O VÕO NO TECO-TECO


Tinha eu uns onze anos de idade quando me veio uma tosse sufocante, fruto de gripe mal curada. Lambedores de ipecacuanha, hortelã, abacaxi e tinturas de ervas dosadas por seu Florenço Xique-xique - um preto de avental e cabelos brancos, dono de uma tenda de mangalhos na feira da Torre, considerado medicastro por uns e benzedeiro por outros -, de nada serviram. Quando me atestaram “crise asmática”, Dona Anginha aumentou a dosagem das suas preocupações. Falou e escreveu a familiares nossos, dramatizando os meus acessos de tosse. Foram chegando as doações e eu passei a me sentir uma cobaia infanto-juvenil saturada de Xarope Brandão, de Limão Bravo, de Gotas Ibel e de tantos outros fármacos sem proveito e resultado, às vezes de gosto horrível, que me faziam tão somente mudar a forma de contração espasmódica - “tossindo para dentro”, como observava Marcos.
Foi quando tio Joca aventou a Dona Anginha a idéia do vôo de avião. Do quarto deu para ouvir a conversa dos dois, na sala da frente:
- Tenho um amigo em João Pessoa, o Damião, que é piloto. Já acertei com ele. Tenho certeza que, com apenas dois vôos, o Dinho ficará totalmente curado dessa asma.
- Ai, meu Deus! E se o avião cair, Joca! Dinho não sabe voar. Nunca voou! E se...
- Confie em mim, Anginha! O avião é seguro. O piloto tem experiência. E ele não vai só. Eu vou com ele nesse vôo!
Eu ouvia cada palavra rezando para tudo o que era santo, torcendo pelo sim de Dona Anginha. E ela confiou tanto nos ditos de tio Joca, que meia hora depois seguimos para João Pessoa, eu, Tio Joca e o motorista, Antonio do Caroço, com o qual logo fiz amizade, abrindo com ele a conversa no instante em que pegamos a estrada. Falei da minha tosse, tossi, forçado, para que ele pudesse entendê-la, contei do vôo e da minha coragem (que tremia de medo em meu estômago) , menti verdades e forjei mentiras. Entre as quais que sabia dirigir carro, especialmente camionete.
- Você sabe mesmo, rapaz?
Fiz hum, hum com a cabeça. Ele olhou por cima dos ombros, conferiu o sono de tio Joca, catucou-me com o cotovelo e me desafiou em voz baixa:
- Vamos ver. Quando eu barrufar, você passa a marcha.
Eu sequer sabia o que era “barrufar”. Aprendi quando ele carregou no barulho do motor e olhou para mim com um sorriso de mofa:
- Cadê você, motorista?
- Eu não alcancei a marcha. Você toma o espaço todo!
Ele jogou os ombros para cima, afastou-se um pouco, sorriu calado para não acordar tio Joca, e voltou a carregar no motor. Instintivamente adiantei o corpo, peguei na alavanca de marcha e puxei para o meu lado com toda a força que tinha. O motor rangiu alto, a camioneta deu um salto de cavalo brabo e estancou de vez, jogando para frente o meu corpo e me fazendo bater a cabeça contra a maçaneta da marcha. Dei um grito de dor. Tio Joca jogou o sono fora e, agarrando ao tabeliê, perguntou espantado:
- O que foi isso, Antonio?
- Um burro, chefe – disse olhando para mim – Um burro de aguardenteiro que empacou, de repente. Se eu não brecasse tinha passado por cima.
- Olha só o tamanho do galo na cabeça do menino, rapaz! – e rapidamente pediu um cigarro a Antonio, retirou o papel, colocou o fumo na palma da mão, molhou-o no cuspe, fez uma espécie de emplastro e o colocou na minha testa, no lugar da pancada – Pronto. Logo, logo, ele desaparecerá. Tanto que pedi, seu Antonio, para o senhor ter cuidado! - e ajeitando os óculos de grau no nariz afilado e torto:
- Vamos mais devagar agora, mestre. Meu sobrinho está doente! É capaz de piorar com o susto e com uma poeira dessa! – e apontava para o barro vermelho empoando a boleia e a vida lá fora.
E nada mais disse e de mais nada cuidou, voltando ao merecido descanso de um inspetor fiscal em retorno, após uma jornada diuturna de cinco dias pelo interior do estado.
Enquanto a camionete voltava a vencer caminhos e tio Zé reabria o ronco, eu já me imaginava passageiro do espaço, pintassilgo leve e solto a fazer ninho em nuvem de algodão e, nas divisas entre o branco e o azul, trinando alegria e louvores ao céu.

Voa pequeno ser, segue os andores
da rota do sem fim, que te liberta
da morte na gaiola, a morte certa
para todos os pássaros cantores.

Flauteia, pintassilgo, os teus louvores.
Das nuvens de algodão lança o alerta
aos pássaros canoros, faze a oferta
de novas nuvens pandas, multicores.

Voa, volve, volteja, vai mais alto,
sem temores, sem cisma ou sobressalto,
bem mais alto hás de ir nos vôos teus.

Ao chegares no azul, dá mais ressalto
ao teu trino em soprano ou em contralto,
e canta, canta, canta para Deus!

- Tsitsu, tsitsu, tsitsu, tsitsu, tsitsu...
- Que barulho é esse, Dinho?
- É um pintassilgo, tio.
- Ahhh!
Pus-me, então, a contar os postes da rede de telegrafia, que pareciam correr pelos dois lados da estrada juntamente com o canavial, as tropas de burro, a linha de trem, as casas diminutas encadeadas nos outeiros, as lavadeiras de beira de açude, as garças, os anuns, os marrecos, e tudo o quanto estivesse parado ou se deslocando em nosso espaço visual, de forma mais lenta.

Passa poste, passa trilho
passa poça, passa açude
passa chão, passa talude,
passa pai e mãe e filho
passa garça, passa anum
passa poço e lavadeira
passa praça, passa feira
passa jaca e jerimum
passa ponte, passa rio
passa carro a tarde inteira,
passa pó, passa poeira,
passa planta, passa fio

Contei, cantei, cansei e adormeci.
Acordei, já noitinha, em João Pessoa, na casa de tio Joca. Pedi bênção à tia Dagmar, abracei o pessoal e me estendi na conversa com o primo Nando, da minha idade. Após a janta, o corpo doído da pancada na cabeça, da tosse convulsa que vez em quando dava uma passada em minha garganta, atendi ao chamamento de tio Joca, no terraço:
- Vá dormir cedo que às quatro horas da manha, Antonio irá nos levar ao aeroclube. O vôo está previsto para as quatro e meia. O horário é para que possamos alcançar a temperatura ideal do vento mareiro, necessária ao seu tratamento.
Meia hora depois eu e Nando batíamos estampas de Eucalol no chão do quarto, preparávamos batalhas com soldadinhos de chumbo e aprendíamos novos tipos de brincadeira. Ele me ensinou o bola-quente (uma bola de meia, encharcada, dentro de uma meia longa de mulher - que era escondida. Quem a encontrasse poderia acertar com ela qualquer um que estivesse ao seu alcance. Devia doer um bocado uma bolada nas costas! A ele ensinei o barra-bandeira, o “passe-livre” e teríamos ido mais longe não fosse a voz de tia Dagmar nos mandando dormir.
Quatro horas da manhã acordei com a sacudidela nos punhos da rede:
- Vamos lá, campeão.
Quase não reconheci tio Joca. Vestia camisa e calça de malha grossa, cinzenta, uma touca da mesma cor que lhe cobria os ouvidos. Identifiquei-o pelos óculos redondos, de lentes grossas, e pela fala quase sussurro. Trouxe-me um copo de suco de tomate e um ovo quente. Fazia parte do tratamento. Engoli tudo num repente e tomamos o rumo do aeroclube.
O avião, um teco-teco amarelado, da cor do sol nascente, já estava na pista. O piloto, seu Damião, a quem fui apresentado mal dele me aproximara, encarnava a figura dos pilotos que eu vira em cena nos filmes de guerra. Um gorro de pelica, parecido com o do tio Joca, blusão de couro fechado até o colarinho, calças de brim folgadas nas pernas e apertadas nos tornozelos, botas de cano longo e óculos colados ao rosto, cobrindo quase toda face. Ao nascer da manhã a visão era fantasmagórica. Eu estava assistindo, ao vivo, a apresentação de um piloto americano pronto para atacar a força aérea japonesa.
Conversaram baixo, os dois. Depois fui alçado à cabine e enlaçado ao encosto do banco traseiro, enquanto tio Joça se aboletava ao lado direito do piloto. Fiquei aguardando o avião tomar impulso e ganhar o espaço. Nada. Ouvi vozes lá fora. Alguém gritou:
- Ok! Tanque cheio.
Um vulto surgiu das sombras e se postou junto à hélice do avião. Fez um aceno com o polegar para o piloto e pipocou:
- Contato!
A seguir, com a as duas mãos deu uma rodada na hélice e logo se ouviu o ruído do motor. Ruído ensurdecedor. Tampei os ouvidos com as mãos, mas o ruído só fazia aumentar enquanto o avião começava a se mover sobre a pista. Estamos no ar, pensei. Mas logo tio Joca se voltou para mim, perguntando-me aos gritos:
- Está tudo bem? Está se sentindo seguro? Estamos indo para o início da pista e na volta o avião acelera e levantamos vôo. Se sentir vontade de vomitar use esses sacos que estão atrás do meu banco, ok?
Eu só fazia balançar a cabeça. Não tinha palavra nenhuma na mente ou na boca. Tudo em mim estava direcionado para o vôo. Eu estava prestes a viver o sonho de voar!
Chegando ao início da pista o avião fez uma curva à esquerda, acelerou o motor numa barulheira tremenda! Logo a seguir senti uma onda de frio subindo dos pés à barriga e depois à cabeça, uma força desconhecida me imprensando contra o encosto do banco, e me veio a visão do sol nascente nos confins da praia de Tambaú. Uma gema de ovo enorme saindo do mergulho das ondas. Eu estava voando!!!
Fazíamos voltas no ar enquanto o avião ia ganhando altura. O barulho do motor se reduzira ao do escape de uma moto. Terra, céu e mar intercalando cenas extasiantes diante de meus olhos ávidos de luz. Estávamos bem perto de alcançar as nuvens quando o avião começou a trepidar e a dar pinotes como burro manhoso.
- A turbulência está forte. Vamos subir mais um pouco
Não sabia de quem era a fala, se de meu tio ou do piloto. Só sabia que estava me sentindo tonto e torto. Uma zoeira desconexa na cabeça e no estômago. O chiado dos pulmões mudando de tom e eu mudando de cor na voz de tio Joca.
- O menino está ficando verde!
Foi só o tempo de pegar um saco e enfiar a cara nele. Achei que tinha botado tudo para fora: estômago, intestino, pulmões, coração. Depois a ânsia agoniada de morte me forçando a botar para fora o que já não tinha. O suor empapava os meus cabelos, corria pelo rosto, ensopava a camisa, o corpo inteiro. Comecei a tremer de frio. Um frio de dentro para fora, desmedido e cada vez mais intenso. Meu tio abriu a minha mão, tirou o saco que nela estava preso, amarrou-lhe a boca, segurou-o fora da carlinga e perguntou ao piloto:
- Estamos aonde?
- Sobrevoando o mar da praia da Penha.
- Ótimo! – e numa espécie de oração: - Recebe mar da Penha a asma de meu sobrinho. Que ela se vá e não venha, que se perca no caminho.
Damião inclinou a aeronave para acompanhar o vôo final do saco preto até perdê-lo de vista:
- Pronto. Esta já se foi.
Eu havia recobrado totalmente os sentidos. A tremura desaparecera. A ânsia de vômito fora substituída pela sede que me deixava seca a garganta. O estômago e o intestino ronronavam em paz. Os pulmões pareciam aliviados de uma carga enorme de secreção. Eu respirava como de há muito não fazia. Estávamos voando por entre as nuvens. Eu aspirava o ar pelas narinas e o expelia pela boca. Parecia estar soprando fumaça. Estava respirando nuvens!
- Tio! Olha eu soprando nuvem pela boca!- com o rosto para ele direcionado eu soprava forte, vendo, em meus olhos de sonhos, o jato de nuvem seguir em frente, roçar os cabelos de meu tio e voltar aos caminhos do céu.
- É mesmo, Dinho! Que bacana! Olha só, Damião, o menino baforando nuvem!
Que bom se eu pudesse guardá-las dentro do peito! Delas encher os pulmões. Levá-las comigo para Campina Grande e soltá-las, aos pouquinhos, durante uma partida de futebol no quintal de Dona Anginha, para que todos nelas tocassem e lhes vissem a subida aos céus para o reencontro com o azul!

Nuvem que vai e vem aos trambolhões
desse vento mareiro azucrinante,
descansa a debandada, por instante,
e umidifica o ar de meus pulmões.

Nuvem virgem, que vasta os aviões
a cada vôo errático e rasante,
liberta-me da vasca sufocante
nessas tuas celífluas vagações.

E me permita que eu te beije, e leve
um pouco desse branco, feito neve,
dessa tua pureza de lagoa,

como se fora um lembrança tua
à brisa que percorre a minha rua
ao vento que vagueia em João Pessoa.

Voltei às visões do vôo com a voz do piloto a me chamar a atenção:
- Olha lá o DC-6 da Panair, campeão! Aquilo é que é avião!
De fato. Parecia um gigantesco pássaro pré-histórico passando à nossa direita sem nos dar a mínima atenção. Dava para ouvir o diferencial do ronco surdo de seus motores, apesar da distância.
- Tem alguém com asma nele, tio?
- Não, meu filho. É um avião de carreira. Com certeza está indo para Recife. Logo, logo, estará aterrissando por lá. Falando nisso, vamos voltar ao aeroporto. Já completamos os quinze minutos de vôo. Está sentindo alguma coisa?
Respirei fundo e forcei a tosse. Nem chiado no peito nem vontade de tossir. Apenas o intestino continuava roncando e provocando pontadas na barriga:
- Não, tio. Somente dor de barriga.
- Deve ser verme. Mande Anginha preparar um lambedor de batata de purga. É tiro e queda.
O teco-teco fazia, agora, os movimentos inversos. A cada volta ia ficando mais perto da terra e mais longe das nuvens de alvaiade. A dor de barriga ia aumentando a cada volta que dávamos. Quando o piloto anunciou que íamos aterrissar e que verificasse o cinto de segurança, além do cinto eu estava a apertar a barriga com os dois braços em cruz. Tio Joca quando se voltou para ver se eu estava preparado para o pouso, notou o meu corpo encolhido e a dor estampada em meu rosto.
- É a dor de barriga?
- É, tio.
- Sustenta aí mais um pouquinho que daqui a pouco estaremos em casa.
Quando as rodas alcançaram o solo e o avião começou a saltitar na pista, comecei também a saltitar gazes. Graças a Deus o barulho do motor abafava qualquer outro som. Mas o cheiro, esse não podia ser abafado. O avião ainda corria a pista, quando tio Joca perguntou:
- Foi você, Dinho?
Fiz-me de desentendido:
- Eu o quê, tio?
- Esse cheiro?
- Foi da dor de barriga.
- Passou?
- Passou, tio.
- Então você foi curado por cima e por baixo!
Foi uma risada só. Até eu sorria alto enquanto o avião estacionava junto ao hangar.
Duas horas depois já estava a caminho de Campina Grande, levando comigo trinta refugos de estampas Eucalol, doação inesperada de Nando, as bênçãos de tia Dagmar e as recomendações de tio Joca, para mim e para o motorista que, na saída de Santa Rita, foi logo me perguntando:
- É verdade que te deu uma turica lá em cima, campeão?
- Eu botei foi a asma pra fora!
- Sei não, campeão. Acho que você tinha era uma gripe mal curada, daquela que fica presa no pulmão. Nas sacudidas do vento, soltou-se tudo. E isso é muito bom. Você agora pode correr, tomar chuva e gritar à vontade. Garanto que aquela tosse tão cedo não volta.
- Aquela não volta mais não, seu Antônio. Tio Joca jogou bem no meio do mar. Eu vi quando o saco bateu na água e afundou. Parecia um barco quando naufraga: desaparecendo e pedindo socorro no vento das bolhas.
Ele sorriu e me bateu na perna:
- Tem razão, campeão. Aquela não volta mais. Morreu afogada, pelas mãos do chefe.
Devia ser terrível uma morte por afogamento, pensei. A luta para resistir à força atrativa da água; o peso das roupas encharcadas submergindo a força do corpo; a insistente resistência do corpo cansando os braços; os braços cedendo ao cansaço das mãos; as mãos atônitas, à tona, procurando arrimo, parecendo acenar despedidas.
A fadiga do vôo, o sol ofuscante batendo em meu rosto, e o ronco cadenciado do motor da camionete, fizeram-me pegar no sono.
Havia criado asas. Asas azuis. Voava em meio às nuvens, deitava-me sobre elas. Tocava o azul do céu com as pontas dos dedos. Sentia a sua maciez. Parecia de seda. Voei em voltas ascendentes até ultrapassar os seus limites. De repente, flores! As mais lindas e diversas flores! As flores do céu! Abracei-as no quanto alcançavam as asas do colibri em que me tornara. Eram muitas, infinitas e definitivamente belas, sorrindo rosas e falando orquídeas!

Que fazes, colibri, a tanta altura,
com tuas azas frágeis, multicores?
Como chegaste aqui no céu das flores,
pequenina e volante criatura?

- Venho em busca das brisas da mais pura,
à procura da cura às minhas dores.
Voltejo aos céus para pedir favores,
um linimento para a minha cura.

- Que sentes colibri? O que podemos
fazer por ti, das as cores que nós temos?
- Eu sinto, em meus pulmões, falta de ar!

- Usa das asas para colher brisas
pequeno colibri, O que precisas
é somente voar, voar, voar...



- Acorda, campeão. Chegamos!
- E aí, meu filho, tudo correu bem?
As vozes do motorista e de Dona Anginha me trouxeram de volta à realidade. A visão do rosto iluminado da minha mãe, do muro descorado da nossa casa, de meu irmão Marcos a me afagar os cabelos. Meus passos meio trôpegos, casa adentro. A puxada forte de vento, pelas narinas, e o sopro inda mais forte pela boca - sem acusar chiado ou acesso de tosse - no meio da sala, diante de todos, e a revelação:
- Estou curado, mãe! Não tusso mais nem sinto falta de ar!
- Graças a Deus, meu filho! Eu rezei tanto por você! – as lágrimas corriam pelo seu rosto de santa. E eu as beijava e as colhia em meus lábios como se fosse um colibri sorvendo o néctar das flores do céu.
A alegria tomou conta do rosto de Marcos, dos braços de Geraldo, das bênçãos de Maria, das mãos de Gilza, dos beijos de Terezinha, e do canto dos pássaros à chegada da noite.
No outro dia, um sábado, antes do início da partida de futebol no quintal da casa de Dona Anginha, o assunto era o meu vôo no teco-teco. Exagerei o máximo que pude. Dirigira a camionete um bom pedaço. Durante o vôo fizéramos folha-seca, derrubáramos urubus com as pontas das asas e, por pouco, não houvera a colisão com um avião da Panair! As manobras rasantes sobre o mar de Tambaú, tão rasantes que lhe espanavam as águas. E a aterrissagem forçada, “de barriga”, em razão de falha no trem de pouso - a marca da pancada na cabeça atestando a perigosa descida
- Teco-teco não tem trem de pouso, Dinho! – só porque era o nosso goleiro oficial, Evilásio agarrava tudo o que a gente dizia. E sempre o fazia de forma duvidosa.
- Esse em que eu voei tinha!
- Mentira.
- Quando tio Joca aparecer aqui em casa eu vou provar a você que aterrissamos de barriga.
Vencemos o jogo, o tempo foi vencendo a história do vôo , até que um dia, quando nos preparávamos para uma nova pelada, Dona Anginha gritou, da porta dos fundos:
- Dinho, venha pedir as bênçãos ao seu tio Joca.
O coração acelerou. Lembrei das mentiras. Corri pelo oitão para alcançar tio Joca no terraço, antes de todos, ciente dos passos que corriam atrás de mim. Topei de frente com Antonio Caroço, que me amparou num abraço:
- E aí, campeão?
Junto comigo, quase colados, já estavam Evilásio, Nebal e René. Cutuquei o braço do motorista, pisquei os olhos para ele e lhe perguntei, temente da resposta:
- Antonio, eu não dirigi a camionete?
Ele sorriu sorriso de amigo, correu os olhos pela platéia ávida de um não, e respondeu:
- Somente até o Café do Vento.
Dei um tapa agradecido em seu peito e subi para o terraço acompanhado do séqüito de duvidosos. Não havia tempo nem oportunidade para negociar a prosa com tio Joca. Ele já me vira e me estendia as mãos. Não perdi tempo:
- Tio Joca, no vôo que eu fiz havia-dor-de-barriga?
- Sim - e vendo a criançada à minha volta: - Mas você foi muito corajoso e em momento algum teve medo. Você foi um verdadeiro herói!
- Obrigado, Tio. Mas, por favor, repita para eles: não foi de barriga?
- Tremenda! Até eu fiquei preocupado.
- Obrigado mais uma vez, tio. Bênção?
Voltamos para o campo de pelada. Eu, um herói das alturas e da aterrissagem “de barriga”. Os outros eram apenas olhares invejosos, que me faziam sentir bem mais alto do que pudera alcançar com o vôo no teco-teco.