Cadê a chave?

Há meses que Totonho arquitetava roubar sua linda Carmélia. Encantara-se com suas duas belas tranças e seus olhos escuros como as densas nuvens de inverno. Seus pais, irredutíveis, negaram o casamento várias vezes.

-Eu vou te roubar amanhã cedinho.

-Se não der certo, adeus nosso desejo.

-Duvido que não dê.

-Esperamos. Vou me aprontar lá pela madrugada.

-Vou parar o carro e lhe dar um minuto para entrar nele. Estamos certo?

-Demais até.

O coronel Justino andava de olho nos dois. Sua filha fora negada com veemência ao jovem. A conversa entre eles, única esperança de desfazer a decisão do velho, havia sido cortada há meses. Roubá-la ser-lhe-ia a última investida atrevida.

A noite estava parda. Nem o grito do grilo se ouvia. A coruja chilreara pouco. O apito do vigilante da rua parecia ter-se ido com a ventania da madrugada que havia sido incomumente forte.

A casinha era a última da rua. Após ela só a estrada de barro entre árvores floridas, prenúncio de uma boa safra de frutas adocicadas. Os velhos dormiam o fim do sono. Ela, acordada e atenta, encostara o ouvido direito na brecha da janela do quarto da frente onde estava de trouxa pronta e sandálias na mão.

Às três e cinqüenta da madrugada ouviu o barulho do carro. Abriu a janela do quarto e confirmou a chegada de Totonho. Era ele. A chuva resolveu atrapalhar a ação dos dois. Chovia forte. Ele parou o carro em frente da casa, desceu rapidíssimo, bateu leve na janela do quarto dela conforme haviam combinado. Algo caiu-lhe do bolso. Na pressa não deu valor. Queria mesmo era levá-la dali para bem longe.Estava pouco se importando que tivesse sido seu dinheiro. Sua maior fortuna era ela.

Com apenas três minutos estavam no carro, sentados e molhados da chuva. O velho notara o barulho e levantou-se às pressas:

-Quem tá aí? É você, Carmélia? Acorda, mulé, aquele cachorro tá roubando nossa fia. Né Carmélia não, é ele.

-Será, véio?

-Que será, que nada, já roubou.

Em frente à casa, eles no alvoroço imediatamente antes da tentativa da fuga:

-Vamos, meu amor, ligue o carro.

-Perdi a chave na pressa. Senti quando caiu do bolso, mas chovia forte. Cadê a chave?

-E agora?

-Esperar o cacete comer!

-Em quem?

-Só em mim, dessa vez. Se eu sobreviver, darei o troco ao tempo, a seu pai e principalmente a você.

Totonho nunca mais viu Carmélia que foi levada por uma tia materna para os confins de um convento no sul de Minas. Nem ao menos as correspondências dos dois se acharam na pressa dos tempos desfavoráveis. A chave do pequenino carro não lhe deixaria mais a memória. A pressa continuou a ser a fiel inimiga da perfeição, e os amores proibidos, castigo para tão lúcidos corações de entes enamorados. As lágrimas da lembrança do que ficou para trás desfeito, toda vez que chove no lugar, diluem-se com as águas das chuvas sempre frias das madrugadas silentes.

Carmélia faleceu aos setenta e oito anos, virgem e apaixonada. Totonho casou-se duas vezes e não pôde encontrar a mulher que sempre enxergou dentro do corpo daquela que a chave não lhe consentiu que fosse roubada.