Ligações em minha vida

O telefone toca. Ninguém atende. Não há ninguém além de mim. O som da ligação me incomodava. Parecia um pesadelo em minha vida. Dito e feito. Na segunda ligação, atendi.

- Alô!

- Você...

- Quem? Quer falar com quem?

- Com você. Você salvará minha vida.

Era trote, no mínimo, pensei. Já ia desligar o telefone. Detesto acordar assim. Vou desligar e dormir.

- Espere!

- O que é, meu senhor?

- Estou morrendo.

- Vou desligar o telefone, se não falar sério!

- Estou morrendo. Estou só. Sou como você. Estou vagando...

Esta voz, conhecia esta voz...

- Tenha um bom dia!

Desliguei. Não queria mais papo. Fiquei com medo. Não sei. Tive medo. Virei-me e deitei novamente. 06:00 da madrugada. Hoje não trabalho. Único dia da semana. Só queria cama. Ela me esperava e os belos sonhos que não passavam de... O telefone toca!

Não vou atender. Já estava resolvido!

E se for alguém importante? Trabalhar na área da saúde é complicado. Pode ser algum paciente pedindo auxílio. Não há como negar. Nunca nego.

Atendi.

- Estou morrendo. Por favor, não desligue!

- Quem é você?

- Eu sou você amanhã.

- Pare de brincadeira, meu senhor!

- Estou morrendo. Não minto. A culpa é sua.

- No que eu posso ajudar?

- Pergunte à sua consciência...

Estou tendo um pesadelo, ou essa pessoa é maluca, ou eu sou mais ainda, por dar trela à tamanha besteira.

- Eu só quero dormir!

- Eu também...

- Então vá e me deixe em paz...

- Em questão de minutos. Não se mate. Valorize a vida, se há vida.

- Quem é você? De onde me conhece?

- Foi uma questão de sorte. Meus dedos discaram seu número. Só preciso conversar. Sou como você. Estou só.

- Pronto, estamos conversando.

- Você pode me ajudar?

- Em quê?

- Não me critique. Se critique antes. Você é como eu sou, mas não tenha o mesmo fim. Nisso somos diferentes. Você pode ser diferente.

- O quê?

Essa voz...

- Sinto você pela voz.

- Como?

- Tristeza...

Desligou.

Como triste? Voltei a deitar e fiquei pensando no porquê da ligação.

Acordei. Era sonho. Pesadelo. Era real. Senti verdade nas palavras daquela pessoa. Quem ela era? Eu a conhecia, só não me lembrava de onde. Aquela voz...

Sabe de uma coisa? Que palavras? Não passou de um sonho e essa pessoa não passava de um homem louco e eu estava ficando também. Não sou vidente, nem sei explicações de sonhos. Nunca fui disso.

Não dormi mais. Não estudei também. Não fiz o que programei. Não queria ficar em casa. Fiz minha rotina matinal, mas não fumei. Alguma coisa aquela voz queria me dizer. Senti calafrios. Naquela manhã, não fumei. Peguei meu carro. Não sabia aonde ir. Fui ao hospital. Não estava muito cheio. Poucos carros na garagem. Poucas pessoas na recepção de urgência. Que bom. Menos doentes. Menos problemas. Um dia atípico. Achei estranho.

Bom dia. Bom dia. Bom dia. Bom dia. A cada pessoa que passava, era um sorrido e um bom dia. Quem sabe, desse jeito, meu dia não recomeçava. Não estava de plantão, mas fiquei na minha sala. Abri o jornal que comprei no caminho, como de rotina. Só violência. Esse país está um caso sério.

O telefone toca. Involuntariamente, atendo.

- Alô!

- Bom dia!

- Vem aqui fora. Estou só. Tenho medo.

- Onde?

- Aqui fora. No hospital.

Não era a mesma voz do sonho, desta vez. Era uma criança. Saí de minha sala. Fui ao encontro da voz. Encontrei uma menina descalça, brincando com uma cadeira. Cadeira? Criança tem cada imaginação...

- Olá, menininha, você quem me ligou?

- A moça que estava aqui saiu. Fiquei com meu amigo. Depois, ele saiu. Fiquei só. Tive medo. Apertei qualquer número ali. Dei sorte. Caiu no seu.

- Onde você mora?

- Aqui!

- Está em tratamento? (Estranhei, por não haver uma enfermeira tomando conta).

- Não sei. Meu amigo disse que estou me preparando para partir.

- Já está curada?

- No céu tem doente?

Dei um leve sorriso, levei na brincadeira.

- Qual o seu nome?

- Cristina, e o seu?

- Débora.

Cristina... Cristina...

- Onde está seu amigo?

- Não está mais aqui. Não queria que você o visse. Voltou.

- Para onde?

- Para o céu.

Eu sabia que não deveria ter saído de casa...

- Me mostre seu quarto. Ficamos conversando lá, o que acha?

- Tá...

Contou-me um pouco de sua vida. Ter HIV por hereditariedade não é fácil. Sistema imunológico baixo. Não sei quanto tempo tem de vida, só acompanhando o caso de perto. Brincamos muito naquele dia de domingo. Sentia-me mais criança que Cristina. Cistina! O nome da minha filha, se ela tivesse nascido. Perdi e, com ela, meu marido. Tenho 33 anos e não penso em ter vida, apenas em salvá-las, como de costume. Não consigo gerar. Depois daquele acidente de 24 de agosto de 1999, fiquei estéril. Sou incompleta e viúva.

Via Cristina cheia de vida, que se esvaia. Brincava...

Aquele domingo foi com pouco movimento. Não trabalhei. Brinquei com Cristina. Por algumas horas, me senti viva. Senti-me mãe. Parecia loucura. Eu não ajudava Cristina brincando com ela. Ela quem me ajudava.

Assim foi, por mais três meses.

A família dela muito pouco a visitava. Apenas a avó materna, Elisa. A mãe, Lúcia, não estava mais neste plano. O pai, ninguém sabe do paradeiro. Elisa só tivera uma filha e agora a neta, com o mesmo fim. Que dor para uma mãe. Sim, a avó era uma mãe que sofria duplamente, mas não na frente de Cristina. Para a neta, era só alegria e carinhos.

Eu parei de fumar. Sorria mais. Cristina me dera a vida que perdi há nove anos. Não orava mais pedindo minha morte. Estudava mais. Procurava uma cura. Algo que desse à Cristina vida, mais do que tinha. Eu queria vida e Cistina era a vida mais preciosa. Em minhas orações, cheguei a pedir para trocar de vida com Cristina. Não tinha mais nada a dar. Ela sim. Vida injusta.

Cristina queria ser médica, feito eu. Queria cuidar das pessoas. Não sabia ela que já fizera. Eu era a paciente.

Três meses depois daquele dia de domingo, o telefone da minha casa toca. Dona Elisa me chamando para conversar. Voz triste. Vou ao encontro. Recebo um envelope de suas mãos. Ela não dá uma palavra. Abro. Era uma foto do meu marido com Cristina. Como pode? Não contive lágrimas.

“Viva! Esta é a sua vida! Que bom que você está novamente viva. Não morra mais, não é a hora. Minha amiga fez você feliz. Podemos ir em paz. Missão cumprida. Esperarei você, minha amada. Até breve.”

Agora tudo se encaixava.

Atendi o que me pediram.

Veridiana Rocha

27/07/08