Dissecação

Chega um tempo em que nada mais parece elegante. É o tempo das coisas tomadas por elas mesmas. Ao escrever estas palavras o motor do ônibus pára, e descem o motorista e o grotesco cobrador. Anão, de olhos esbugalhados, barriga grande e membros atrofiados. Calvo. Quem é que leva a sério um deus que fez essas coisas?

A luz noturna perdeu seu encanto. É noite e silêncio lá fora, e uma pequena barata saltitando no banco da frente. Ela parece dançar e se apressar, mas é também insignificante. Tão pequena e seca que é incapaz até de causar asco. Perdeu sua serventia.

As pessoas têm os olhos de faróis apagados, olhos que cantam em uníssono a dissonância lá de fora. São as últimas máquinas de hoje, e as primeiras de amanhã. Que fazem? São como a grama seca e semi-morta desta estação. Não embelezam, não consomem, nem negativas e nem positivas. Talvez nem mesmo neutras. A luz branca e distante parece mais forte que o comum...

Agora são duas baratinhas. Vieram em minha direção, e por um instante pareceram me estudar. Mas sem que me movesse elas se afastaram, atarefadas. Não as altero e nem elas a mim. Os homens não se mexem; apenas apagam os olhos, e voltou o anão.

O motor berra como besta ferida e partimos de novo, em direção da aurora ressequida. A luz branca, tão mais pálida que o comum...

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Agora o anão usa um casaquinho verde. Conta dinheiro e passes com os olhos estufados, mas sem volúpia; parece uma mosca esfregando as patinhas. Que desconforto, que mundo de insetos. Tenho fome, cansaço. Sono. O frio sai da sua toca e exala com suas narinas ácidas o odor da velha estrela terminal. Tremem as máquinas da aurora, mas tudo passa bem rápido.

Aceno e desço sozinho, na mais completa solidão de espírito e alma. O cheiro que restou é o de esgoto e morte antiga. Mas já é muito tarde para pensar nisso; calou-se a luzinha pálida.