O fim de um motard…

Naquele dia Luís Lopes acordara com uma sensação de mal estar, que de forma alguma era capaz de explicar, ao olhar-se no espelho, quando escanhoava criteriosamente a sua face, de molde a que sua rija barba nascida desde a manhã anterior desaparece-se do seu rosto, reparou que uma profunda ruga se lhe vincara na fronte. – Afinal que tenho hoje? Murmurou entre dentes enquanto continuava a sua higiene matinal.

- Luís vem comer, já estás atrasado querido. Hoje tens de ir de carro, está a chover.

- Ok. Vou já amor.

Luís apressou a sua higiene e vestiu-se rapidamente, ao chegar perto de Marília, sua esposa, fez-lhe um carinho na face enquanto ela lhe dava um jeito na gravata de cor vermelho vivo, que fazia um estranho contraste com a camisa branca.

- Hoje vais muito elegante. - Comentou Marília envaidecida.

- Tenho de ir visitar dois clientes, por isso vou de carro. Espero que o maluco do Dionísio se lembre e não venha doido de mota, pois o fato de chuva amarrota a roupa toda e o patrão avisou-nos que nos queria decentes.

- Espera querido; o telefone está a tocar e pode ser para ti.

Marília deslocou-se até ao aparelho enquanto Luís deglutia rapidamente as torradas quentinhas e o copo de leite.

- Amor é o Dionísio quer falar contigo.

- Diz-lhe que vou já. – Largou as torradas e dirigiu-se para o telefone.

- Pá, bom dia! – Dou outro lado uma voz ligeiramente cantada respondeu:

- Bom dia uma merda estás a ver como chove?

- E depois qual é o problema?

- É que eu tenho de ir de mota, a porcaria do carro não trabalha. E com esta chuva tens de esperar por mim.

- Eu já sabia que ias arranja problemas, mas vem com calma, de Setúbal até aqui não é longe.

- Acreditas numa coisa, não me está a apetecer nada hoje andar de mota, mas já vesti o fato de chuva e estou pronto para arrancar. Até já Luís.

- Até já e vem com cuidado com esta chuva, sabes que é perigoso andar de mota.

Desligou e foi comer o resto das torradas que Marília lhe tinha preparado.

Dionísio ainda fez mais uma tentativa de colocar o velho FIAT a trabalhar, mas foi debalde não queria pegar. Resmungou entre dentes, tens de ser tu velha companheira a levar-me até ao emprego. Ao carregar no botão do motor de arranque libertou os cavalos até então parados, num rugido de fera sedenta de estrada. Sentiu um arrepio doloroso ao sentar-se nela, mas tinha de ser. Rapidamente percorreu a avenida Luísa Tody encaminhando-se para a auto estrada a caminho do Barreiro.

Numa fracção de segundo viu o carro entrar no cruzamento, com desespero apertou os travões, nada a fazer; ia bater.

O corpo elegante de Dionísio elevou-se da mota, bateu com o capacete de protecção no carro e seguiu a trajectória até ao poste onde se interrompeu bruscamente o seu elegante vôo... E a chuva continuou a cair.

- Sr. Luís são horas de partir para Santo André.

- Estou à espera do Dionísio. Ele disse que se ia demorar um pouco por causa do carro dele não trabalhar mas não deve demorar.

- Será melhor ir só, porque como sabe eu não gosto de atrasos com os nossos clientes.

- Sim Sr. Engenheiro , espero mais cinco minutos se ele não vier vou sozinho. Tenho aqui já tudo preparado para os nossos clientes verem os nossos serviços.

- É melhor ir já.

- Sim senhor.

Desceu as escadas debaixo de uma chuva intensa e somente dentro do carro sentiu algum conforto.

Desde que se levantara que um mal estar incompreensível se apoderara dele; Resolveu falar para a mulher e saber se os meninos já estavam na escola, Marília respondeu-lhe que sim, estava tudo bem com eles; Acalmou um pouco e resolveu arrancar para não ter de andar muito depressa visto o piso estar escorregadio e o velho Ford Escort não ser de muita confiança. Não ligou o auto rádio porque não lhe apetecia ouvir musica nem sequer as frivolidades que estes programas matinais sempre lhes oferecia. Não demorou a passar por Grândola e breve se encontrava na bela Cidade Nova de Santo André.

A reunião com os clientes correu da melhor maneira e em breve encontravam-se num restaurante a almoçar e em amena cavaqueira, tudo parecia correr pelo melhor, mas o seu mal estar cada vez se acentuava mais. Despediu-se dos clientes e logo que lhe foi possível telefonou novamente para Marília, estava tudo bem com os meninos e com ela, que seria afinal o que estava a acontecer?

Já a caminho dos escritórios no Barreiro, parou num posto para reabastecer.

E estranhando que seu amigo e companheiro de passeios de mota, ainda não lhe ter falado pelo telemóvel resolveu ligar para o escritório.

- Bom dia Lurdes. Queria falar com o Dionísio.

- Senhor Luís peço que me desculpe, mas vou ligar ao Senhor Engenheiro.

- Tudo bem Lurdes. – Sentiu a ligação a ser feita e atendeu o Dono da Firma.

- Luís , como correu isso?

- Foi óptimo Senhor Engenheiro, eles aceitaram a nossa colaboração. Breve nos vão fazer o pedido.

- Muito bem; Parabéns amigo! Agora vou dar-lhe uma péssima noticia. O Dionísio teve um acidente de mota e está muito mal, não sabemos se escapará.

Luís sentiu um baque no peito, era isso que o fazia sentir-se tão mal durante todo o tempo, o seu querido amigo já devia estar morto, todo o motard sabe que acidente raramente não dá morte. As lágrimas afluíram-lhe aos olhos e já sentado na viatura baixou a cabeça e fez uma prece.

Sem saber como, tal o estado letárgico em que se encontrava, entrou pelo escritório indo directamente para o gabinete de trabalho que repartia com Dionísio, já sentado na secretaria olhou para a do seu amigo agora vazia , sentiu um doloroso aperto na garganta e as lágrimas voltaram a correr, já não veria mais o seu amigo vestido com o fato de motard garrido e vistoso a acenar-lhe e a fazer provocações para acelerar as rotações da mota, não mais o veria sorridente e sempre com a sua alegria de viver, nas brincadeiras sobre o seu “chaço” que não andava nada, nem o carinho com que tratava a sua mulher Marília e seus filhos, aquele solteirão empedernido. Deixou as lágrimas de dor correr livremente era a sua homenagem ao seu grande amigo e companheiro.

Já mais calmo resolveu ligar para sua mulher a dar-lhe a notícia.

- Amor, estou com uma tristeza tremenda.

- Já sei meu querido o que aconteceu com o nosso amigo.

- Como sabes?

- Soube logo, pois ligaram cá para casa, mas não quis dizer-te até te saber aí no escritório. Sei da grande amizade que vos unia e não queria ser eu a dar-te tão triste noticia, ele já faleceu infelizmente, foi o pai dele que me disse; A hora do funeral quando se souber logo nos comunicam e também para o Grupo dos Motard do qual ele e tu fazem parte. Certamente querem fazer uma ultima homenagem a este amigo tão querido.

- Sim faremos claro. Querida as lágrimas correm pelos meus olhos e não consigo parar. Olhar para a secretaria que ele ocupava e vê-la vazia magoa muito.

- Pede licença ao teu patrão e vem para casa querido. Eu compreendo a tua dor.

- Vou pedir sim, não consigo fazer nada.

Somente ao chegar a casa e quando os braços da mulher o estreitaram sentiu um pouco de conforto, tinha acontecido tudo de bom no aspecto profissional e tudo de mau nas suas relações de amizade.

- Meu Deus como aquele louco se matou, por quê?

- Não te martirizes, por favor! Aliás, ele não teve culpa nenhuma, o carro avançou num sinal vermelho.

- Sim, mas foi ele que pagou com a vida e nos deixou nesta aflição; E os nossos meninos?

- Estão a brincar no quarto, vamos lá vê-los para ver se acalmas um pouco.

Beijou os seus dois rapazes que eram o seu orgulho de pai; As duas crianças abraçaram-se a ele, como que apercebendo-se da sua necessidade de carinho naquela hora difícil.

- Querida vou fazer uns telefonemas a alertar todos do grupo, para nos reunir-mos e preparar a despedida do nosso querido Dionísio.

- Faz isso sim amor, é uma necessidade tua.

Tudo foi preparado ao pormenor e no dia seguinte, à hora do funeral alinhavam-se cerca de 12 motas das mais diversas marcas à porta da igreja de onde sairia o cortejo fúnebre que acompanharia Dionísio a sua ultima morada. Todos do grupo se vestira a rigor com o seu equipamento de motard, mostrando nos crachás espalhados pelos blusões de couro, os locais e concentrações por eles freqüentados; Capacete debaixo do braço, esperavam o seu camarada e amigo a saída da igreja, quando a urna passou por eles gritaram em uníssono, Mamuila…

A razão deste grito era porque Dionísio nascera em Angola, em Sá da Bandeira e era conhecido pela descrição que fazia dessas mulheres Angolanas, que enfeitavam seus cabelos com bosta de vaca, mas eram normalmente muito lindas e usavam apenas um pano a cobrir-lhes as suas intimidades mais baixas deixando o seios sempre lindos a vista.

O féretro arrancou seguido das motas do Grupo de Motards e depois todas as viaturas de acompanhamento.

Pela Avenida Luísa Tody, com lentidão, fazia-se a ultima homenagem ao seu querido amigo e companheiro com acelerações que mais pareciam uivos dessas lobas da estrada. Luís ao apertar o punho da mota e soltar o ronco dos cerca de 150 CV da sua Yamaha R1, sentia as lágrima umedecerem o capacete de protecção, era já a saudade do seu querido amigo. Era deveras arrepiante o som libertado pelos motores das motas nas acelerações rápidas e não passava desapercebido o féretro do motard.

Ao chegarem ao portão do cemitério os gritos das motas intensificaram-se e acabaram por silenciar-se ao ser retirada a urna onde descansava Dionísio.

Todo o grupo colocou as motas em descanso e aproximou-se de seu amigo com o capacete enfiado no braço, seriam eles agora a transportá-lo até a ultima morada;

Rostos carregados de tristeza e dor viram pela ultima vez a face do seu amigo, quando a tampa da urna se fechou, colocaram o capacete em cima dela e fizeram a oração de saudade pelo seu amigo. Era a despedida destes motards do seu companheiro de tantas viagens e passeios. Luís secou com infinita tristeza uma lágrima teimosa e regressou a casa onde Marília o esperava com as crianças.

António Zumaia

António Zumaia
Enviado por António Zumaia em 29/01/2006
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