Desses Vinte Anos...

Capítulo I – (Um) Fim.

“Desses vinte anos,

nenhum foi feito pra mim (...)”

Legião Urbana – Mais do Mesmo

O vitrô embaçado escondia a rua deserta e revelava velhos rabiscos, assinaturas e identidades e códigos secretos há muito abandonados.

Do lado de dentro, o cenário, ao menos nos últimos dois anos, pouco variava; uma cama desarrumada e algumas roupas pelo chão, uma escrivaninha antiga, com marcas de cigarro e xícaras de café e sobre ela um computador que quase sempre mostrava uma daquelas folhas virtuais cheia de caracteres; Lou e suas olheiras avermelhadas e aquele tectec incessante noite adentro.

Mas hoje é diferente. Tudo está devidamente em ordem. Cama, gavetas, tudo. Na tela do PC, apenas três letras: F-I-M. Um dia chegaria, e estava preparado.

Fazia muito frio, então vestiu um suéter e um capuz, pegou o cachecol e o maço de cigarros antes de abrir a janela e sentir o toque gélido da brisa noturna e ver a densa neblina que pairava. Jogou a mochila do lado de fora e foi logo em seguida.

Caminhou a passos largos e decididos e olhou para trás ao menos uma vez antes de dobrar a esquina e notar a silhueta de alguém em meio à névoa. A pessoa acendeu um isqueiro com um dos braços para o alto, provocando um jogo de luz interessante na penumbra, e enquanto Lou avançava meio inseguro, sua voz rompeu o silêncio: “Feliz Aniversário, Lou!”, e apagando a chama avançou alguns passos. “É ou não é uma bela madrugada pra botar o assunto em dia??”

Capítulo II – Chute na boca.

We're just two lost souls

swimming in a fish bowl, year after year (...)

Wish you were here - Pink Floyd.

“Festa surpresa Gus? Tsc, e pelo jeito só veio você, o que, confesso, me assusta um pouco e me surpreende muito” disse Lou erguendo as sobrancelhas.

Brincando com o zippo na mão e sorrindo de lado, Gus respondeu, “Pois é, depois que tudo aconteceu, cada um fugiu pra um lado, cada qual à sua maneira. Restaram poucos. Eu até tentei encontrar o gordinho kickboxer, mas até ele parece ter sumido”. Lou fazendo um muxoxo, “Você nunca esquece essa merda, não é? Seus dentes já estão perfeitos e eu acho que já paguei esse karma, então deixa a porra do gordinho descansar em paz, vai”. Gus acenou com um gesto e Lou continuou, “E falando em karma, o que realmente te trouxe aqui hoje?”, indagou, sacando um cigarro.

Com um movimento ensaiado, Gus acendeu o isqueiro e o ofereceu, Lou pegou. “Antes de se exilar em casa, você disse que tinha começado aquele lance, de contar nossas histórias, e disse também que esse era o projeto da sua vida e que quando concluísse ia sumir no Mundo (ou Do Mundo) e blábláblá e conhecendo você e seu gosto por simbologias e todo esse papo, eu tive certeza que escolheria esse dia pra fechar esse ciclo”, Lou só observava atento e surpreso, enquanto Gus continuava disparando, “E, cara, eu não sei se acho tudo isso genial ou doentio ou os dois, mas sei que não queria perder o gran-finale disso tudo”.

Lou tragou longo, “Okay, Gus, Okay”, devolvendo o isqueiro, mas o amigo negou, “Fica com isso, parei de fumar, e me traz lembranças desnecessárias”, “Além do que, vai ser uma longa caminhada, não vai?”, disse, colocando a mão no ombro do amigo, e Lou meio defensivo, fez menção de ir para trás, mas ficou, “Não sei se é o melhor à fazer”, e completou, “Eu sei que você sempre foi o tipo selfish aqui, mas, eu lamento, talvez seja minha vez”, e passando pelo amigo, disse sem se virar, “Me desculpe”.

“Não por isso, Lou, nem fodendo, você acha que tem que carregar todo o peso do que ocorreu nos seus ombros, e logo você, que sempre foi o elo entre todos, que sempre brigou pra que ninguém ficasse de fora” disse enquanto seguia Lou, que mantinha os passos. “Eu posso te perdoar por ter agitado aquele maldito gordo a me chutar enquanto eu estava indefeso, eu sei como você se sentiu mal depois, mas nós éramos crianças, aquilo já cicatrizou” e segurando Lou pelo braço, sentenciou, “Eu não acho isso justo, essa merda toda de eremita e poeta decadente e solitário, então, põe na sua cabeça que você não está sozinho e vê se pensa duas vezes antes de virar as costas agora, eu posso ter um surto, e querer expiar algumas velhas mágoas”, e olhando fundo nos olhos, “Mas eu prefiro um pouco de nostalgia, cara, eu preciso muito disso”.

Em seguida, na rua quase deserta e coberta de neblina, ouve um lapso de silêncio, mas se talvez alguém passasse perto o bastante, sentiria uma espécie de eletricidade estranha, uma aura que combinava um certo vazio e ao mesmo tempo uma grande empatia.

Veria algumas lágrimas e ouviria alguns palavrões, e dois caras feito duas crianças, entre riso e choro, gesticulando e caminhando na mesma direção. Novamente.

(...)

*continua...