Quente como chimarrão

Não foi para fugir do frio do sul que ele veio, simplesmente bateu a curiosidade de conhecer a Capital Federal aproveitando que havia uma amiga gaúcha em Brasília, conhecida essa que por acaso uma das minhas melhores amigas, passava os fins de semana em casa para que pudéssemos ir junto as festas, karaokês e cinema durante os fim de semana, era quase férias, aproveitávamos muito bem a temporada gauchesca em Brasília, Expotchê, uma feira do sul que acontece no inverno na capital.

Era uma manhã de sábado quando Lucia me ligou. O telefone tocou insistentemente umas duas vezes até que eu tomasse coragem pra despertar. Alcancei o celular e logo atendi, nem vi quem ligava:

_ Alô! Disse ela.

_ Amiga, aqui é a Lucia! Olha só to precisando de um favor seu!

Nem esperou eu perguntar o que era e ela continuou falando:

_ Tô com um amigão meu do sul chegando hoje daqui à uma hora no aeroporto e minha mãe saiu, ele não sabe andar em Brasília, e eu to pegando um ônibus pra rodoviária.....

_ Para tudo!! Para tudo!!! Respira!!! Amiga, você vai ter um treco desse jeito!

E eu ria sem parar ao telefone, quando Lucia ficou irritada! Lucia era uma moça notavelmente ansiosa e agitada e conseguia deixar qualquer um na pilha:

_ É sério amiga!

_Eu to levantado vou te buscar na rodoviária de lá a gente segue pro aeroporto, até lá a gente conversa quem é quem, bem melhor assim!

Falei nun tom de moderação. Então levantei, tomei uma ducha, cumprimentei Dona Isaura que sempre ia aos sábados em casa enquanto ela me servia o café, dava-me recomendações à Lucia, uma pessoa que D. Isaura tinha muita estima. Comentamos sobre a roupa que eu poderia sair já que o tempo estava seco e frio, mas acabei buscando uma roupa leve para vestir, difícil foi escolher a bijuteria, como sempre, duzentas bijuterias pra eu escolher e eu sismo com algumas, são acessórios de estima e acabo usando os mais queridos. Escolhi o perfume, esse era fácil, cada dia escolho mesmo um diferente , peguei um cítrico floral, jatiei pelo cangote e pulsos, peguei a bolsa que estava no canto da cama e ao sair do quarto calcei meu sapato de tricê preto.

Entrei no carro, abri o portão com controle remoto esperei o portão abrir até um certo ponto e comecei a sair com o carro, troquei de Cd estava meio cansada de ouvir aquelas músicas românticas americanas, coloquei uma música latina porque ainda estava no ritmo caribeño da sexta-feira, lembrando que na noite anterior havia me embrenhado em uma boate muito agitada chamada Caribeño onde se toca, a melhor, rumba, salsa e zouk da cidade, sem contar na dança fascinante e sensual. Eu estava um pouco cansada a balada latina na cabeça, ter dançado a noite toda, mas enfim pra que servem os amigos? Passei pelo principal radar da terceira ponte do lago e peguei a esplanada dos ministérios, é incrível como aos sábados aquela via fica tão tranqüila e livre, nem parece a loucura dos dias semanais.

Logo que cheguei na rodoviária avistei Lucia, uma loira e sorridente, bem esbelta vestindo um jeans e blusa preta, encima de uma sandália alta, já acenou toda contente, entrou no carro cantando o sotaque gauchesco, incorporando a gaúcha:

_ Que Bah! Vamos logo, ne? Que o Guri deve estar torto de nos esperar!

Comecei a rir quando ela me olhando com estranheza perguntou:

_que é guria, tu nunca me viu falando o sotaque do sul?

Eu respondi rindo e acentuando ainda mais o sotaque dela:

_ Não vi ainda, ne? que tri!

Lucia aumentou o som do carro e fomos saracoteando até o aeroporto, Lucia muito alegre chamava atenção das pessoas que sempre olhavam no trênsito, alguns rapazes buzinaram para nós um deles colocou o corpo pra fora do carro e fez um sinal de que iria anotar alguma coisa, com certeza um sinal pedindo o número do telefone. Rimos uma pra outra e continuamos a viagem, esse tipo de abordagem podia até ser engraçada, mas estávamos mesmo mais propícias a homens mais maduros.

Pegamos a via do aeroporto e estacionamos com medo de termos perdido o passageiro do sul, Lucia foi ver se o reconhecia no desembarque doméstico enquanto eu dei de brincar com um cachorrinho miúdo que estava no colo de uma senhora. Lucia veio com o amigo a tirar colo, toda contente, e me apresentou Victor, um rapaz mui guapo como dizem lá no sul, um sorriso cativante e uns olhos cor de mel, amendoados, a pele bem branca quase rosada e os cabelos castanhos claros combinavam com seus olhos que pareciam sorrir constantemente.

Victor estava com um daqueles carrinhos de aeroporto e logo pegou minha bolsa e colocou no cesto pequeno do carrinho para que ficássemos mais à vontade até o caminho do carro. Ele logo perguntou:

_ Você também é do Sul, né?

_Não, nasci em São Paulo moro aqui desde miúda!

_ Mas lembra muito as gurias do sul não é Lucia? Lembra aquelas bonequinhas de cheiro!

Lucia deu uma gargalhada e disse:

_ É mesmo aquelas bonequinhas de sache de porcelana!!! Pior é que no videokê o apelido dela é bonequinha mesmo, você adivinhou!

Eu fiquei encabulada, minha amiga havia entregado o apelido que acabei acatando por causa de um amigo que carinhosamente colocou e ficou, fazia tempo que não me chamavam de bonequinha.

Seguimos para casa de Lucia e lá alocamos o amigo num dos quartos disponíveis da casa, logo que estavam ajeitados, Lucia convidou o amigo à festa gaúcha que estava tendo na cidade.

_Vi, ta tendo aqui a Expotchê a gente podia ir, né? Eu sei que você acabou de vir de lá, mas pelo menos tu vê as coisas que estão trazendo de lá! Lá tem até barraca pra tomar chimarrão.

_ Que tri, vamos sim! Bonequinha tu gostas de chimarrão?

_ Ah! Faz tempo que não sei o que é chimarrão! lembro que eu tomei quando era bem pequena, mas faz muito tempo!

Passamos a tarde juntos, Lucia fez um café e Victor fez questão de me servir. Lucia contava sempre que os rapazes do sul eram muito prestativos e gentis, eu estava surpreendida desde não me deixar carregar a bolsa até me servir o café. Mas enfim, chegava à hora e Carina ligou para Lucia para confirmar a ida à feira gaucha. Carina era uma gaúcha recém saída do sul, também conhecia Victor e estava ansiosa pra encontrar o amigo. Ela também era uma mulher loira, com cabelos até as costas, olhos azuis, expressão marcante e voz suave, gostava de andar mais alternativa e adorava shows de rock, tantas foram às vezes nas férias que eu e Carina íamos ver os shows de bandas locais.

Mas aquele dia era o dia da Expotchê, fomos para minha casa e eu me aprontei para a feira, buscamos na asa sul Carina que por incrível que pareça já esperava na saída do prédio e foi um carinho sem fim, os gaúchos estavam unidos novamente! Eu estava me sentindo a estranha no ninho, Lucia trocou de lugar no carro para conversar com Carina no banco de trás enquanto eu ia mostrando melhor alguns pontos da cidade ainda desconhecidos por Victor.

Chegando à exposição peguei o estacionamento pago, mas mesmo assim só consegui vaga bem longe, descemos e Victor pegou minha bolsa e segurou minha mão. As duas amigas fofocavam sem parar que queriam ver tal barraca, que queriam suco de uva, a outra queria pinhão, e eu querendo provar o tal do chimarrão novamente.

Chegamos a feira, logo paramos na barraca de queijos e vinhos, Carina fez questão de comprar seu queijo favorito de vinho e Lucia só queria saber dos chocolates e mais chocolates, perambulamos quase a noite toda, as meninas queriam tomar um chimarrão na barraca de um conhecido comerciante, quando eu disse que não lembrava mais como se bebia um chimarrão, Victor logo perguntou:

_ Mas você não tem a chamarra em casa?

_Não, pelo menos há uns 15 anos eu nem lembro mais a quanto tempo.

Victor me puxou pelo braço procurando mais a frente uma barraca pela qual havíamos passado que tinha várias cuias de vários modelos, até mesmo de times gaúchos e eu gostei de uma que não tinha apoio, uma cabaça de pé com beira de prata toda desenhada, peguei uma ou outra na mão mas como havia colocado aquela junto ao corpo, Victor pediu a erva-chá, a bomba e a cuia de que gostei e mandou a moça embrulhar para presente. Deixou-me encabulada de novo, ele era muito gentil e extremamente impulsivo. Não largou a minha mão a feira inteira, parecíamos até namorados.

Chegando à estância gaúcha, um lugar reservado na feira com bandas gaúchas ao vivo, começaram a tocar uma música que eu sabia e comecei a cantarolar junto, Victor me puxou e começou a me ensinar os meus primeiros passos da tertúlha Gaúcha, uma dança compassada, parecia até uma valsa marchada, achei uma dança forte mas o braço de Victor era firme e ele sabia levar uma dama na dança, estava começando a me apaixonar por tudo aquilo, estava um tanto fechada para relacionamentos, mas na verdade o que me encantava era o ambiente, as pessoas, a dança, a comida, a bebida, até mesmo o sotaque já não soava com tanta estranheza. Sinceramente não estava também acostumada com um rapaz tão cortez, até pensei que não devia levar a sério. As amigas sempre me falavam que os rapazes do sul eram muito galanteadores e eu pensei que talvez fosse apenas o jeito mesmo do guri do sul.

Olhei pra trás e não vi mais minhas amigas e perguntei ao rapaz:

_ Você viu onde foram as meninas?

_ Acho que eu estava perdido olhando pra outro lado, não vi onde elas foram. Você não quer beber um suco?

Lá fui eu seguir novamente a sugestão do rapaz e quando dei por mim o suco de uva era um vinho de mesa, bem suave, tão suave que se bebe sem sentir. Pedi mais um e ele também.

Depois de alguns minutos saímos para passear e buscar as amigas na feira eu estava a vontade, já acostumada com muita coisa, e Victor passou o braço pelo meu pescoço, e não estranhei, já havia me acostumado a ele também. Só não havia reparado como era perfumado.

A apresentação de dança gaúcha começou e ele me chamou para assistir, logo que a música começou, o guri deu-se a palmear a música com as mãos, fazia batidas ritmicas com os pés e lá estava ela cantando à minha frente, parecia um menino! Homem-menino me fez rir sem parar, me tirou um sorriso tão espontâneo que ele foi chegando mais perto e roubou-me um beijo. O beijo ainda tinha o sabor da uva, e ele me trouxe pra junto de si, alto como era nem mediu nossas diferenças de altura. Afoito e impulsivo, simplesmente não parou de me beijar até que eu soltasse outra risada cuidando pra que ele não me sufocasse.

Saímos dalí fomos realmente procurar as meninas, e elas atrás de nós, rindo as duas uma pra outra, olharam pra Victor como quem diz "conseguiste né, guri?" Eu pedi para uma acompanhar-me até o banheiro e logo questionei:

_Mas onde vocês estavam que a gente procurou por vocês um tempão.

_Olha desde que eu me conheço por gente o Victor nunca foi de pegar na mão de uma guria e não largar mais.

_Ah! mas você sempre falou que os gaúchos eram assim galanteadores. Eu tava até sem graça achando que era normal e eu que não era acostumada com esse tipo de tratamento.

_Até certo ponto! Porque ele não buscou a minha mão ou a da Carina, né? Não nasci ontem não bonequinha! Viu que graça ele te chamando de Bonequinha. Olha eu tenho ciúmes dos meus amigos,viu? Tô brincado! Amiga, deixa de ser boba, você merece um cara que te trate assim mesmo! Ele é um amor!

Saímos da exposição e fomos para uma festa na casa de uma grande amiga minha, lá já estava frio e eu estava bem cansada de perambular uma feira inteira, a festa estava aconchegante pouca gente, música boa e baixa luz.

Logo que chegamos, Viviane veio nos cumprimentar, bem sorridente, com um jeitinho zen , espiritualista, ela era bem tranqüila, um cabelo cacheado quase na cintura, bem magra e elegante, nos apresentou alguns amigos, muitos já conhecidos por mim, nenhum conhecido pelas minhas amigas Carina e Lucia, muito menos pelo galante Victor. Passeamos pela festa e encontramos outro ambiente com sofá onde a música chegava mais baixa e nos aconchegamos ali.

Abraçadinhos, falamos de tudo na vida, era impressionante nossa sintonia, começamos a beber mais vinho, e ríamos de quase tudo o que dizíamos um para o outro, os beijos ficavam mais intensos, sabíamos que estávamos extasiados, encantados, e ficávamos observando os traços um do outro, Victor desenhava o contorno de meu rosto e contou que pintava quadros, eu contei que fazia poemas, dois seres lúdicos e sonhadores juntos. Não podia acreditar! falamos de cores, falamos de música, falamos de poesia e falamos de nós. Logo chegara Carina conversando com outro amigo meu e logo começaram a se entender, Lucia estava pela festa, conversando contando piadas e causos e se esquivando de alguns rapazes que não faziam seu tipo.

Eu e o guapo dos pampas falamos de tudo naquela noite, nos calávamos para nos enamorarmos, foram tantas coisas ditas e marcantes, como pode ser tão encantador pra mim uma pessoa que veio de tão longe, que não sabia nada de mim e que simplesmente tomou um lugar cativo em meu coração. Uma semana juntos, nos falando todos os dias, nos vendo todas as noites, nos remoendo por sabermos que iríamos nos separar em breve.

E lá estávamos nós no aeroporto, lugar onde nos conhecemos e finalmente nos despedimos, uma angústia sufocante era olhar para aqueles olhos tristes, eu com medo de não vê-lo nunca mais, mesmo me servindo de tantas promessas de seu retorno e sua expectativa de uma visita minha para o sul. Ele sabe que sempre me levará consigo assim como eu o sempre terei comigo. Sabendo que a distancia dali pra frente seria uma realidade entre nós, prometi a ele que sempre beberia uma cuia de chimarrão quando sentisse sua falta. Ele guardou com ele um brinco de borboleta para lembrar-se que ele sempre poderia voltar quando quisesse.

Esses dias recebi um pedido na webcam. Era Victor me pedindo para que eu ligasse a câmera estava lá ele com a surpresa.

_ Bonequinha! Aqui está o esboço do nosso primeiro quadro, na exposição de outubro a legenda dele será a tua poesia. Tu deixas que eu coloque tua poesia junto da tela?

Comecei a rir mesmo querendo chorar, que surpresa linda! Eu senti um frio por dentro, fiquei nervosa, emocionada, lisonjeada, tudo ao mesmo tempo. Quanto sentimento num mesmo instante por só surpresa.

_ Você me pintou mais ruiva, guri! Que saudade de você, não acredito que você fez isso!

_ Você não gostou? Capaz!

_ Claro! Ta lindo! Eu não esperava uma surpresa dessas!

_ Bonequinha to morrendo de saudade! Quando tiver pronta a tela eu mando a foto pra você até você vir ver. pessoalmente! agora não tem desculpa, vais ter de vir pra cá! Para veres pessoalmente, né?

_ Mas se eu for será no verão e a exposição é em Outubro.

_ Mas essa tela aqui eu não vendo por dinheiro nenhum! Ela vai ficar enfeitando o meu quarto!

Ele ria entusiasmado, e posava de lado da tela, parecia de novo um menino! O homem-menino como quando o beijei pela primeira vez. Que saudade invencível essa que me toma! Uma tristeza profunda, desolação, a distância me separando daquele encanto! Quem sabe um dia eu não saio daqui? Eu penso que a felicidade é bem capaz de estar pra lá. Dois sonhadores, dois corações sedentos de saudade querendo enfim um tempo a dois, um tempo a sós, um tempo pra nós, sem hora para dizer adeus, sem dia marcado pra ir embora, sem hora marcada ser ver, que seja via internet. Nada mata essa saudade, uma fúria me toma quando me lembro que estamos distante apenas por terra e tão perto um do outro pelos corações.

Izabel Bento
Enviado por Izabel Bento em 30/08/2008
Reeditado em 08/09/2008
Código do texto: T1152925
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