Morada

1

Ele cavou. Fincou a ponta dos dedos, já feridos pela insistente busca, em mais um palmo de terra. O suor, salgado e morno, desceu-lhe pela testa e saltou do alto da sobrancelha num mergulho veloz. A ardência incômoda — talvez em outro momento — nem ao menos fora notada no cicatrizar da gota salobra sobre o corte no polegar. A insistência das mãos, frenéticas ao escavar, não lhe permitia este simples luxo. Procurava pela salvação. O que um dia fora útil a alguém e que agora lhe encheria a barriga. Apesar de suar como um condenado, algumas partes do corpo, principalmente a testa, percebia o frio arrastado pela névoa. A fumaça rala que cortava as árvores havia engrossado bastante desde que começara o trabalho.

2

O muro era alto. Branco. Como sempre. Uma verdadeira fortaleza. Sempre me perguntei para quê tanta segurança, não estão mortos? Temos que temer aos vivos.

Separei as velas como sempre e dessa vez não foi preciso nem mesmo o alguidar. O camarada que passava não quis nem saber. Havia colocado a velha garrafa de cachaça — cheia d água — em baixo do braço, e com a caixa de fósforos entre os dentes fiz sinal para ele.

— Ô amigo! Dá pra me dar uma forcinha aqui? — O som saiu embolado, mas acho que deu para entender.

Ele veio. Camisa pra dentro, manga comprida. Tinha pinta de malandro. Também, para estar dando bobeira por ali, àquela hora da madrugada, tinha que ser muito malandro. Ou bem otário.

— Sabe o que é? É que eu tenho que arriar um trabalho lá dentro e ta difícil pra caramba de entrar por aqui.

Ele se aproximou um pouco mais.

— Queria entrar pelo portão. Mas o coveiro deve estar dormindo. Não tem ninguém lá. E sabe como é, pelo portão, só acompanhando ou sendo acompanhado, não é mesmo?

Ele não sorriu. Apenas balançou a cabeça levemente. Não fosse a ponta do chapéu de palha refletir a luz do poste com as balançadas, teria achado que além de mudo o malandro era surdo.

Retirei a caixa de entre os dentes e sorri para não ficar sem graça. Afinal, não era uma piada tão ruim assim.

Coloquei a garrafa sobre a quina de uma mureta que antecedia a muralha. Enfiei as velas no bolso de dentro do paletó e pedi para ele firmar as mãos — famosa cadeirinha — para que eu enfim pudesse saltar para dentro da “Joalheria”. Estranho, mas era assim que costumava chamar. Minha mulher teria um troço se soubesse da verdade. Então, inventei a desculpa, desde o dia dos brincos de ouro.

3

Havia trabalhado duro aquela noite. A luva de lã escondia os cortes feitos pelos socos sobre as tampas de madeira. Pois apesar da maioria estar sempre podre, não era fácil perfura-las com as mãos. Não uso pés-de-cabra. Sempre achei um desrespeito. Não sou um assassino. Apesar de que não mataria ninguém com a ferramenta, mas sempre preferi as mãos. Me tornava um artista.

Cheguei as cinco e como sempre passei primeiro na banca do Caverna. Até mesmo um artista precisa pesquisar sobre trabalho, principalmente eu, que trabalho por conta própria. Dei uma olhada na capa, passei rápido pela sessão de esportes e por fim parei onde realmente interessava. Ouvia dizer quando menino que o X marcava o local do tesouro, mas na verdade descobri que não era exatamente assim. Descobri que em nosso tempo, os tesouros são marcados por cruzes, pelo menos os meus. Dei uma olhada nos sobrenomes e vi que havia coisa para mais tarde. Dobrei o jornal ao meio e o enfiei no sovaco da esquerda. Passei pela padaria do Alberto, mas não tive forças para esperar o pão. Pedi duas cavacas, mas ele acabou me dando três. Sabia da minha situação, além do quê, dormiam sobre a vidraça já tinham três dias, tinha que se livrar delas mesmo.

Arrastei a sola grossa de lama sobre o tapete da entrada. Até que valeu a pena catar chapinhas por aí pros moleques. O tapete acabou ficando bom.

Entrei devagar para não acordar ninguém, tarefa difícil já que todo mundo dormia embolado no mesmo cômodo. Saltei sobre a cabeça de um deles e fui parar na cozinha. Atravessei a cortininha de plástico e senti o cheiro do café. A patroa já estava de pé.

— Ta cheirando em...

— Senta e toma um golinho. Acabei de passar.

— Trouxe cavaca. Quer?

— Não, come você. O resto deixa pras criança.

— E o trabalho, conseguiu?

— Consegui — diz colocando um par de brincos sobre a mesa.

— Que isso Círio?

— Me pagaram com isso. Disseram que a joalheria está com o movimento meio fraco e que se eu quisesse o trabalho iam me pagar assim. Daí, perguntei se não podiam me adiantar um vale.

— Hum...

— Então me deram os brincos. Deve dar pra arrumar algum.

— Melhor empenhar. A gente ganha pouco mais ainda é nosso.

— Faz o que tu quiser Maria, agora eu vou dormir que eu não to agüentando mais. Trabalhar naquela joalheria não é mole.

4

O cheiro da cachaça ardeu meu nariz. O bafo forte de cana que vinha do malandro misturava-se com um cheiro forte de perfume barato. Achei na hora que havia algum puteiro ali perto, mas depois, durante um outro serviço, descobri que nem bar existia por lá.

— Eu faço uma troca.

— O quê? — disse tentando entender o que estava acontecendo.

— Eu te ajudo. Mas só se você prometer me ajudar depois que terminar.

— Bom, olha só meu amigo. É só uma cadeirinha, não vai te custar nada.

Ele voltou a ficar mudo. Esperava uma resposta minha. Fosse ela qual fosse. Não aparentava querer me ajudar. Acho até que se não tivesse lhe dirigido à palavra naquele exato momento, ele teria ido embora e me deixado lá plantado de frente pro muro com aquela minha pinta falsa de pai de santo.

— Tá bom, digamos que eu tope. O que vai querer que eu faça?

— Quando você terminar eu digo — falou sorrindo com um ar de satisfação.

— O quê? Sem essa, amigo. Eu não vou ma...

— Fica tranqüilo, não vai precisar matar ninguém. Muito pelo contrário — disse ao trancar um breve sorriso sobre o rosto enrugado.

5

Apesar de suar como um condenado, algumas partes do corpo, principalmente a testa, percebia o frio arrastado pela névoa. A fumaça rala que cortava as árvores havia engrossado bastante desde que começara o trabalho. E apesar de não parar de pensar no que havia prometido ao estranho, cumpriu com o cronograma. Riscara de vermelho sobre a folha suja do jornal, todos os novos tesouros resgatados. Um relógio de ouro. Um novo par de brincos e sete dentes, um deles cravado com uma pequena pedra. Coisa difícil de receber como pagamento, até mesmo por uma joalheria daquelas.

Ele catou suas tralhas e pelo silêncio que pôde perceber, resolveu sair pela porta dos fundos e acertar as contas com seu parceiro de cadeirinha um outro dia, quem sabe? Mas ao chegar aos fundos do cemitério, uma pequena surpresa o aguardava ansiosa.

— De saída? Tão cedo. Achei que tínhamos um trato — disse levantando a aba do chapéu e mostrando-lhe um rosto ressecado pela primeira vez.

— Estava lhe procurando.

— Pois achou. Agora quero que volte e cave a morada de João Cipriano dos Santos.

— O quê? — disse escondendo os pertences, agora seus, nos bolsos do paletó.

— Cave a morada de João Cipriano dos Santos. Não é isso que faz?

— Não... Eu...

— Você prometeu.

— Mas é que...

— Se quiser estar do outro lado do muro outra vez, sugiro que não os desaponte — disse, ao indicar com o queixo, uma multidão parada atrás de Arcírio. — Disse que me faria o favor.

— Sim, mas... O que é que está havendo aqui? Quem são essas pessoas?

— Vizinhos.

— Mas... Porque quer que eu faça isso?

— Precisamos de paz, e você de dinheiro. Não basta?

— Mas... — Arcírio tentava argumentar diante da multidão.

— Abra e verá com seus próprios olhos. Não se tornará um criminoso maior do que já é meu amigo.

— Mas o que quer que eu faça?

— Devolver pro lado de cá alguém que voltou do meio do caminho.

— O quê?

— Acontece. E esse já está aí por uns dois dias, sacudindo, chorando e arranhando as madeiras com os cacos de unha que lhe restaram.

— Você quer dizer que tem alguém vivo lá embaixo? — disse apontando para um dos túmulos. — Alguém que está tentando sair do buraco há dois dias?

O homem de chapéu continuou a encarar Arcírio de uma forma fria e vazia.

— E porque é que você não chamou alguém?

— Não é sempre que aparece alguém aqui na hora em que podemos sair.

— Mas o que você quer que eu faça? Quer que eu mate esse homem?

— Ele já está morto, só não sabe. Já está até enterrado — ele esboça um sorriso.

— Eu não vou matar esse homem. Se quer que ele morra, espere. Não deve demorar muito.

— Não conte com isso. Já ficamos sofrendo por sete dias uma vez e não queremos passar por isso de novo. Além do quê, é o único jeito de você pegar o dinheiro.

— Dinheiro? Que dinheiro?

— O dinheiro com qual ele fora enterrado.

— Dinheiro?

— É. Esse homem é João Cipriano dos...

— Já sei quem ele é.

— Pois então, Cipriano era um homem muito rico, e como não tinha parente, preferiu ser enterrado com o próprio dinheiro. Claro que ninguém soube da decisão, pois o maior medo que Cipriano parecia ter em vida, era o de que alguém um dia, profanasse o seu túmulo atrás do dinheiro. O que duvido muito estar satisfeito com a decisão — ele sorri novamente. Um sorriso curto. Desdenhoso. — Agora vá. Abra e encontre-me depois, na hora em que estiver saindo.

— Como?

— Estarei por aí. É só me chamar.

— E... Como se chama?

— Diocleciano. O da morada ao lado.

6

As flores não eram das melhores. Não iria começar a esbanjar o dinheiro da "herança". Sua mulher mesmo havia concordado em comprar apenas um raminho de margaridas para colocar sobre o túmulo. Apesar de todo o dinheiro que o "tio" havia lhe deixado, não poderiam ficar esbanjando, ou então não conseguiriam comprar sua nova morada, como Arcírio costumava a chamar as casas desde então.

Tonico Senna
Enviado por Tonico Senna em 17/01/2006
Reeditado em 19/01/2006
Código do texto: T99854