Pesadelo

Acordei naquela manhã , com o sol tímido de inverno batendo em meu rosto e o orvalho frio que pingava das folhas molhava a minha roupa e o cobertor rasgado que envolvia o meu corpo. Estava tudo tão estranho a minha volta, estava em um parque com um gramado enorme a beira de um lago muito bonito. O que aconteceu ? perguntei a mim mesmo, esperando encontrar alguma resposta que me ajuda-se a entender essa situação. A minha vida parecia estar começando, não tinha lembrança alguma sobre quem eu era , o porque de estar nesse lugar vestindo roupas rasgadas e dormindo no chão como se fosse um mendigo. Juntei o resto das coisas que estavam perto de mim e comecei a caminhar por aquele gramado ainda frio pelo orvalho da manhã então notei que estava de pés descalços com as unhas enormes e sujas e tudo o que eu tinha era um cobertor rasgado, um saco com alguns trapos, nada de muito valor e um pedaço de pão velho, que foi a minha primeira refeição nesta manhã tão fria de inverno.

Embora tudo isso estivesse fazendo parte da minha vida, algo não se encaixava na minha cabeça; o meu espirito não era de mendigo tudo era como um enorme pesadelo e que a qualquer momento deveria acordar e voltar a realidade.

Fui caminhando ao redor do lago e vi pessoas correndo, fazendo exercícios , achei aquilo muito interessante embora algumas delas olhassem meio desconfiadas para mim a minha presença as incomodava então resolvi caminhar em outra direção. Fui procurar a saída e buscar orientação de onde eu estava e quem sabe algo que desse alguma recordação de como eu vim parar nesse lugar.

Saindo do parque avistei grande quantidade de prédios, carros e pessoas , só pode ser São Paulo, nenhuma cidade é tão grande no Brasil como ela. Esta grande cidade me era muito familiar tinha a enorme sensação de sempre Ter vivido aqui, aos poucos as ruas o barulho do transito e a agitação das pessoas representavam algo muito familiar.

Parei em frente a uma banca de jornal e comecei a ler algumas noticias sobre políticas, economia e tantas coisas diferentes que acabei sendo motivo de gargalhadas quando peguei o caderno de economia e as pessoas que estavam em volta começaram a comentar: era só o que faltava nesta mundo, um mendigo lendo noticias sobre economia. Eu não entendi o motivo da piada para mim aquilo era tão natural como se eu fizesse isso todos os dias.

Fui me deixando levar por onde a intuição me conduzia, não tinha rumo nem destino certo simplesmente queria andar, andar muito buscar não sei o que, tentar encontrar algo que não sabia o que era, buscar passado, presente e quem sabe o futuro. Não tinha lembranças de nada, quem eu era ,quem eu sou , não sei meu nome , não me lembro da minha família , Pais irmãos nada que me desse uma pista sobre a minha vida. Como se eu estivesse chegado ao mundo naquela manhã. Deveria Ter uma profissão, ou será que não, será que sempre fui mendigo.

Percorri ruas , avenidas, bairros e lugares e mais lugares vagando de um lado para outro redescobrindo tudo para juntar o quebra cabeça de minha vida.

Avistei um grande shopping center e resolvi entrar para ver aquelas lojas tão bonitas e cheias de coisas interessantes e aquele ar de alegria que eu via nas pessoas que passeavam de loja em loja cheias de sacolas nas mãos. Porem os seguranças do lugar vieram correndo em minha direção me agarraram pelo braço e aos safanões me puseram para fora do lugar. Quanta ignorancia e brutalidade com uma pessoa fiquei imaginando, será que uma pessoa mal vestida, ou melhor mendigo como eu não pode entrar num shopping? O que vale é a aparencia da pessoa e a roupa que ela está vestindo? Seria mais fácil me pedirem para sair ao invés de me tratarem com tanta brutalidade. Fiquei feliz ao escutar uma mocinha bem vestida com aparência de rica falar aos seguranças: coitado desse mendigo não o tratem mal, ele não tem culpa da sorte que teve na vida. Os seguranças me soltaram e mostraram a saída me dizendo não volte mais aqui.

Pela movimentação das pessoas nos restaurantes e pelo cheiro maravilhoso de comida que dava para sentir de longe, imaginei que aquela deveria ser a hora do almoço. Mas como farei? Dinheiro não tenho nenhum e a fome me apertando, o jeito é pedir e contar com a colaboração e a boa vontade das pessoas. Comecei a pedir por um prato de comida batendo de porta em porta, pedia restos de comida nos restaurantes e quase sempre a resposta era a mesma: não tenho nada, vai trabalhar vagabundo, é muito difícil depender da bondade alheia pensei é uma situação muito humilhante viver de esmolas sem Ter a certeza se vou comer

ou não, é viver abaixo do mínimo de dignidade que um ser humano precisa para viver.

Estava desistindo de pedir comida , quando ouvi algumas pessoas me chamando para atras de um restaurante perto de uma caçamba de lixo. Venha aqui, me disse um senhor de idade todo sujo e rasgado como eu. Junte-se a nós e repartiremos o que temos com você . Era um grupo de várias pessoas, homens, mulheres, crianças que ao todo dava umas dez pessoas, todos de rua como eu, mendigos em busca de comida e dignidade.

Aqui é bom, neste restaurante sobra muita comida boa e eles jogam tudo aqui. Uma das cozinheiras é nossa amiga e todos os dias ela nos trás as sobras. E era mesmo verdade, a tal cozinheira trouxe muita comida e apressadamente falou para nós: comam depressa e não deixem restos jogados por ai, se o patrão descobre o que estou fazendo, com certeza serei demitida. Ele quer que joguemos tudo fora para não se comprometer com a lei sanitária .

O gesto dela me deixou comovido, e tocou o meu coração, a comida estava muito boa e alimentou a nós todos que estávamos ali.

Puxando assunto com os mendigos procurei saber as suas histórias e o porque de viverem daquela forma. O Senhor Nestor o mais idoso do pessoal me contou que a mais de cinquenta anos tinha vindo de Pernambuco. E a sua familia, você tem família perguntei-lhe. Sim tive vários, esposa, tinha casa e um bom emprego, um dia cheguei mais cedo em casa e peguei a mulher me traindo com um amigo meu. Abandonei tudo e me entreguei na bebida e hoje o que sobrou de mim é o que você vê na sua frente.

E a senhora, como é mesmo o seu nome? Adelaide meu filho o meu nome é Adelaide. E o que aconteceu para a senhora virar moradora de rua dona Adelaide. Eu fui casada e não tive filhos, nem irmão parentes ninguém, o meu marido faleceu e fiquei sozinha no mundo como você pode ver. Perguntei ao moleque que deveria Ter uns doze anos, e você porque está nas ruas, e me respondeu com lagrimas nos olhos. Meu pai bebe demais e a minha mãe foi presa, ele arrumou outra mulher que me batia o dia inteiro então eu e o meu irmão fugimos de casa.

Assim todos eles me contaram de suas vidas e em todas elas as tristezas se repetem, seja por falta de família, traições, bebidas, maus tratos, todos tem algo a contar e se percebe a solidão, a miséria e a falta de amor entre as pessoas.

Fiquei vários dias andando com essas pessoas, dormindo nas ruas, embaixo de viadutos, em construções abandonadas, conheci a dificuldade de não se Ter nada . As ruas são violentas e desumanas, vale a lei do mais forte. Vale a pena dizer também que ainda existem muitas pessoas bondosas e com amor no coração, varias noites frias de inverno nós recebíamos sopas e agasalhos de pessoas que percorriam as ruas durante a madrugada para levar solidariedade e amor à aqueles que necessitam.

Depois de um certo tempo senti a necessidade de me separar deles e continuar a minha jornada, ainda tinha muitas coisas a descobrir sobre minha vida. Acordava as noites com alguns lampejos de memória, como se as minhas lembranças quisessem me revelar alguma coisa. Por várias vezes eu via uma casa muito bonita, com crianças brincando em um jardim florido. E sempre aquela mesma cenas se repetia, o jardim, as crianças, a casa bonita. Eu teria que procurar essa casa, mas como numa cidade tão grande, levaria a vida toda e não conseguiria ver nem metade de tudo.

Um lugar que sempre me chamou muito a atenção é a avenida Paulista, dizem que é o centro financeiro de São Paulo e também do Brasil, muitos prédios luxuosos, sedes de grandes empresas, um lugar onde trabalha muita gente importante e bem vestida. Nas minhas andanças sempre acabava passando por lá, como se algo muito forte me atraí-se para esse lugar. Eu sempre olhava tudo com muita atenção, sentia que já estivera aí muitas vezes e que a qualquer momento alguma lembrança poderia surgir na minha cabeça.

Continuei andando , olhando os prédios, estava tão distraído que acabei trombando com um senhor de terno e gravata , que vinha todo apressado com uma pasta na mão e o telefone celular na outra. Na trombada a sua pasta caiu e toda a papelada que estava dentro saiu voando pela calçada. Ele me xingando e tentando recolher os papéis. Eu também me abaixei e o ajudei a catar tudo.

Mil desculpas meu senhor, perdoa-me a distração, não quis te atrapalhar, lhe falei todo sem jeito.

Ele todo zangado começou a me olhar com uma cara de espanto que jamais eu tinha visto na vida. Ele largou a pasta e o resto dos papéis que ainda estava no chão e chorando me disse: meu Deus não pode ser verdade é você mesmo Roberto?

Eu sem saber o que dizer respondi: Roberto é esse meu nome?

Sim Roberto é você mesmo tenho certeza, apesar do cabelo comprido e a barba eu te reconheço meu amigo. São sete anos que nós te procuramos, não sabíamos se estava vivo, tentamos de tudo, espalhamos fotos, fomos nas rádios, jornais e até na televisão, mas você sumiu e não conseguimos encontra-lo. E agora meu amigo você está bem aqui na minha frente.

O que aconteceu comigo perguntei-lhe, ainda meio desconfiado com aquela situação.

Você sofreu um acidente em casa, na piscina, bateu forte com a cabeça, ficou muito tempo internado no hospital desacordado. Um dia os médicos ligaram para sua esposa e disseram que você tinha sumido de lá, e desde então nunca mais ouvimos falar de você, a sua esposa e seus filhos até hoje te procuram e esperam ansiosos a sua volta.

Então eu tenho esposa e filhos, como é mesmo o seu nome: eu sou a Arthur e somos amigos desde infância, trabalhávamos na mesma empresa.

Ele todo contente me colocou no seu carro e enfim levou-me de volta para minha casa, minha família e para a minha vida.

FIM