoa e me confunde, ouço vozes! Gritos aterrorizantes apelavam por socorro.

- Este aqui está muito machucado, mas ainda está vivo, o outro com certeza morreu!

– Que desgraça, ele era muito jovem para morrer assim!

- Tem mulher e duas filhas ainda pequenas!

- Deve estar totalmente esmagado, veja a condição que ficou este carro !

Outra voz mais grave e rouca assevera:

- Este veículo que atropelou o seu carro é um fora de estrada e pesa 70 toneladas. É um Moto Scraper, máquina usada para remoção de terra, cada pneu pesa 3 toneladas. Já vi outros acidentes assim, é impossível reconhecer a vítima, o corpo fica esfacelado!

Eu não entendia o porquê daqueles comentários! Seria de mim que estavam falando? Se os comentários fossem relativos à minha pessoa, por certo eu estaria morto. Meu Deus penso, eu não queria morrer assim! Fiz tantos planos para o futuro, tenho apenas 27 anos. E agora, como ficarão minhas filhas, elas têm apenas quatro anos a mais velha e um ano a mais nova, fiz tantos planos para elas, que posso fazer se já estou morto? Por outro lado, se eu estava pensando tudo isso, como eu estaria morto? Dizem que quando nós morremos tudo se acaba, se assim é, como é que eu continuo pensando? Neste instante começo a visualizar a minha própria imagem naquela escuridão.

Parece que uma luz brilhante, de aproximadamente dez centímetros envolvia todo o meu corpo. Eu não estava pisando no chão, parecia estar flutuando no espaço, fiquei muito confuso! Se eu, preso nesta escuridão, estou me vendo, livre e flutuando, certamente não existe mais nenhuma dúvida, eu morri! Seria então o meu espírito que estaria ali me avisando da partida?

- Não vá, por favor, não vá agora, me dê mais uma oportunidade, pensei!

- Pode ser que eu ainda não esteja morto, veja quantas dúvidas eu ainda tenho, eu preciso ter certeza da minha morte. Naquela escuridão as vozes continuavam a sussurrar!

- A ambulância chegou! - Levem este aqui que ainda está vivo!

- Quanto ao outro, é uma perda de tempo, comenta uma voz feminina, o ideal seria vir o carro funerário!

- Mas para que carro funerário? Indaga outra voz. - Eu vi outro acidente que ocorreu recentemente com outra máquina igual a esta! Os restos mortais estavam dilacerados, foram colocados em uma caixa de metal, e, depois veio um soldador que lacrou tudo com solda branca, em seguida ficou uns dois dias no congelador, até enviarem para o Instituto Médico Legal em Belém/PA.

- Todo esse tempo? Pergunta uma das vozes que participavam daquele diálogo.

- Para a última viagem não precisa pressa! Comentou outra voz. Parecia que havia uma reunião de pessoas se deliciando daquela situação. Seria o purgatório? Ouvi dizer que todos passam pelo purgatório, onde vai ser avaliado para se saber se o seu destino é o céu ou o inferno.

Tomara que o meu destino seja o céu! Eu não vou suportar a convivência com o diabo e certamente vou encontrar muita gente conhecida que não gostaria de ver! Repentinamente aquela minha imagem que flutuava no ar, na qual se percebia uma luminosidade ao redor de todo o meu corpo, foi fazendo uma viagem no tempo.

Então, como se estivesse passeando no espaço, passei a fazer visitas, e pude ver a minha família, a casa onde morava em Monte Dourado, cidade que fica a 600 km de Belém do Pará, no meio da selva amazônica, fronteira com o Território Federal do Amapá – na época, ano de 1978, ainda era Território Federal – local acessível apenas através de aviões ou navegação fluvial feita com precários barcos de madeira que viajavam sempre superlotados.

Pude ver aqueles barcos sobrecarregados de pessoas, tornando o percurso muito perigoso. Lembro-me do barco “Novo Amapá” e sua infeliz viagem onde morreram mais de quatrocentas pessoas afogadas. A cidade de Monte Dourado, criada para abrigar os empregados de uma multinacional de nome Jarí Florestal, tinha aproximadamente o tamanho do Estado de Sergipe, e pertencia ao milionário Daniel Ludwick. Nesta época eu era funcionário da Goodyear do Brasil, sediada em São Paulo, e fora enviado para dar assistência técnica a esta grande empresa.

O meu cérebro repentinamente, em questão de segundos, começou a fazer uma retrospectiva de toda minha vida, histórico este que para fazer um relato completo, teria que discorrer em algumas centenas de paginas de um livro. Desta experiência concluí que o tempo não existe, ele pode ser percebido de diversas formas, dependendo da situação em que você se encontra. A percepção do tempo pode ser mais rápida de que a velocidade da luz quando você se encontra em situação de perigo e, mais vagarosa do que o caminhar de um “bicho preguiça” quando você está em estado de relaxamento ou confinado em uma prisão.

Apesar de todas as recordações que vagueava pelo meu cérebro, eu continuava confuso sem saber, de fato, se eu continuava vivo, ou estaria apenas, na condição de espírito, fazendo uma retrospectiva da minha vida, antes da viagem final, rumo ao mundo dos mortos. Nasci sobre o manto da religião católica, não sendo o que se pode considerar de um bom praticante, porém, tenho um profundo respeito por todas as religiões, inclusive pelo espiritismo, afinal, toda ela tem Deus como o ser supremo. Ademais, não se pode conceber o mundo sem a religiosidade dos homens, sejam elas católicas, evangélicas, espíritas, budistas, judaicas, muçulmana, umbandista, etc., todas tem o seu valor como controlador dos conflitos sociais, vez que, é na religião que o ser humano encontra o conforto necessário para suportar as desigualdades e injustiças sociais, sem o qual, estaria instalado o caos social.

De repente ouço pancadas e percebo que tratar-se de um resgate, porém, o arremedo de vozes se misturava transformando-se em ruídos indecifráveis, até que finalmente vi a luz, e pude então entender porque os Egípcios tinham verdadeira adoração pelo sol e o consideravam o símbolo da vida. Nunca senti novamente aquela felicidade, aquela visão maravilhosa da luz do sol me deu a certeza que eu permanecia vivo. Então pude ver muitas pessoas espantadas pelo fato de me ver vivo, mas, até então, pensavam que as outras partes do meu corpo estariam esfaceladas, pois se via apenas a minha cabeça e o meu tórax preso nas ferragens, e os meus olhos espantados.

Aos poucos foram me retirando daquelas ferragens, até que finalmente conseguiram desprender o meu corpo daquelas ferragens, e por incrível que pareça, fiquei em pé e percebi não ter sofrido nenhuma fratura ou contusão grave, apenas pequenos hematomas se via nos meus braços e pernas. Nada mais!!

- É um agraciado de Deus, diziam todos os presentes.

- Ninguém até hoje sobreviveu a um acidente destes, afirmavam outros.

Pareciam decepcionados, pelo fato de meu corpo não estar esmagado como presumiam. Parece que as pessoas sentem prazer em ver a desgraça alheia !

Mas, para a decepção de alguns, aqui estou vivo contando em breve relato o ocorrido. Nos dias seguintes que sucederam à ocorrência, fui visitado por muitas pessoas daquela cidade, que vinham incrédulos verificar o meu estado de saúde, inclusive o padre “ Frei Miguel” que atestava estar diante de um milagre.

Quando criança, vi um seriado chamado “ além da imaginação” que contou a história de um sujeito que teria morrido em um acidente de carro, e o seu espírito começou a vagar pela cidade, pois não tinha consciência da sua morte, até que finalmente, encontrou um conhecido seu que era médium, e ao perceber a sua presença lhe perguntou o que estaria fazendo ali, uma vez que teria morrido no tal acidente, oportunidade em que, tomando consciência do fato, deixou de vagar e seguiu para o mundo dos espíritos.

Assim, fiquei impressionado com esta história, e passei a procurar os conhecidos daquele lugar, para ver se alguém diria o mesmo para mim, afirmando que eu teria morrido no tal acidente, mas, para minha felicidade, Deus me agraciou com sua proteção, garantindo-me a continuidade da vida. Obrigado Senhor!