Fanatismo

“Nesses mais de trinta anos entre namoro e casamento eu não vi ele chorar nem no nascimento dos nossos quatro filhos”. Foi o que conseguiu dizer aquela dona-de-casa, num misto de surpresa e decepção, ao ver o marido no telejornal local aos prantos, abraçado à bandeira do seu time do coração, logo após o jogo que o sagrou vencedor do campeonato estadual e que lhe garantiu um lugar na segunda divisão do ano seguinte.

Talvez a surpresa do choro pudesse até ter despertado naquela mulher simples uma percepção diferente do marido. Algo como uma descoberta tardia de que ele era capaz de externar emoções a poucos anos de se tornar um sexagenário. No entanto, não foi o que aconteceu. O repórter da emissora, que mostrava para milhares de telespectadores a entusiasmada demonstração de amor de um torcedor, quis ouvir dele algumas palavras.

Aquele ajudante de pedreiro, que era conhecido em seu bairro como um homem honesto, trabalhador e ordeiro, demorou alguns segundos para se recompor. Enxugou as lágrimas, segurou o microfone na mão do repórter e, com a voz embargada, conseguiu dizer uma frase inteira: “hoje é o dia mais feliz da minha vida!”

Do outro lado da telinha, enquanto os quatro filhos gritavam de euforia ao ver o pai em seus únicos minutos de fama, sua esposa se emudecia, como se tivesse ouvido a pior ofensa de sua vida. Passou pela memória um filme dos últimos trinta anos, desde os 16, quando na festa da padroeira de sua cidade natal foi chamada para dançar por aquele rapaz encabulado, de seus vinte e poucos anos. Lembrou-se do primeiro beijo duas semanas depois, após alguns encontros comportados no jardim da praça principal, e da sensação de que estava diante do homem de sua vida.

De fato, até então aquela mulher de 46 anos tinha tido apenas alguns namoros pueris. Seu primeiro namorado de verdade e o primeiro em todas as demais experiências de uma vida a dois era aquele homem emocionado, vestindo a camisa de um time que, pela primeira vez, tinha saído do rol dos derrotados para receber a taça de campeão. O mesmo que não chorou no almoço de noivado que uniu duas famílias nordestinas, humildes e sofridas; o mesmo que não chorou ao vê-la entrar na igreja, vestida de véu e grinalda; o que não derramou uma lágrima ao receber a notícia que seria pai pela primeira vez...

Definitivamente, ela não sabia quem era aquele homem que demonstrava tamanha paixão, ao vivo, em horário nobre da TV. Sorte sua (e dele também!) que as imagens não foram gravadas. Melhor dizendo, não foram gravadas no videocassete comprado alguns meses antes.

A pacata dona-de-casa sequer tocou no assunto com o marido. Não valeria a pena estragar tamanha alegria, agora compartilhada por parentes e vizinhos que não paravam de chegar para dizer que também o tinham visto no telejornal. Virou uma celebridade-relâmpago na rua, no bairro; recebeu até condecoração da presidência do clube campeão por ser um torcedor-modelo. Tudo por ter externado a sua paixão, o seu fanatismo pelo futebol.

Roberto Darte
Enviado por Roberto Darte em 01/08/2008
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