Um Livro "Haicai" Sem Rumo.

Um Livro Haicai Sem Rumo

Conto

Ela recebera o pacote pelo correio. Curiosa abriu-o com desvelo. Surpreendeu-se ao constatar o que era: um livro de capa dura e páginas consistentes. Estava embrulhado em papel de presente de bom gosto. Teve cuidado para não rasgá-lo. Gostava de colecionar embalagens para presente. Tinha até dedicatória: "Para uma pessoa especial Cem Haicais do admirador Julinho Mendonça." A mulher sorriu. Julinho era dono de uma livraria no principal shopping da cidade. Falou com ele várias vezes e pesquisando assuntos literários percebeu seu interesse. Trocaram até telefones. Pensou em agradecer, ligando. Faria melhor, iria pessoalmente. A tarde estava agradável e ela livre. Era a primeira vez que lia haicai. Um deles intrigou-a: Lua e uivos/Estepe prateada/Nós quase feras ...

Arrependeu-se de ter ido. Ao chegar ao destino não encontrou ninguém na loja. Sempre havia uma funcionária feiosa, mas gentil, atendendo os fregueses na ausência dele. Silenciosa, com um sorriso nos lábios, caminhou para a saleta onde Julinho ficava. O que viu a deixou perplexa. A empregadinha imoral, agachada, chupava o pau do patrão. De calças arriadas, olhos fechados, ele não notou sua presença. Retirou-se às pressas daquele antro. Na rua, indignada, lembrou-se que trouxera o presente na bolsa. Não teve dúvidas em desfazer-se daqueles haicais malditos e sem sentido, jogando o livro numa lixeira...

Um mendigo, vasculhando o latão de lixo, encontrou-o e resgatou-o. Caminhou para um banco de pedra na praia e sentou-se para saborear o sanduíche oferecido por uma alma caridosa. Folheava as laudas do livro com as pontas dos dedos meladas de gordura. Leu: Hora parada/ Soldo sem ganho no mês/Só por preguiça... Do outro lado da avenida alguém o chamou. Atendeu o chamado, esquecendo o livro sobre o banco de pedra...

A senhora, acompanhada de um menino, ia sentar-se quando o garoto chamou sua atenção para o objeto. Ela o pegou, temendo conter figuras proibidas para a idade do neto. Leu os versos: Quadro, parede/Foco galo português/Bela pintura... Dois pivetes, que os seguiam, tentaram roubar a bolsa da senhora sem sucesso. Surrupiaram apenas o livro e fugiram em desabalada carreira. Quadras adiante, por não saberem ler, jogaram-no perto de um bêbado a roncar, deitado na calçada. O livro caiu aberto numa das páginas: Gravatas e nós/ Seu grito sufocante/Garganta sem ar...

O bêbado ao acordar viu-o junto de si. Preferia que fosse uma garrafa de cachaça. Quem sabe conseguiria uns caraminguás com os passantes. De voz enrolada mentiu ser o dono da obra. Vendia-a para comprar pão, não almoçara ainda e o estômago reclamava de fome. Era um artista! Leu em voz alta: Beijos doces/ São muitos e ardentes/ Em tua boca... Músico mambembe interessou-se pela mercadoria oferecida. Quis saber o preço. Mas o bêbado só lhe cedeu dois haicais. O que lia em voz alta e: Um gramofone/Disco empoeirado/Voz e ruídos... O alcoólatra, com o dinheiro obtido, encaminhou-se ao supermercado para comprar bebida. Tentando atravessar a rua movimentada, foi atropelado.

O livro foi parar na calçada suja com o impacto. Ficou ali exposto ao sabor do vento por instantes. Um cão, preso à corrente da proprietária, cheirou-o, levantou a perna e urinou na folha 50: Touro, arena/ Sangue quente jorrando/ Brados, mil olés... Um gari, recolhendo o lixo do dia, varrendo o meio fio, percebeu o pobre livro, abandonado. Estava um tanto decomposto. Cheirava à urina de cachorro. Folheou-o nos haicais que ainda restavam: Bebê charmoso/ Sigla de uma Big Star/Anjo sensual... Ao aproximar de outro limpador o gari disse:

___ Pega aí, nunca te dei nada!

___ Que porra é essa?

___ Um livro, seu analfabeto!

___ Dá aí! Comprei uma estante de segunda mão lá pra casa! Vô pô o bicho pra enfeitá lá! Mas ele tá meio estropiado!

Indo para casa, após pegar duas conduções, o homem sentiu que o livro cheirava mal. A esposa reclamaria por certo! Jogou-o em um córrego. Antes, arrancou uma das páginas para forrar um dos tênis furado: Rosa não é flor/ É sofrida espera/ Ciúmes, morte... Ele foi levado pela correnteza. Num último alento, através de um dos haicai, gemeu: Letras molhadas/ Folhas rio abaixo/ Livro sem rumo... E desapareceu na águas.

Do livro: Baixada Erótica OU Não!-2008-

Pablo Ribeiro

Veja clips do autor no www.youtube.com.br luisalbertodossr