O Ribeirão da Penha

Ao caminhar pela rua da minha casa, apanhando as quase maduras acerolas dos três pés plantados na calçada, começei a pensar em como as coisas mudam. Começei a pensar nas mudanças todas que a vida nos apresenta, e que muitas vezes, só nos damos conta depois que tudo já está completamente diferente.

Quando criança brinquei muito na beira do ribeirão. Conhecia a extensão do rio, desde a Ponte Nova, na divisa entre Itapira e Lindóia, conhecido como Rio do Peixe (aliás, Penha do Rio do Peixe foi o primeiro nome dado a hoje Itapira), que desce desde a cidade de Socorro, na serra da Mantiqueira, a 40 km de Itapira, até virar Ribeirão da Penha, já nas proximidades do bairro onde resido, até desembocar transformar no majestoso, misterioso, largo, profundo e assustador Rio Manso, que muitas vidas de desavisados já levou, que sem saber que manso é apenas no nome, e as águas calmas são apenas um convite ao mergulho, muitas vezes, sem volta.

Voltando ao Ribeirão da Penha, tínhamos, eu e os amigos que sempre me acompanhavam nas aventuras à beira-rio, de batizar as diferentes regiões da extensão do rio, desde a ''Ponte'', por onde o rio avançava por debaixo da rodovia que liga Itapira ao Circuito das Águas, passando pela ''Bomba'', lugar temido, a exemplo da ''Ponte'', pela profundeza, onde muito antigamente funcionava uma bomba de captação de água para provavelmente abastecer os sítios da região. Mais abaixo uma nova ponte, esta agora reformada, com asfalto por cima, que sempre foi ponto obrigatório para os pescadores, por conter grande qüantidade de cardumes de lambaris. Alguns kilômetros abaixo, começava a região que era ''dominada'' por nossa turma. Pelo menos em nossas cabeças, toda a extensão a seguir era nossa propriedade. E ficávamos muito bravos quando chegávamos ao local e outras pessoas estavam por lá. Bravos a ponto de expulsá-los, claro, quando se tratavam de crianças menores que nós. O ''Arvão'', local assim chamado devido a um enorme ''Jacarandá-Brasil'' que cobria todo o leito do rio, majestosamente fixado entre o barranco e a água, sendo possível subir por seu tronco até o galho mais alto, onde estava instalado uma corda, por onde somente os mais ''fortes, bravos, mais velhos e corajosos'' - nossos irmãos, se arriscavam a saltar, mergulhando de cabeça, e nadando, imponentes e vitoriosos para a margem, enqüanto olhávamos espantados - e cheios de orgulho, nossos manos e amigos ''crescidos'' fazerem verdadeiras acrobacias no espaço entre a corda e a água. Um pouco mais abaixo, o temido paraíso, conhecido até os dias de hoje como ''As Pedras''. Neste local, existia uma enorme ilha formada por não menos gigantes rochas, bem no centro do rio. Ao lado, rochas menores formavam pequenos riachos e lagos, onde era possível ver os cardumes de peixinhos minúsculos, de passagem, e cascudos, aqueles peixes que usam pra ''limpar'' aquários, já que se alimentam de limbos e algas, refugiando-se embaixo do barranco, onde só o mais corajoso enfiava a mão para tentar apanhá-los, já que por conter muitas pedras, também continha vários tipos de caranguejos de água-doce. Após as águas passarem pelas rochas, formava-se pouco mais abaixo uma forte correnteza, onde novamente, somente os mais bravos entravam, e assim, atravessavam o rio, e se exibiam do outro lado, para nós, desconhecido, triunfantes. Cerca de 800 metros abaixo deste local, existia um verdadeiro paraíso. A ''Prainha'', assim batizada devido a uma grande extensão de areia, daquelas bem branquinhas e limpas, e a parte mais rasa do ribeirão, onde conseguíamos atravessar tranqüilamente para o outro lado, que mesmo assim, continuava desconhecido para nós, devido as cercas dos pastos existentes nas propriedades. Abaixo da ''Prainha'', o rio fazia uma curva, o mato se fechava e somente os pescadores conheciam o local. A próxima parada ficava a pelo menos três ou quatro kilômetros rio abaixo, onde batizamos de ''Pântano'', pois o mato começava a se abrir ali, e devido a chuva e/ou a cheia do rio, que era constante, formavam-se lagoas, onde, em nossa infantil, porém fértil imaginação, eram habitadas por jacarés, crocodilos, sapos gigantes, cambórgias pré-históricos e, no mato ao redor, era preciso muita atenção, para não ser mais uma vítima do cruel ''Leão do Pântano''. Só pisávamos naquele local quando estávamos com os ''mais grandes'', ou quando era preciso refugiar-se dos homens da olaria (gente simples, amigável, mas em nossos olhos, índios canibais e ''homens do saco'', que moravam d''outro lado do rio. Um kilômetro abaixo, se não me falha a memória, por volta de 1993, em meus 11 anos de idade, chegaram os caminhões trazendo a madeira, a os peões da prefeitura desbravaram a mata fechada para construir a ''Pontinha'' - que daria o nome ao novo local de diversão e guerra de argila, para finalmente os canibais e os homens do saco, que só depois entenderíamos que eram apenas trabalhadores das cerâmicas e olarias, poderem atravessar o rio sem se molhar. Sentado na calçada, comendo acerola, ri muito quando me lembrei do inferno que fazíamos da vida dos ''trabalhadores da pinguela'', que por nossa culpa, levariam mais de mês para finalizar a obra. Para construir a ponte por cima do rio, fizeram outra por baixo, improvisava, quase batendo n''água, para poderem afixar os tocos no barranco. Era maravilhoso ficar deitado na ponte, apenas com os braços submersos na água barrenta, devido a movimentação no local, enquanto os pobres homens tinham que saltar sobre a molecada, carregando tábuas e fazendo grandes malabarismos para não cair dentro do rio. Com certeza, não nos mataram porquê sempre haviam populares observando o desenrolar da obra. Caso contrário, tenho quase certeza de que não estaria aqui, hoje, escrevendo estas memórias.

Um pouco mais abaixo encontrava-se o primeiro sinal da maldade humana, do relaxo da sociedade. Um cano de esgoto abria a primeira ferida no ribeirão, descarregando nas águas turvas as águas que escorriam dos quintais recém lavados. Tudo bem, menos mal por não ser esgoto, mas mesmo assim, junto com a água com sabão, sempre chegava ao rio os detritos que a enxurrada encontrava pelas sarjetas e bueiros, antes de desaguar no rio. Foi justamente neste local que contraí, acho que em meados de 94, a Hepatite A, que segundo o médico, foi causada "com certeza por ficar brincando na boca do esgoto". Assim era conhecido o local: ''Boca do Esgoto''. Porém, não dávamos a mínima. Cerca de 500 metros abaixo, batizamos um local de difícil acesso, após construir uma escada no barranco, com enxadão e bambús, de ''Pedras II'', por conter algumas rochas, bem menores que as da ''Pedras original'', mas que tínham a superfície reta, e por isso, era possível ficar sentado, pescando bem de perto no pequeno poço que se formava embaixo do bambuzeiro. Quantos lambaris e mandis naquele lugarzinho só nosso.

Após esse bambuzeiro, o rio fazia um ''S''. A primeira curva ficou conhecida como ''Prainha II'', bem menor que a original, a exemplo das ''Pedras'', mas também era limpo, e antes de chegar ao local fundo, outro que era dominado apenas pelos mais velhos, existia o que chamávamos de ''Área de Pensar'': uma prainha de areia mais grossa, onde passava apenas um fio de água, coisa de um palmo, onde ficávamos sentados durante horas, falando bobagens, e muitas vezes, invejando os garotos mais velhos, pulando das árvores diretamente na correnteza, que levava a um ''poço'', conhecido com o paraíso dos peixes pelos pescadores. E não é história não. Era jogar a isca e puxar de volta: lá vinha mais um lambari ou um kará para a tuia. Mais abaixo, na segunda curva, conhecido mesmo com ''Curva do Rio'', o barranco ficava alto, e pra descer pra perto da água, era preciso passar entre as árvores, que em determinadas épocas do ano, ficavam povoadas por aquelas aranhas de pernas longas, porém, que nunca nos fizeram mal. Mesmo assim era aterrorizante.

Bem quando o rio fazia a curva, formava-se um poço, que era muito idolatrado pelos pescadores, já que não havia correnteza, e a fartura de peixe era enorme. Não era raro fisgar uma piranha ou um peixe mais exótico. Abaixo deste local, mais uma vez, apenas nossos bravos irmãos mais velhos conheciam. O Rio seguia seu curso, até passar por debaixo da rodovia que liga Itapira à divisa com o estado de Minas Gerais, na cidade de Jacutinga. Conhecia o rio neste trecho apenas de cima da ponte: as fortes correntezas arrastaram muita gente nese local. Gente que nunca mais voltou.

Alguns anos mais tarde, já ''mais homem'', começaria a descer o rio, desde lá de cima, da primeira ponte que falei, da Itapira-Lindóia, até lá embaixo, na Itapira-Jacutinga, ora com o ''peneirão'', voltando pra casa com a tuia lotada de karás, lambaris, tuviras, cascudos, caranguejos, e outras espécies, ora com bóias improvisadas com câmara de ar de caminhão.

Nas margens deste rio, construí, sempre em parcerias com grandes amigos, armadilhas que nunca prenderam os canibais, muito menos pegaram leões ou crocodilos. Construímos barracas, assamos peixes com batata no fogo feito com gravetos, marcamos as árvores para indicar que o território tinha dono, armamos redes de pesca, e soltamos todos os peixes, com medo da guarda-florestal, e com muita pena das mães dos lambaris, que nunca mais iam ver seus filhos se os levássemos pra casa e iam transbordar o rio de tanto chorar. Acredito piamente que se escavar hoje em muitos locais dos nossos ''acampamentos'', encontrarao vestígios dos nossos ''talismãs sagrados'', que garantiam nossa permanência no local, um tipo de visto fornecido pela Mãe-Natureza, além de nossas lanças, anzóis, garfos e facas, e, confesso avermelhado, nossas revistinhas tipo ''catecismo'', com mulheres e homens fazendo nojeiras e caras de dor.

Nas margens do Ribeirão da Penha vivi momentos de alegria, ao retomar a amizade com o melhor amigo, interrompida devido a uma briga de escola, daquela tipo "Te pego na rua" e momentos de tristeza, ao não conseguir salvar a pombinha que achei caída na beira da água, com marca de um tiro certeiro de estilingue.

Momentos únicos, que sei que nunca vão voltar. Momentos de muito medo, ao avistar o Sr. Alfredinho (in memorian) sair correndo do meio da plantação de fumo de corda, com a temida espingarda de sal, gritando enfurecido que novamente estávamos em sua propriedade. E em vez de atacarmos os pés de laranja, mexerica ou goiaba, íamos direto colher as bacaiúvas que rolavam pelo chão. Acho que nunca comemos nenhuma.

Nas águas do Ribeirão da Penha achei bolas novinhas em folha, relógios, sapatos, e com muito nojo e curiosidade, preservativos usados, que fazia questão de tirar da água com um pedaço de pau ou algo parecido, para os peixes não comerem e assim, adoecerem e falecerem.

E da minha rua era possível perceber, pelo barulho na noite quieta, depois de algum dia de forte chuva, que o rio havia transbordado novamente. E uma vez, suas águas avançaram até a quadra de futebol da vila. Todo mundo nadou na quadra!

E durante as cheias, mais uma vez olhávamos espantados, os ''mais velhos'' saltarem das árvores, na forte correnteza e turbilhões d''água, que chamavámos de ''rebojo'', quando a correnteza forma verdadeiros vulcões dentro do rio. Mas eles podiam, e nunca se deram mal. Porquê eram simplesmente nossos heróis. E eu, orgulhoso via meu falecido irmão mergulhar no rio, muito mais cheio que o normal, dar longas braçadas, chegar ao outro lado e gritar vitorioso.

Hoje os perigos são imensos. Além do perigo natural - que, claro, existia também naquela época, mas não sabíamos, ou não queríamos saber, existe o lixo. Hoje o Ribeirão virou riozinho. Em determinados pontos é possível atravessá-lo sem molhar os joelhos. Chegaram as indústrias. Desviaram a ''Prainha'' e canalizaram o ''Arvão''. A humanidade destrói a natureza e chama de progresso. E quando a natureza destrói a humanidade, chamam de tragédia.

Hoje sentei-me na calçada, e, devido as chuvas destes dias, mais uma vez pude ver rio acima do normal, invadindo todo o pasto próximo às margens.

Hoje, meu coração sentiu o cheio do rio. E meu coração transbordou mais junto com ele.

Na margem deste rio, ainda hoje é possível encontrar nossas inscrições. "Os Kobra Kan". E como disse no começo deste texto, tudo muda. Tudo mudou. Hoje é tudo diferente. Não existe mais os pés de goiaba, nem mesmo o Sr. Alfredinho está lá, nos caçando. Não existe mais o pântano, nem a corda na árvore. Tudo mudou. E a gente nem percebeu. Foi muito rápido, que a gente nem percebeu.

Hoje, sentei-me na calçada. E chorei.

06/01/2006

01h33m