A Filha do Açougueiro

A

Lâmina sobre a pedra. Risca o esmeril. As fagulhas são douradas como os cachos maltratados de seus cabelos. Foi ensinada desde pequena a arrastar uma faca na outra, ou a usar o pau-de-amolar como seu pai costumava chamar. Mas depois da morte da mãe, tudo mudou. Apesar das surras constantes, seu pai comprara um esmeril. Assim não levaria a culpa novamente pela morte de mais ninguém. E apesar de não lhe dizerem nada diretamente, montava os cochichos entre um pedaço e outro. Alcatra. Chã. Patinho. Sempre recheados de uma intriga invisível e um peso de desconfiança no ar.

Filha

Alice já não era tão jovem quando por acaso acabou se suicidando. Trazia a outra Alice ainda na barriga, quando ao desossar uma costela enterrou a faca no ventre. A criança já de oito meses, teve o rosto cortado pela lâmina e por pouco fora enterrada no mesmo dia em que a mãe.

— Dá meu nome pra ela Alfredo... — foi só o que conseguiu dizer a caminho do chão quadriculado, agora não mais de branco e preto. Coisa que insistia em manter limpa dos respingos de carne. Por fim, o ensopara de vermelho, o que lhe daria um grande trabalho para limpar em outras circunstâncias. Ao seu lado, um pequeno coelho se aproximou, e muitos, até mesmo o perplexo marido, poderiam jurar que ela cochichara algo às grandes orelhas peludas.

Do

O pai lhe lembrava a imagem dos porcos que chegavam do abate toda semana. Comia como um deles e sempre engordava cada vez mais. A barriga crescendo como um grande balão de gordura. Ela, não comia muito, sempre magra e abatida. Ainda bem pequena, imaginava que talvez o pai lhe desse um irmãozinho. Mas fosse o que fosse, não sairia boa coisa de dentro dele. Apesar de tudo, ela sabia por um e por outro, que seu pai nem sempre fora daquele jeito. No dia do acidente, como sempre ouvia falar sobre quando a mãe morrera, eles haviam passado na feira de sábado pela manhã e por insistência dela compraram um coelhinho. Disseram ao dono da barraca que cuidariam dele até que ela completasse seu primeiro aninho. Mas infelizmente, Cartola juntou-se a ela muito mais cedo, dividindo o berço e toda a sua infância.

Todos achavam aquilo meio esquisito, uma criança criada com um coelho. Mas ao começarem a perceber as mudanças no comportamento do pai, perceberam que a mãe tivera mesmo uma premonição ao comprar o bichinho. Pois era muito mais digno vê-la crescer com alguém de quatro patas, mas que não as usassem contra ela.

Depois de algum tempo, Alice começara a ajudar o pai com as carnes. Sempre acompanhada de Cartola, que em suas longas conversas aparentava dar-lhe preciosos conselhos. É. Ela conversava com o coelho. E para espanto de todos, ele parecia responder-lhe a cada pergunta. Fato pelo qual, talvez a pequena Alice soubesse tanto sem ao mesmo ter freqüentado algum tipo de escola.

O fato era que, em pouco tempo, e com pouquíssima idade para manusear tais instrumentos, a menina trabalhava com maestria ao lado pai. A principio, todos achavam graça e tinham absoluta certeza de que ela herdara todo o talento da mãe. Até que a afirmativa tomou um tom de temor. E se ela também tivesse herdado o dom do suicídio por engano?

Depois de muitas perguntas e questionamentos da freguesia, o açougueiro teve que ceder e comprar o tal esmeril, pois se tinha que mostrar para aqueles urubus carniceiros que não era culpado por acidente nenhum, teria que começar por algum lugar.

Açougueiro

Durante vários anos, aquela fora à única vez em que o carniceiro havia lhe dirigido à palavra.

— Joga esse bicho fora. Não tá vendo que essa merda morreu.

Teve uma época em que o cheiro de Cartola ficara realmente insuportável, lhe fazendo por vezes acreditar que poderia tê-lo perdido. Mas como? Se ainda mantinha longas conversar com o coelho, seu único amigo, já que o pai trancara-se num grande freezer, tornando-se cada vez mais frio, abrindo sua tampa apenas para visitá-la durante a noite, mergulhado na ignorância que lhe era conveniente, pensando em um dia talvez, fazer com que sua Alice surgisse de dentro — Corpo sobre a cama. Penetra o músculo. Os arranhões são vermelhos como o sangue que lhe corre nas veias. O mesmo sangue. Ou se não, parte dele. Uma parte que ela não quer mais. Uma parte que agora decidira por lavar em breve o chão sagrado, e profanar de vez o local do parto, da fúria que o acaso usou para que ela viesse ao mundo dolorosa e antes do tempo. Foi ensinada desde pequena a abrir as pernas, uma afastada da outra, para sentir o pau-de-amolar como seu pai costumava chamar — dessa outra, que para sua infelicidade tomara seu lugar.

Ele a deixava sempre sobre o colchão. Mas naquela noite, a jogou sobre o tapete e, agarrando-lhe os cabelos, não lhe disse nada, apenas ergueu a tampa lilás da caixa de Cartola e lhe forçou a olhar o corpo seco, de pelos amarelados e que pendiam quatro pontos de sorte. Naquele instante, ela percebeu que seu amigo havia realmente lhe deixado, pois lhe dera um último conselho. Um conselho que havia recebido de sua mãe no dia do acidente.

Sábado era sempre o dia mais agitado, o que levava o açougueiro a separar com antecedência os pedidos deixados no dia anterior pela freguesia. Sempre com a ajuda de Alice, ele embrulhava as carnes e ela as distribuía na seqüência da fila, que ao cair da tarde desaparecia magicamente. E este fim de semana não fora diferente, apesar de ninguém ter estranhando a ausência do porco, já que Alice entregava os embrulhos marcados com os pedidos rapidamente.

As pessoas saíam tão apressadas para suas casas, que não percebiam a pequena placa — PASSO ESTE IMÓVEL — deixada por uma tia distante de Alice, que ao receber um telefonema seu, informando sobre o desaparecimento do pai, veio busca-la no fim da noite.

Alice descobrira na noite anterior que realmente havia herdado o dom do suicido, mas o usara de forma sábia, devolvendo o pai a pobre Alice do outro lado, que como a freguesia, não fazia idéia da carne que estava levando.

Tonico Senna
Enviado por Tonico Senna em 10/01/2006
Reeditado em 29/04/2006
Código do texto: T96957