Caminhando na Madrugada

Noite cinzenta, céu nublado. Saio pra me distrair. A ausência de sono faz com que eu abra lentamente a porta, fazendo o mínimo ruído possível, e caminho até o portão. São duas e quarenta da madrugada.

A fina porém espessa garoa que cai das nubladas nuvens encharca em estantes meu camisão preferido, bem como a camisa preta estampada com o rosto do poeta mineiro Zé Geraldo, que está por baixo.

Caminho até a praça, já não tão linda quanto antes, já não tão bem cuidada, parece clamar pelos carinhos extintos das mãos calejadas, porém sinceras, de um velho que recentemente foi morar por cima dessas mesmas nuvens de verão, após dedicar-se voluntariamente a manutenção de nossa querida pracinha.

Caminho pela estrada em meio às arvores e arbustos. Sento-me no banco debaixo do Jacarandá.

O relógio, intrigante e irritante, anuncia a chegada das três horas da madrugada. Ouço entre o barulho dos latidos dos cães e o apito dos fornos da padaria da esquina, anunciando mais uma leva de pão quentinho, o grito passageiro dos motores que roncam nos caminhões, passando a todo minuto na rodovia lá embaixo. Gente da estrada, que leva o mundo nas costas. Gente que está muito longe de casa, e outros que estão chegando, como o vizinho da rua de baixo, que quebra o silêncio da vila, estacionando seu 'troncoso quinze - treze', com certeza retornando de mais uma viagem à Bahia, denunciado pela carroceria vazia.

Penso em descer a rua, talvez de passos longos, para desejar um bom descanso, e saciar um pouco meu desejo de falar com alguém. Mas certamente, após quilômetros de estrada, e a essas horas da madrugada, o 'caminheiro' não deve estar muito a fim de conversa. Está chovendo um pouco mais forte, e tudo o que ele quer - imagino - é tomar um banho quente, talvez um achocolatado e deitar-se ao lado da esposa que o esperou durante todo o mês.

Além dos cães e gatos, talvez insetos e bichos peçonhentos, eu deva ser o único de minha rua a estar acordado àquela hora, sentado na praça, sob a chuva que cai com a ausência do luar.

Saco do bolso do camisão ensopado, um cachimbo que eu mesmo fiz, improvisado com bambu e cipó, envernizado por fora. Uma peça digna de um expectador do artesanato.

Do mesmo bolso tiro um saquinho de 'Fumo de Corda Picado 51', que na tarde do dia anterior havia comprado na agropecuária defronte a praça.

Não, eu não costumo 'pitar' cachimbo ou cigarro de palha. Mas, como fiz esse pequeno cachimbo, entediado num domingo, sem nada pra fazer, precisava testá-lo antes de presentear um amigo que adora essas coisas.

E não é que funcionou?! Porém, não agüentei mais que três tragadas. Cuspi, como os aposentados que durante o dia ficam no mesmo banco onde estou, fazem a todo instante, com suas piteiras e palhas.

Sinto o sabor do mato. Da natureza. De uma vida regada à simplicidade, um lado tão sertanejo que há tempos eu não encontrava em meu ser. Olho para mim mesmo. Minha roupa encharcada, e a camisa do Zé Gê, me fazem lembrar do 'Blues do Municipal', uma das primeira canções do poeta que 'fez' - literalmente, minha cabeça. Então eu a cantarolo.

Ah! Esta minha cabeça. Fantástico universo de fantasias, sonhos, pensamentos em alta velocidade, que me fazem perder o 'fio da miada', por diversas vezes. Esta minha cabeça, que anda tão desolada, isolada, com tantos contratempos e obstáculos, tantos quebra-molas e 'mata-burros', que me fazem diminuir assustadoramente o ritmo, a ponto de parar.

Sob a luz dos refletores, observo as formigas, mesmo sob os pingos, carregarem as folhas que caíram com o vento, e foram parar bem em cima de seus ninhos. Levanto-me, pego uma folha, que está sendo carregada por uma 'Saúva', e a trago bem na ponta do nariz, juntamente com o pequeno invertebrado, que luta bravamente para não soltar a folha, aproximadamente umas dez vezes maior que seu tamanho, e perder todo seu trabalho. Devolvo a folha, e a formiga, exatamente no lugar da qual a tirei. Penso que não tenha interferido muito no seu curso, mas com certeza atrapalhei muito sua rotina de trabalho, afinal, agora ela está atrasada, e muito provavelmente não vai conseguir recuperar o tempo que lhe foi roubado por mim.

Caminho até a rua. Continuo a pensar na formiga, e mesmo que pareça estranho, me sinto um lixo por tê-la assustado e atrapalhado.

Em frente a minha casa, o pé de acerola, antes já rebaixado por estar carregado de frutos ainda verdes, agora chega a tocar o chão, devido ao peso que a água da chuva exerce sobre seus delicados galhos.

Sento-me ao lado, na calçada. São vinte para as quatro da matina, convenço-me de que está na hora de entrar, voltar ao meu quarto, deitar-me e tentar dormir.

Antes que pudesse me levantar - no espaço existente entre o 'quase-sentado' e o 'quase-em-pé', ouço o barulho de um carro que se aproxima. Imóvel, para não ser percebido, chego à conclusão de que falhei, quando os faróis atingem a pequena árvore, e o colorido das lâmpadas vermelhas e azuis do 'giroflex' da viatura de uma viatura clareiam o muro.

Descem dois 'armários', de arma em punho. Obedecendo a ordem dada, em voz baixa para não atrair curiosos ou acordar a vizinhança, levanto-me lentamente, com as mãos para cima. Enquanto um me olha desconfiado, pronto para começar o questionário, outro abaixa a arma e me diz: "Caramba velho! Você não muda. Ainda com essa mania de vagar pela noite?", e olhando para seu parceiro, avisa: "Tranqüilo... esse é de casa!”.

Meu velho amigo, dos tempos em que o contratava para realizar segurança em meu eventos. Com os braços ainda em riste, retruco que alguém tem que fazer a segurança da rua! Embasbacado, pergunta-me se está tudo bem, e, diante da resposta afirmativa, fica o combinado de relembrar-mos os velhos e bons tempos de pescaria e feijão tropeiro no rancho do Rio Manso. O carro arranca, e eu abro o portão e entro. Entre o corredor e a porta do meu quarto, ainda tenho tempo de lembrar da formiga, e pensar que talvez ela esteja relatando a seus companheiros de formigueiro, aventura de ser capturada por um monstro gigante, lutar bravamente, vencer a batalha e sair ilesa. E num vácuo de pensamento, percebo que o vigia noturno, que segundo o contrato que me obriga, como a maioria dos moradores da rua e da vila, a pagar por um mínimo de tranqüilidade durante o repouso, garantindo a segurança de nossas casas, não passou nenhuma vez, no espaço de 'meia em meia hora' como promete o documento, durante quase duas horas que fiquei na rua. Enquanto tiro a roupa molhada, entro no chuveiro de água morna, me enxugo e me visto pra deitar, convenço-me ainda mais da ineficácia do serviço - que nunca fora novidade pra ninguém. Coloco o cachimbo e o pacotinho quase completo de fumo em cima do criado-mudo, para não esquecer de entregar durante o dia para meu amigo, devidamente testado.

Deito na cama. Ligo o som, coloco um disco do homem que há pouco estampava minha camisa, lembro da formiga, dou um forte espirro, e vou dormir quase em paz. E além do provável resfriado e da roupa encharcada no varal, esta chuva mansa promete não deixar vestígios.