"Um Grande Amor Virtual" =Conto=

Tudo começou por acaso. Ele publicou uma poesia em um site qualquer. Ela leu, gostou e comentou. Ele respondeu amavelmente ao comentário dela, agradeceu efusivamente e esqueceu-a. Dias depois ela voltou a comentar uma poesia dele e ele já a chamou de “cara amiga” ao agradecer pelo comentário. Algumas poesias e alguns comentários depois, alguns “meu querido poeta pra cá” e “minha querida e especial leitora pra lá”, tornaram-se amigos virtuais.

Algumas dezenas de e-mails trocados e tornaram-se, de comum acordo, namorados virtuais. Tornarem-se amantes virtuais demandou um pouco mais de tempo. Amasiados virtualmente, ela disparou a fazer confidências. Contou a ele detalhes de sua vida, fatos marcantes, coisas inesquecíveis, coisas incríveis, pecados inconfessáveis, mas sempre dizendo que o fazia pela absoluta confiança que depositava em seu querido poeta. Aquele homem tão sensível e compreensivo.

Ele gostava de “conversar” com ela pelas janelinhas do Gmail. Dava-lhe atenção a ponto de algumas vezes chegar a atrasar-se para outros compromissos. Gostara das fotos que ela lhe enviara e nutria a esperança de um dia conhecê-la pessoalmente. De um dia se darem, de verdade, todos os muitos longos beijos e abraços mandados via internet.

Em uma madrugada, já morto de sono, despediu-se dela e olhou pela janela do apartamento. Riu da coincidência:

- Engraçado...é a terceira vez que me despeço da Alessandra e na mesma hora a vizinha sai do computador. A ricaça aí da frente, pelo jeito, também é internauta viciada. Toda vez que estou escrevendo ela também está lá digitando.

Desligou o computador, baixou a persiana e preparou-se para dormir. Ou melhor, para tentar dormir. Fazia tempo que os problemas financeiros o mantinham acordado noites a fio, apenas cochilando de vez em quando e saindo estremunhado da cama pela manhã.

- Minha nossa...Se continuar assim vou acabar ficando maluco...Tenho que dar um jeito de limpar a barra antes que enlouqueça de preocupação...Essa vida é uma merda mesmo...Enquanto a bacana aí do prédio da frente ganha uma “Pajero” de presente de Natal eu estou sujeito a perder meu pau-velho por falta de pagamento de IPVA. Só o que a madame vai pagar de IPVA da “Pajero” dá pra comprar um carro igual ao meu. Eta mundo injusto, sô...

No dia seguinte ele entrou no Gmail e viu que a luzinha verde à frente do nome de Alessandra estava apagada.

- Ainda não chegou...Vou ter que esperar um pouco.

Tendo que esperar, foi à janela fumar e viu quando a dona rica sentou-se à frente de seu computador, em seu escritório caseiro de altíssimo luxo. Logo depois a luzinha verde estava acesa à frente do nome de Alessandra.

- Coincidência de novo...Eu saio do pecê à noite, a madame sai. Eu entro no pecê, a madame entra e a Alessandra “aparece”. Já estou achando que é coincidência demais...

Reatou a conversa da noite anterior com Alessandra e alguns minutos depois pediu licença a ela. Disse que teria que ir até a padaria buscar cigarros e alguma coisa para um lanche e que voltaria em mais ou menos quinze minutos. Levantou-se e viu que a vizinha se levantara também.

- Outra coincidência?

Quinze minutos depois entrou novamente em contato com Alessandra e a vizinha voltou a sentar-se em frente ao micro.

- Só mais um teste e terei certeza se ela é a Alessandra.

Digitou: “Minha querida Ale, infelizmente terei que sair de vez por hoje. Acabo de receber um telefonema de São Paulo. Minha mãe não está muito bem e pede que eu vá lhe fazer companhia. Na verdade o que ela vai querer é que eu chame o medico ou a leve a um hospital. Nessas horas só eu sirvo pra ela. Um beijão e até amanhã”.

Esperou pela resposta de Alessandra e desligou o micro. Um minuto depois a vizinha se levantava também.

- É ela. Agora eu tenho certeza.

Todas suas conversas com “Alessandra” estavam gravadas e arquivadas. Alessandra, agora ele tinha toda a certeza do mundo, era Letícia, a rica vizinha do prédio da frente. Vizinha de condomínio, mas moradora em um dos apartamentos maiores, de condomínio mais caro e maiores mordomias. Ele riu alto.

- Putz!! Quanta ingenuidade...A mulher me entregou a vida dela de bandeja sem jamais poder imaginar que somos vizinhos e que eu a vejo todos os dias pela minha janela. Vejo-a nua, vejo-a arrumando-se pra sair, vejo-a cuidando do filho, recebendo o marido à noite, andando pelada pela casa durante a manhã toda em dias de calor, e além disso sei muito sobre a vida safada dela. Está na minha mão e nem sonha com isso...Escancarou-se na internet do mesmo jeito que se escancara em casa. Como se ninguém pudesse vê-la pela janela de vidro transparente...]

“Alessandra” passou a receber declarações de amor virtual cada vez mais quentes, mais entusiasmadas, mais calorosas e envolventes e a entregar-se cada vez mais dizendo-se sempre mais e mais carente de carinho, afeição, amor verdadeiro, de uma alma gêmea que soubesse apreciar sua imensa sensibilidade. E começou a fazer poesias também e pedir a ele que as criticasse “com toda a severidade e competência de um grande poeta”.

Ele “adorou” as bobas poesias dela e inflou seu ego de “escritora entusiasta”.

Estavam em lua-de-mel virtual e ele, do terceiro andar, a vigiava no segundo andar do prédio em frente.

Durante a lua-de-mel virtual ele assaltou diversas vezes a caixinha de correios dela durante a tarde, violou sua correspondência, anotou todos os dados que lhe interessavam, recolocou tudo no lugar e passou a preparar o golpe final.

Não queria dinheiro demais. Apenas o suficiente para colocar em ordem suas contas de condomínio, IPVA, IPTU e o cartão de crédito estourado. Nada que chegasse a muitos dígitos.

Quando sentiu que era o momento certo ele enviou um e-mail a Alessandra chamando-a pelo nome verdadeiro e fornecendo seu endereço completo.

Ela respondeu assustada e ele mandou outro especificando maiores detalhes sobre a vida dela e alguns detalhes comprometedores da vida do marido. Coisas que se caíssem nas mãos certas poderiam levar o camarada à cadeia e a família dela à ruína.

Ela se apavorou e implorou. Percebendo que ela implorava, ele decidiu pedir cem mil reais em lugar dos cinqüenta mil iniciais.

Combinaram que ela deixaria uma maleta com a quantia entre o carro dela e o do marido e ele a pegaria em uma hora qualquer de uma determinada madrugada. Se ele percebesse alguma tentativa de golpe por parte dela seriam disparadas denúncias para várias autoridades e para importantes órgãos da mídia. Ela garantiu que agiria do jeito que ele queria. Sem truques.

Na madrugada acertada ele recolheu a maleta na garagem do condomínio, certificou-se que não era visto nem vigiado por câmera alguma, e subiu para seu apartamento.

Dentro da maleta preta encontrou uma maleta mais fina feita em metal. Uma linda peça, mas com um segredo ao lado da fechadura.

- Filha da puta!! Está trancada essa porra!!

Ao olhar para o micro viu que havia uma nova mensagem na caixa do Gmail. Abriu-a.

- Meu querido poeta, a maleta está trancada para que você tenha maior satisfação ao ver o seu dinheiro. O segredo é minha data de nascimento, que você já conhece. Coloque meu dia, mês, e ano, em seqüência no segredo, e ela se abrirá no ato.

- Desgraçada...Ela sabe que eu só sei o dia e mês, a filha da puta. Mas vou no chute: ela deve ter uns quarenta e dois anos, por aí. Vou procurar nos anos próximos ao meu cálculo...

Girou o primeiro par de números, 1 e 8, o dia do nascimento dela. Digitou outro par, o mês de nascimento dela, 10 –outubro e...e quando ia digitar o ano que calculava uma idéia lhe passou pela cabeça:

- E se essa maleta for um truque? Pra que a maleta de metal se o dinheiro podia ter vindo na sacola preta? Tem treta nisso aí...

Sentou-se frente ao micro e digitou uma mensagem para Alessandra avisando que estava desconfiado da maleta de metal e que não a abriria até ter certeza de que não corria riscos.

A resposta veio rápida:

- Riscos, meu querido? Você já corre todos. Está praticamente morto. A maleta é um rastreador que eu e meu marido usamos pra te localizar. Abra a porta de seu apartamento, meu caro vizinho, e veja quantos homens estão aí, armados, esperando que você tente sair. Depois de seu enterro, assim que possível, pedirei a alguém que pegue a maleta de volta. É de estimação, poetinha querido. Não demore muito a abrir a porta. Não dê a eles o trabalho de arrombarem pra te liquidar. Seja cooperativo, querido. Ps: Meu marido adorava ler nossas conversas “calientes”. Está até com pena de matar um poeta tão competente e ainda sumir com o computador dele. Fazer o que; né?

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 13/05/2008
Reeditado em 20/01/2010
Código do texto: T988268
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