Sobrevivemos

Julho de 2001. Saímos, de casa, eu e mais dois amigos, por volta de uma hora daquela tarde ensolarada de sábado. Tão ensolarada que as nuvens não demoraram a se romper, jorrando sobre a terra quente suas águas refrescantes. Não fazia muito tempo que estavámos caminhando, cerca de dez minutos. Diante da opção entre seguir adiante e voltar, escolhemos a primeira. Atravessamos a 'pinguela' sobre o Ribeirão da Penha. Deixamos pra trás as casas e o asfalto. A partir deste ponto, eram só chácaras, mato e muito, muito barro no chão de terra vermelho com pedregulhos. Caminhamos durante duas horas, até chegar a uma pequena capela beira-estrada, onde enchemos os cantis de água potável na pia do rancho de festas do local. Era a última parada onde se encontrava água 'boa de beber'. Deste ponto em diante, o mato se fecha, a estrada some, aparecem as trilhas, cercas e porteiras, e água, só da bica, no pé da montanha. Nesta bica, enchemos as garrafas plásticas de água. Água esta pra ser usada para apagar o fogo, lavar as mãos, e outros fins. E começa neste local a parte mais cansativa e esgotante da aventura: a escalada da montanha. Atravessamos a porteira, com diversos avisos proibindo a caça e pesca na área. E subimos. Subimos até a metade do morro, onde nasceu uma árvore, que cresceu acompanhando a íngride subida. É possível deitar-se em seu tronco, sem precisar subir na árvore. Deste ponto já é possivel avistar parte de Itapira, principalmente a região onde moro. A subida é exaustiva, e o esforço e esgotamento aumenta pelo fato de estarmos com certo peso nas mochilas, que na volta não mais farão parte de nossa bagagem. Há tempos combinávamos de desbravar a montanha, batizada por nós de Monte Krosty. Completamente despreparados, de última hora, na sexta feira a noite, decidimos que no sábado iríamos realizar nosso desejo. Não tínhamos barracas, nem saco de dormir, nem nada. Para nos acomodar no alto da montanha, levamos apenas cordas, plástico tipo lona, cobertores e blusas. Por volta das quatro e meia da tarde chegávamos ao pico da montanha, exaustos, porém triunfantes. Gritamos, nos abraçamos e deitamos no mato, que nos mostrava que foi certa a decisão de levar um enxadão, daqueles pequenos, de jardim, conosco. Após nos refazermos um pouco da caminhada, começamos a limpar o local. O sol não demoraria a baixar, e tínhamos muito trabalho pela frente. Enqüanto um capinava o mato, fazendo uma clareira, outro buscava lenha para a fogueira. Por sorte, a chuva havia sido rápida, e não chegou a enchacar as madeiras que encontramos pelo chão, talvez protegidas pelos imensos eucalíptos que povoavam toda a extensão da montanha. De lá de cima, do topo, onde encontramos um marco datado de 1971, onde lê-se "Itapira - São Paulo - CPFL - Altitude: 1.098 Mts." Concluímos que o local deveria ser de propriedade da Companhia Paulista de Força e Luz do Estado de São Paulo. Lá do alto, a vista, agora sim, era magnífica. Avista-se quase toda a cidade. Com o binóculo podemos identificar até mesmo nossas casas, já que a montanha não é tão longe de nossas residências. Aliás, da janela da cozinha, da sala, da varanda, e de nossa rua, é possível avistar o Monte Krosty, hoje, infelizmente, totalmente desmatado. Avistamos o Parque Juca Mulato, tido com um dos pontos mais altos da cidade, que homenageia nosso iluste poeta, Menotti Del Picchia*. A a visão dos sítios, lagos, fazendas, estradas, enfim, da natureza e simplesmente deslumbrante. Apanhamos algumas madeiras mais longas, que usamos para fazer a estrutura da barraca. Ficou uma beleza. Porém, a lona que levamos foi suficiente apenas para a cobertura, deixando os lados abertos. Pouco adiante, cerca de um metro e meio a frente, cavamos um buraco, largo e raso, cercamos de pedras, e preparamos a fogueira. Um poco mais ao lado instalamos o fogareiro, em um fogão improvisado também com pedras. Quase no fim do terreno plano, fizemos um banco com um tronco caído, o que já dava os primeiro sinais de que um homem com um machado ou uma serra tinha passado por ali. E sentamos. A noite começava a cair. O tempo estava limpo, e o céu sem nuvens, parecia mais estrelado que nunca. As luzes da cidade fez um amigo, Fábio, conhecido como Nébrio, exclamar: "Como é lindo". Eu e o outro amigo, Rodrigo, apelidado Dégo, concordamos. Abrimos um vinho tinto, brindamos e começamos a procurar os pontos da cidade que conhecíamos. Avistamos além do Parque Juca Mulato, a Praça Bernardino de Campos, a qual identificamos pela torre da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Penha. Vimos também a Praça da Árvore, o ponto mais alto de Itapira, localizado em zona urbana. Bebendo e cantando, acendemos o fogareiro para preparar o jantar. Salsicha assada, espagueti e linguiça calabresa. O frio começou a chegar. Passava das onze horas da noite quando Dégo sacou de sua mochila um litro de conhaque de alcatrão. Tremíamos de frio, mesmo todos estando bem agasalhados. Sentamos todos ao lado da foqueira, que parecia não dar conta de nos aquecer. Após três litros de vinho, e um de conhaque, Dégo, provavelmente 'amparado' pela bebida, parecia não dar importância nem ao vento, nem ao frio. Ventava muito, os gigantes eucaliptos pareciam se curvar sobre nossas cabeças. duas horas depois, o único relógio disponível parou de trabalhar, e perdemos a noção do tempo. Com os barulhos e ruídos dos ventos e do mato ao redor, veio o medo, e a previsão de que a lenha disponível não iria durar mais que uma hora. Faroletes e lanternas em punho, saímos em busca de madeira. Tivemos que descer cerca de trezentos metros para conseguir encontrar uma árvore seca, já sem folhas. Arrastamos-a para cima, e seu grosso tronco parecia garantir o fogo aceso até o amanhecer. O frio estava muito intenso. Um termômetro de mercúrio acoplado em um facão, equipado também com bússula e abridor de garrafas e latas, indicava onze graus. Itapira é por natureza uma cidade calorosa, quente a valer. Mas naquele ano, e mais precisamente naquele dia, parecia que tudo conspirava para que a temperatura baixasse a cada minuto. Não é novidade, muito menos inverdade, que baixas temperaturas fazem com que a gente se sinta muito mal. E isso começou a afetar todos nós. Não havia mais a possibilidade de chuva, por isso retiramos os plásticos que cobriam a barraca, dividimos, e nos enrolamos, deitados. Ninguém falava uma palavra. Não estávamos com luvas, e todos os três relatavam não estar sentindo os dedos da mão. Tremíamos de cima a baixo. Não tínhamos a mínima idéia da hora. O pequeno rádio de pilha, sintonizava apenas a rádio local, já que estávamos a cerca de um kilômetro da torre da Clube FM. Pra piorar, a programação não informava a hora. Raramente o locutor entrava no ar, apenas para noticiar os fatos do dia. O pensamento de que era o fim foi inevitável. Os lábios pareciam feitos de pedra, ardendo feito o fogo, que não dava conta de aquecer diante do frio em que estávamos expostos. Usamos os cobertores para forrar o chão, e o pouco que sobrava não dava para a gente se cobrir. O silêncio foi quebrado por um barulho vindo do mato ao redor da clareira. Era aterrorizante pensar que havia mais alguém ali além de nós. Não trocamos uma só palavra. Todos foram se levantando, lentamente, sem fazer barulho. Pegamos os facões usados para cortar a lenha, e acendemos os faroletes. Imóveis, avistamos dois tatus, rodeando as panelas usadas para preparar o macarrão. Soltamos meio sorrisos, aliados a gemidos e calafrios. Imaginávamos que deveria ser entre três e quatro da manhã. O tempo parecia estar parado. Dormir era impossível. Colocamos o resto de madeira e gravetos na fogueira. Tínhamos medo de que a forte ventania levasse alguma brasa para o mato, causando um incendio, e isso nos deixava ainda mais nervosos e desesperados. Dégo conseguir dormir. E e Nébrio permanecíamos acordados. Uma idéia clareou em nossas cabeças. Nos levantamos, devidamente 'embrulhados' no plástico, e deitamos bem ao lado da fogueira. Podíamos sentir a alta temperatura do fogo, fazendo escorrer suor pelo rosto. Isso fez com que o frio se quebrasse em cerca de cinqüenta por cento. E cochilamos.

Quando abri os olhos, percebi que já era dia. Finalmente o sol estava nascendo. A fogueira se despedia em cinzas e brasas. O orvalho da grama ainda era muito gelado. Avistei o Nébrio, ainda deitado, e o Dégo, enrolado no cobertor, sentado no banquinho improvisado. Sentei ao seu lado. Ele murmurrou: "Sobrevivemos". Soltei um sorriso em meio aos dentes, que batiam uns contra os outros, fazendo ruídos. Perguntei se estava bem, e ele respondeu que sim. Nébrio se levantou e juntou-se a nós. Ficamos ali, vendo o sol nascer e começar a nos aquecer. Parecia o fim de uma temporada de neve ou geada. Todos queixavam-se de dores pelo corpo. Concordamos que aquela noite com certeza havia sido a mais fria dos últimos tempos. Arrumamos nossas coisas, apagamos as brasas que restavam da fogueira, e cobrimos com terra. Limpamos tudo. Pegamos os litros vazios de bebida, sacos plásticos e outros detritos, colocamos tudo em uma sacola, para posteriormente descartar em alguma lixeira ou local apropriado. Chegamos a conclusão que talvez a natureza tivesse imposto um teste a nós. E por fim, comemoramos a vitória. Nesta hipótese, com certeza havíamos sido aprovados. Agradecemos a Deus, agradecemos a vida, e nos despedimos da montanha, prometendo voltar mais vezes. E voltamos, dezenas de outras vezes para praticar o camping na montanha, que chamamos de 'nossa'. Porém, com barracas e equipamentos próprios para tal fim. Tiramos fotografias, limpamos as minas de água que brotam ao redor da montanha. Descemos pelo mesmo caminho que havíamos usado para subir. Sentamos no mesmo local onde havíamos parado para descansar no dia anterior. Apreciamos a paisagem, linda e verde. Nos dias seguintes, os jornais da cidade anunciavam que a madrugada de sábado para domingo havia sido a mais fria do ano. Sentamos na calçada da rua, todos os três, e olhando para a montanha, que hoje está totalmente desmatada, concluímos: "Sobrevivemos".

F. Pinéccio

16/01/2005

01:51hrs

* (Leia mais sobre Menotti de Picchia no link http://www.secrel.com.br/jpoesia/mpicchia03p.html)