COMPLEXO DE TIRÉSIAS

Mediante as imprevisíveis preferências do destino, Noeli ainda nova, resolvera por espontânea vontade fechar os olhos para as circunstâncias que cercavam a ela e às quatro irmãs. Eram quatro meninas residentes na grande casa da Rua Tirésias, mas somente uma delas, Constança, a acompanhava na idade e na infância.

Noeli, na condição de caçula da família, possuía em sua essência feminina as mais notáveis visões de valores de integridade e responsabilidade, uma tendência para a obediência impreterível aos pais e mestres na escola. Ora Constança, dois anos mais velha, uma traquina descompensada das virtudes da irmã, agia como o filho homem que aquela casa não vira nascer. Pulava muro, subia em árvores, ia para calçada prosear com os amigos à noite e no colégio era de um comportamento inquietante. A outra, dada às tarefas do lar, fazia o café a mando de seu pai, tinha a meiguice de toda a rua e no colégio era de uma disciplina louvável. E eram amigas. Amigas muito além de irmãs, apesar das diferenças.

Noeli alimentava seu temor dia após dia do pai, dos mestres, da desobediência e do que lhe parecesse superior. E tudo parecia cada vez mais superior do seu parecer sensitivo de menina. Quanto à Constança, ignorava propositadamente tudo que a outra temia. Via tudo acontecer e , ao contrário da irmã mais moça, fez mais uso dos olhos que da intuição. Para Constança tudo era assim: objetivo e literal.

A caçula demarcada pelo temor da austeridade sentia, uma vez feita a opção de anular o dom da visão. Seus olhos serviam os detalhes da casa, a compra do pão, as tarefas da escola. E como quem tem um sentido nítido omisso, desenvolvera a intuição, sentido este que ninguém podia ver e a mesma podia coordenar sem outra intervenção. E com esta visão interna, sentira Constança em sua felicidade incorreta de menina - moleque, isenta de dar exemplos, isenta, ao que lhe parecia, até mesmo de consciência.

Resmungava para as outras da casa, com seu ar responsável, um desdém, uma repulsa por aquele não se importar quase ofensivo da irmã, e chegava a tolher-se ainda mais, sendo cada dia mais recatada pelas duas , como forma de oração por aquela mente que por ser mais velha , esperava-se mais sanidade. Mas no fundo, sua intuição lha mostrava , somente para ela, o verdadeiro sentimento de inveja despertado por Constança. Invejava-lhe e tinha a certeza de que a mais velha vivia a idade com um vigor que Noeli não conseguia, coisa da natureza dela. Não era de brincadeiras bobas e risos fáceis, sabia de sua condição e a aceitava resignada , mas queria, queria sim ser como Constança.

Um dia na casa da família veio a notícia: Constança não passara nas provas de recuperação, teria de repetir o ano. Estudaria agora na mesma classe da pequena Noeli, ambas fariam a 3ª série juntas. Abraçaram-se e a caçula suportava-se numa mescla de vingança pelo fracasso da indisciplinada, sensação que reforçava seu êxito nos estudos.

Passado o baque da má notícia, as pequenas começaram os estudos lado a lado e Noeli via todos os dias o anti-heroísmo da irmã enquanto tentava resolver as equações matemáticas. Toda aquela estripulia incomodava não só à menina, mas ao rigoroso Professor Mota, que possuído pelo incômodo daquele desdém feminino, ralhou-a meio a todas a criançada:

- Preste atenção, Constança! Pelo amor de Deus!

-Pra quê, se eu já sei disso?- respondeu a petulante.

-Sabes? Então porque não vem resolver aqui no quadro, diante de todos. Vamos ensine seus colegas!

Pois a capeta foi. Foi e resolveu a tal da equação. O professor ficara de cara. Como se não bastasse, desenvolta, a pequena explicou toda a lógica que aplicara. O senhor Mota não se conteve:

- Essa menina é muito inteligente!

“Um porco antiético, isso sim!” Noeli mordeu-se por dentro de raiva por seu conceito de escola se esvair ao ver a indiferente cair em graças. Não se via da outra nem o mínimo esforço que ela aplicava e no entanto...!Sua intuição mais uma vez sentiu inveja, e pior: a sensação de que o esforço nunca seria tão contemplado quanto um talento. Olhou lentamente seu caderno onde havia resolvido, incorretamente, a equação. Não chorou, mas sonhou naquela noite com um cego lhe avisando que ela, ainda que a injustiça fosse pertinente, teria um destino próspero.

Juliana Santiago
Enviado por Juliana Santiago em 27/09/2008
Código do texto: T1199335
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