As noites do morro

O primeiro deles foi deitar-se. As balas traçavam o céu sem estrelas do morro. Eram como cometas desgovernados pelo ódio. Ficar trancado em casa, jogar algum jogo com os vizinhos, mesmo que tremessem de medo ao ouvir os barulhos apavoradores das armas dos narcotraficantes, era o preferido.

Moisés ralava o tabuleiro surrado com as pedras de osso da dama. Entre os dedos amarelados da mão direita segurava um cigarro aceso que vomitava uma fumaça branca. A cerveja quase morna estava esquecida no canto da mesa. Outros olhavam o jogo correr como satisfeitos espectadores.

Comi você, Moisés!

Coma o tabuleiro todo e se engasgue com ele.

Você não sabe perder mesmo.

Sei, só não, gosto.

Vamos à última?

É a negra mesmo?

Parece que é. Vamos ver.

Uma rajada de metralhadora ao longe não fez tanto medo como a vidraça do postigo quebrada bruscamente por uma bala perdida. Estrondo menor, porém próximo deles.

Ai Deus, que horror! Abaixe-se, homem...

Eu vou lá perder meu tempo. Quando for pra mim, ela vem mesmo...

Eita, Moisés, como você é frio! Quase morríamos. Você nem sai do lugar.

Comi sua dama. Ta aí, vai sentir medo, desvia o raciocínio do tabuleiro e eu como. Assim você perderá todas elas.

Cara, com este estrondo atrás de nós, e você não se liga? Eu perco é tudo.

Deixe os meninos brincarem com suas armas. Se se apavorar, morre mais depressa. Não tem jeito, mesmo...

Eu hem! Vá ser assim duro na queda lá no raio que o parta.

Que é isso, Arruda, não me queira mal. Sou assim mesmo, irmão..., não te ofenda.

De nada você tem medo, Moisés?

Só de mim mesmo.

Como? De você?

Tenho medo porque não sei sentir medo. Tu me entende?

Não! Nem quero, tá?

Só vou morrer uma vez. Pra que morrer de susto cada dia um pouco? Isso fica pra tu, mano. Eu quero mesmo é jogar dama. Não vai outra? É cedo ainda.

Fui dormir encabulado. Moisés morava no primeiro andar. Dividíamos o prédio de dois andares por mais de dez anos. O mano era o mano. Nós não tínhamos pra onde ir. Era o jeito suportar aquela vidinha cheia de medo trancados na saleta do térreo.

Quando amanheceu e o sol já bafejava o mormaço do começo do dia, fomos trabalhar. Até a estação Central do Brasil íamos juntos. De lá eu ia para a Cruz Vermelha e ele para a Cinelândia. Uma rotina de trabalho de anos.

À tardinha, tínhamos o hábito de nos encontrar à frente de um pequeno bar na Avenida Rio Branco, e para lá já me dirigia, Vi uma multidão. Olhava abismada um acontecimento curioso. Aproximei-me e, estarrecido, vi que havia um morto estendido no chão da calçada vermelha de sangue. Era Moisés. Disseram-me que havia morrido minutos antes de minha chegada. Uma marquise caíra de um prédio e esfacelou sua cabeça. Foi aí que me lembrei dos nossos jogos de dama, minha preocupação com os tiros. Talvez Moisés tivesse razão em possuir aquela tranqüilidade toda. Estava escrita sua vida.

E por fim, o formigueiro de pessoas da Rio Branco se acordou, a Central ficou superlotada e o Rio, entre favelas e palacetes, continuava o mesmo de sempre, lindo e cheio de contratempos e desafios. Eu nunca mais joguei damas sem me lembrar de Moisés. Quando se estampavam os tiros, procurava aquietar-me e fingir não sentir medo.