O Despertar

"Bruna!", gritou o garoto com toda força, por trás de grades de ferro com o triplo do seu tamanho e pintadas de verde, amarelo e vermelho. Disfarçadas de lápis de cor gigantes, na verdade, as antipáticas não estavam lá para brincadeira, como poderia supor um menininho como esse que gritava o nome da amiguinha. Mas não devia ser esta a preocupação daquele que, do lado de dentro de um espaço delimitado, sabe-se lá por que razão, tentava impedir que a menininha de cabelo castanho uns 50 metros à frente, seguisse o seu caminho.

Do outro lado da rua, atendi ao chamado. Meu nome não é Bruna e estou uns vinte tantos anos afastada da meninice. Não tenho filhos e, há muito, nem um contato muito próximo com crianças, especialmente estas que diariamente ocupam o lúdico vão entre a grade de lápis de cor e o casarão colorido. Não vejo, portanto, explicação para o fato de ter virado o pescoço em direção ao garotinho naquele momento. Tal atitude é comum para um tipo mais sentimental de mulher, que umedece as pupilas ao ver um rostinho angelical, uma bochechinha rosada, um bebê Johnsonn. Esta não era eu. Mas o fato é que, assim como a verdadeira Bruna, que seguia serelepe conduzida pela mão firme do jovem pai, achei que a conversa fosse comigo.

A caminho do trabalho, uma vez por dia, tinha de passar em frente ao casarão. Pelas grades de lápis de cor, ouvia o zum-zum da criançada que corria de um lado para outro numa função de pega-pega, esconde-esconde ou simplesmente, corre-corre, já que criança nunca precisa de motivo para estar em movimento. Também de dentro do pátio, vinha a poeirama que insistia em se instalar nos meus belos terninhos modelo jovem mulher de negócios. Abanava o ar com a pasta executiva, respondia timidamente ao "oi, tia", que se multiplicava naquelas vozes como efeito dominó e seguia em direção ao trabalho burocrático de todo dia.

Agora, porém, a voz que eu ouvia era infantil demais, meio esganiçada, soava quase irreal, como aquelas dublagens de crianças em filmes americanos. "Bruna!", repetiu ele uma vez mais, em tom dramático. E não era necessário. Ela já havia parado e eu também.

Seis horas da tarde, talvez mais. Às vezes os pais se atrasam. Mas este não era o caso da pequena. De costas para o menino, ela seguia um caminho que parecia rotineiro. Pezinho 29 ou 30, multiplicava os passinhos para acompanhar o jovem que caminhava mais à frente indicando a trajetória. 30, 31 anos, no máximo, eu apostei. Olhos claros, aproximadamente 1,75m, não muito alto para um homem, um rosto meio amadurecido mas com traços de uma juventude que se impunha, apesar da menina graúda que trazia pela mão e que, pela semelhança física, parecia ser sua cria.

Havia também uma pontinha de tristeza no olhar com que ele acompanhava as reações de Bruna. Mas era tão charmosa aquela característica e se encaixava tão perfeitamente na cena que se desenvolvia, que não resisti em aproximar-me um pouco mais. Agora, podia ver docilidade naquele pai, mas também um desânimo que devia pesar umas mil vezes a mochila cor de rosa da Barbie que ele gentilmente trazia ao ombro esquerdo poupando à filha o esforço de carregar. “Ela parou: vou ter de parar”, “O que será que ela vai aprontar desta vez?”,“O que faço eu deste não sei o que fazer enquanto ela faz alguma coisa que ainda não sei o que é”. São tantas as questões que podem ter ocorrido a ele antes de um suspiro profundo. Ser pai também não é fácil, ainda mais quando se é jovem.

A coisa toda levou apenas alguns segundos para acontecer, mas foi o bastante para me trazer do outro lado da rua para dentro daquele roteiro. Mirei o jovem e engatilhei o sorriso amistoso. “Ele é pai”, repeti mentalmente, como última tentativa de censura. Já era tarde, ele retribuiu o sorriso com delicadeza, como se me convidasse para acompanhar o desenrolar dos acontecimentos.

O trânsito era movimentado, como de costume, horário de pico. Final de tarde: todas as pessoas desesperadas para chegarem as suas casas. Eu, inclusive. Tivera um dia não muito diferente dos demais. Executara ordens usando algumas técnicas aprendidas na universidade. Esta era a minha definição da função que desempenhava como redatora para um site de notícias. Tornara-me boa nisso: garantir, com doses diárias de mediocridade, os recursos para as diversões de fim de semana e das férias de verão. Já havia um bom tempo que não me rebelava contra o fato de ter me tornado uma exímia operadora de Ctrl/C e Ctrl/V, ou copia e cola, como preferirem. Na verdade, meu trabalho se resumia a acessar pela internet as agências credenciadas à empresa, a Reuters, a Press, entre outras famosas, catar as notícias, dar aquela “modeladinha” e passar para a interface da página virtual. É o que eles chamam de notícia em tempo real.

Nem sempre foi tão simples. Recém formada, 4 anos mais nova, ao perceber que este trabalho jamais me renderia um Pulitzer ou sequer um reconhecimento local, passei a mensalmente sofrer crises existências, que vinham lá pelo dia 15 e permaneciam até o último dia útil do mês, quando me ressarciam pelo prejuízo moral. Bastava lembrar que emprego fixo para jornalista é uma raridade; e eu ainda tinha a gloriosa participação nos lucros que a empresa anualmente estendia aos funcionários. Logo, o desperdício da minha criatividade profissional, pensava eu, não era um sacrifício tão grande assim. Isso não quer dizer que eu tenha cedido tão facilmente. No começo, dedicava-me a enfeitar os textos que retirava das agências de notícias, apurava melhor os fatos, confirmava as informações com as fontes mencionadas, ouvia outras, reescrevia as matérias. Trabalho inútil diante de um chefe que se notabilizou pela capacidade de padronização. “Apenas pegue as notícias da agência e dê uma arrumadinha. Não precisa fazer mais do que isso. O importante é ir colocando muitas notícias com rapidez”, disse-me o editor. Nem precisava, já havia cansado da brincadeira de acrescentar informações para que ele cortasse depois. E, desta forma, além dos meus textos jornalísticos, padronizaram-se também os meus dias.

Pouco a pouco, a “rainha da redação” que eu fora nos tempos de escola e da faculdade parara de me acompanhar ao computador de trabalho. Percebeu que não era mais útil. Apesar da minha saudade, resolveu permanecer em casa, nos velhos arquivos de texto, escritos em épocas inspiradoras, a esperar por novos tempos mais dignos de registro.

E estes olhos claros em minha frente, indaguei mentalmente, por quem se entristecem? O que terá este pai guardado no baú? Luvas de boxe? Uma prancha de surf? Um curso superior incompleto ou o desejo de ter um? Talvez um emprego burocrático como o meu. Ou nenhum emprego. Não tenho filhos. Quantos sonhos precisam ser sacrificados para criar uma menininha real como a Bruna? Sadia, bochechas coradas, cabelo castanho bem tratado... Uma creche decente como esta, toda colorida, pomposa, não deve ser muito barata. Talvez ele tenha dias iguais, como os meus, para o bem ou para o mal.

O certo é que o que quer que ele estivesse fazendo por Bruna, parecia estar dando certo. Era uma criança normal. Vestia um daqueles conjuntos de calça e blusinha cor de rosa, completamente imundo, denunciando um cuidado especial materno provavelmente posto a baixo por um dia bastante agitado para uma menina. 5 ou 6 anos, robusta; não gordinha. Apenas uma barriguinha arredondada que se exibia pela blusa desajeitada. Tinha as bochechas reluzentes disputando brilho com lábios pequenos mas volumosos que lembravam a casca de uma maçã vermelha recém lustrada. Inegavelmente, aquela menina era fruto do bonito rapaz parado em minha frente com uma mulher que também deveria ser muito formosa. Arrisco mais: a esposa dele deve ter bastante personalidade. A quem teria saído a Bruna impetuosa que, ao ouvir uma voz familiar, larga a mão do pai e segue em disparada rumo ao encontro do amiguinho?

Ela correu uns 50 metros até a lateral da creche. Separados pelas grades de lápis de cor gigantes, Bruna e o menino finalmente estavam frente a frente, como ele esperava. Na mesma posição, encontrávamo-nos eu e o pai da garota aguardando ansiosos, quase solidários, o desfecho da cena. Até uma leve ruguinha que teimara em denunciar o descontentamento do pai pelo gesto abrupto da filha, já se rendia à curiosidade em saber por que Bruna correra.

Juntos, agora víamos as quatro pequeninas mãos que cruzavam, cada qual para um lado, os vãos entre as grades ensaiando um abraço quase impossibilitado pela barreira física do ferro que, mesmo pintado de cores infantis, não disfarçava sua função rude de separar algo ou alguém de algo ou de alguém.

“Minha amiiiga”, disse o menino em cadência de alívio. “Meu amiiigo”, respondeu ela, repetindo o melodrama do coleguinha. Mais um aperto no abraço por entre as grades e pronto: haviam corrigido o grande deslize de a menina, conduzida pelo pai, quase ter ido embora da creche sem se despedir do amigo de todos os dias.

Do lado de cá, não nos restava mais a fazer a não ser lançarmos um ao outro um sorriso contagiado pela cena encantadora que acabáramos de assistir. Numa matreira corridinha daquelas de criança, logo Bruna estava ao nosso lado novamente, como uma atriz que retoma sua marcação em uma cena. Era a deixa para que eu também voltasse a minha. Então, tornei a caminhar na mesma direção que pai e filha, mas com o cuidado de estar um pouco mais atrás. Voltara a ser a estranha que passara aleatoriamente. Na esquina, eles seguiram em diante. Dobrei à esquerda para casa. Talvez possam ter permanecido em silêncio, retomado a conversa interrompida pelo amigo de Bruna ou agido de forma costumeira pelo resto do caminho. Eu, não. Pus a chave na fechadura do portão do prédio com espírito diferente daquele com o qual fizera o mesmo gesto pela manhã. E com uma certeza: voltaria a escrever.

Andréa Farias
Enviado por Andréa Farias em 09/03/2006
Reeditado em 09/05/2006
Código do texto: T120949