um estado ausente

Suas desconfianças mínimas nem chegam perto da verdade, só há algo lá fora que grita pelas minhas entranhas. Não é nenhum monstro ou extraordinária quimera. Sou eu em meus tenros anos, sou eu sorrindo para a vida. Acreditando. E é a mim que deves temer e olhar com espanto, pois a cada dia exatamente igual ao outro eu me alimento do tédio e crio outros braços para encontros fraternos. A cada recusa, indiferença e medo, meu crivo se desvia na direção da rua, mas hoje estou aqui, inculcado, só esperando sorrateiramente um sinal de chave para dar no pé.

Estou longe, não mais distante que a próxima aurora. Naquela vez segui teus passos uma última vez. Um chopp no quiosque, uma brisa derramada pelo boulevard estendido num tapete ancestral a amolecer nossos passos. Caminhar pelas calçadas era bom, testemunhar a noite caindo era apenas o começo. Numa andança derradeira perdemos nossos passos e os caminhos temporariamente. Nada adiante tem sido como nosso encontro. Pelas mãos do tempo a agonia de viver vai tecendo seus emaranhados planos de viagem.

Uma vida inteira em movimento não vale a força da inércia de nossos bate-papos noturnos numa quinta-feira calorenta de março, com as cigarras avisando da chegada do nosso pequeno sol no balanço de cada hora.

Aqui estou em casa, hora em que as portas se trancam e as luzes da TV clareiam as janelas vizinhas. Nada mais tenho aguardado com ansiedade e minhas mãos vacilantes já não compõem poemas.

A cada caminhada por esses viadutos fúnebres, a cada tomada com parques enluarados e pombos de passarelas, muros pixados se sucedem, dióxido e mais dióxido de carbono vai se acumulando em meus tecidos. Vacilo um pequeno passo em sua direção, opto pelos pensamentos que são coloridos, me deixo cair na cadeira quebrada da varanda ouvindo o carioca entoar as cantigas dos passeios que ainda não fizemos e nossa paixão por cinema.

No jornal, fatalizo as últimas notícias de guerrilhas colombianas e outras atrocidades. A flauta está na caixa, o café na mesa, meus olhos na estantes vasculham títulos em busca de harmonia, sou mesmo capaz de me entregar à meditação como viagem possível ao centro de mim, talvez haja luz, haja fogo para clarear o nublado trazido pela frente uruguaia que se derrama sobre o céu de hoje.

Jan Morais
Enviado por Jan Morais em 22/10/2008
Reeditado em 22/10/2008
Código do texto: T1242493
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