Resquícios

- Na maior parte do tempo, sinto falta dos dias ruins.

A voz rouca – o som envelhecido de um corpo lentamente vencido pelas horas – soou como uma leve e distante brisa dentre as quatro paredes. Paredes estas tão brancas e opressivamente simples, somando-se ao pequeno e escondido quarto, igualmente constrangedor em sua simplicidade.

Constrangedor – porque sua carcaça era como uma mancha rubra naquelas paredes pálidas. Sua presença não pertencia à presença daquele âmbito. Aquele era um abrigo – mas não para sua alma corroída. Era o santuário de uma única.

- Você é simples em seus desejos – a voz branda lhe respondeu, tão suave que parecia distante. Mais do que deveria.

Riu, seus ombros acompanhando fracamente o movimento.

- Não são desejos – explicou lentamente, mesmo sabendo que, não importando suas palavras, ela entenderia. – Só sinto falta, nada mais.

- Então, por que uma falta tão simples? – ela questionou, as palavras vindas de alguma esquina do quarto, às suas costas. Porém, não precisava vê-la para sentir o leve sorriso de uma criança que compreende, mas prefere não dizer. O sorriso de uma criança, no rosto de uma mulher, que queria ouvir e descobrir se havia algo mais a entender.

Ainda de costas para sua anfitriã, deixou-se largar sobre a cama de casal, sobre a coberta azul-clara com pequenas flores pintadas, sobre o colchão quase duro a que se acostumara anos antes. E, mesmo acostumado, sentiu a mesma pontada dolorosa em sua coluna, como todas as outras vezes. E, só depois de senti-la, deixou que os ombros pendessem.

Já se fora o tempo em que podia ficar horas de pé naquele quarto, encarando as mesmas paredes sem cor. De pé em seu lugar preferido, à porta, costumavam ter longas conversas. E, durante tais conversas, nunca se virava para observá-la em seu local favorito. A mesma esquina do pequeno âmbito.

Certas coisas nunca mudariam. E, mesmo sabendo que ela sempre aguardava suas visitas – apesar de, talvez, não tão ansiosamente quanto ele -, a sensação de que invadia o lugar com seu exército de lembranças nunca mudaria, assim como a mancha rubra nunca desapareceria das paredes pálidas. Tal mancha era o sangue dessas mesmas recordações – as suas, e talvez as dela – sendo relembradas e destruídas com cada palavra saudosa.

Pois sabia que a nostalgia distorcia recordações como nenhum outro sentimento.

- Porque as mais simples trazem as melhores sensações – comentou levemente, encarando a parede à sua frente, enquanto um rápido olhar sobre o criado-mudo confirmava que este continuava como sempre estivera: tocado apenas pela poeira. - E, dos dias ruins, ficou na minha boca o sabor do leite quente que sempre tomávamos antes de dormir. E você dizia…

Fechou os olhos por alguns instantes, interrompendo-se. E o pequeno sorriso em seus lábios agora finos deixava claro que não esquecera as palavras. Apenas relembrava a sensação de ouvi-las.

“Lente quente… para garantir um sono igualmente quente, sem preocupações…”, continuou enfim, escutando-a acompanhá-lo com uma voz suave.

Sorriu consigo mesmo.

- Eu acho que preferia o café preto das manhãs seguintes – a mesma voz cadenciada ofereceu-lhe como única resposta.

O sorriso desapareceu lentamente em meio ao rosto enrugado. Baixando o olhar para as mãos, encontrou os mesmos dedos longos e grosseiros de tanto tempo, agora encobertos por uma pele translúcida que, mesmo depois de vinte anos, não reconhecia. Ainda assim, sabia que todo seu corpo se via formado do mesmo tecido frágil e envelhecido.

Era agora um galho prestes a cair de uma árvore.

E não sabia se a tempestade tardaria a chegar.

- É estranho que não consiga lembrar-me dos bons dias… - murmurou, sentindo uma leve melancolia invadi-lo.

- Não se preocupe. A rotina não deixa marcas duradouras – ela disse suavemente, e a languidez em suas palavras o fez fechar os olhos por alguns instantes, saboreando cada palavra. – No fim, o que interessa são os dias difíceis. Eles nos trouxeram os melhores momentos de companhia.

- Talvez… - respirou fundo, tentando ignorar a sensação de que, até mesmo naquele momento, algo lentamente o corroía por dentro –… mas até mesmo os dias ruins estão desaparecendo nesse turbilhão. Tenho medo de que eles se esvaiam mais rápido que meu tempo aqui…

- E haja um grande vazio no final – a mesma voz completou gentilmente, e ele sabia que ela sorria novamente. Desta vez, um sorriso de triste compreensão.

Uma brisa levemente fria correu por suas costas, ainda voltadas contra aquela esquina do quarto em particular. Fechando os olhos por breves momentos, deixou que a sensação acariciasse a pele de seu rosto. E, ao abri-los mais uma vez, viu-a transformada em uma mão tão pálida quanto as paredes, seu toque tão fresco quanto o vento frio, acalmando suas preocupações por alguns instantes.

- Porque horas vazias parecem ultrapassar os minutos e durar anos – disse, não tentando evitar o amargor em sua voz.

E olhos claros o encaravam, donos de todos os sorrisos que já conhecera.

- Não se atenha às horas para prolongar algo tão doloroso, John. – Os dedos frios voltaram a acariciar seu rosto. – Atenha-se aos segundos, para que possa superar esse final mais rapidamente.

Deixou que suas pálpebras caíssem, inspirando longamente – e quase podendo sentir o antigo perfume floral que costumava preencher o lugar. Depois de tanto tempo, era difícil detectá-lo em meio ao odor acre do antigo. Porém, ainda estava lá.

Doía-lhe perceber como, com o passar do tempo, tornava-se cada vez mais difícil sentir tudo o que o quarto guardava. Sabia que, em cada recôndito, havia uma lembrança à sua espera.

E, reconhecendo tal dificuldade, libertou um longo e pesaroso suspiro de seu peito carregado. Um gesto mudo, mas que anunciava rendição. Cansaço, talvez. E um pouco de ansiedade.

Pois almejava, mas do que tudo, reaver as velhas sensações. Não apenas as dos dias ruins, na verdade. O gosto do café preto das manhãs… aquele já lhe era um estranho. Mais uma peça perdida do que antes era um quebra-cabeça perfeito.

E, depois de vinte anos, a imagem já perdera tantas peças que mais se formava por falhas – por buracos – do que verdadeiras lembranças.

E, com aquela constatação, veio a mesma leve melancolia de antes, agora crescente, pesando tanto em tão pouco tempo que criava um nó dolorido em sua garganta. Seus olhos ardiam, seus ombros agora pendiam, sem forças, o sentimento de vazio engolindo-o ainda mais.

Mesmo sabendo o que veria, abriu os olhos uma última vez. E, mesmo prevenido, a dor não foi mais branda. Pois, olhando ao redor, as paredes pálidas tinham dado lugar ao amarelado da tinta envelhecida. A coberta azul, substituída pelo desbotado. A distante lembrança do perfume floral agora totalmente sobreposta pelo desagradável cheiro de memórias partidas e espalhadas por todo o quarto.

Olhando para suas mãos, elas enfim lhe pareceram familiares. Pois a carcaça velha, a mancha rubra na palidez do quarto, fora a única coisa que restara dentre todas as ilusões que guardava naquele quarto há vinte anos.

E, quando então tomou a coragem que nunca tivera em todo aquele tempo para enfim virar-se, sentiu o salgado sabor da nostalgia em sua boca ao avistar, naquela mesma esquina do quarto, o velho vestido de flores. O desbotado também tomara conta das pétalas pintadas, assim como o amarelado o fizera, e a acridez que tomara conta do suave perfume de que se lembrava fez seus olhos arderem ainda mais.

Erguendo-se lentamente, como alguém que arrasta seus últimos passos, buscou novamente o frescor daquela suave brisa. E a acidez daquele momento diminuiu quando percebeu que ele ainda estava lá. Quando notou que a mesma mão pálida e gentil ainda tocava seu rosto.

Indo até a porta – e levando consigo aquele doce frescor – tomou a maçaneta fria em uma das mãos e trancou-se ali dentro, protegendo-se das lembranças não relacionadas àquele quarto, não relacionadas a tudo que construíra naquele espaço tão pequeno.

- Que sejam os segundos, então.

E, encarando as paredes, sorriu após as palavras murmuradas por si mesmo.

A macha rubra começava a fundir-se com o pálido, enfim.

Lumack
Enviado por Lumack em 09/03/2006
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